“Vida a vida, rio adentro: nada é agora” : Solange Firmino para Luís Palma Gomes

 

Fronteira, de Luís Palma Gomes – Portugal: 2022, Edição do autor.
 
No geral, os poemas de Luís Palma Gomes exploram uma variedade de temas, incluindo a origem da existência, a natureza humana, a passagem do tempo e a relação entre o indivíduo e o mundo.

No primeiro poema escolhido, o sujeito explora a ideia do começo absoluto, do “antes do antes”, referindo-se ao início da criação. A linguagem sugere um senso de origem. A referência à “pequeno embrião/coberto por folhas/amarelecidas pelo bafo/da primeira estrela” cria uma imagem visualmente estimulante. A repetição da ideia de que “nada é agora” e “tudo é antes e outrora” reforça a noção de um estado primordial.
 
 
PRÉ-HISTÓRIA
 
Nada é agora.
Tudo é antes e outrora.
Tudo é lá atrás:
antes do antes,
Génesis do Génesis, 
causa da causa,
pequeno embrião
coberto por folhas
amarelecidas pelo bafo
da primeira estrela.
E nada, nunca e em lugar nenhum
coisa alguma aconteceu,
que não provenha do princípio.
 
No poema abaixo, o sujeito considera as nuvens negras como uma promessa de renovação e início, em vez de apenas um presságio negativo. A ideia de que as nuvens podem trazer vida aos vales e aos homens é uma metáfora intrigante. A associação com o outono e a simplicidade reforça uma sensação de mudança.
 
NUVENS NEGRAS
 
Ao fundo
as nuvens negras
podem não ser um mau presságio.
 
Mas apenas a promessa,
a vida iminente,
o início do início
dando o baptismo aos vales
e, aos homens, seus leves entes
intermitentes
e, porque se esquecem,
também espantados
com a simplicidade outonal.
 
Aqui, em “Outro tempos”, o poema evoca uma sensação de nostalgia, quando na infância as árvores eram escaladas e o futuro era visto de cima. Há uma sensação de inocência perdida à medida que os “homens” crescem e enfrentam as complexidades da vida. A última estrofe sugere uma perda da simplicidade e um reconhecimento do passar do tempo.
 
OUTROS TEMPOS
 
Subíamos às árvores.
E lá em cima, víamos o futuro, quais druidas modernos.
Não havia chefes de tribos
e as tristezas afundavam-se nos labirintos
que as formigas esculpiam chão abaixo.
 
Era o tempo em que tínhamos só um nome
com a sua máscara admirável.
E tudo era apenas uma manhã, um sol invicto, um expoente.
 
Certo dia ouvimos o piar sobressaltado
do pássaro negro que fugia para a frente.
Fomos inquietos atrás dele. 
Era já tempo.
 
Este poema explora a dualidade da natureza humana – sábios e dementes, envolvidos em mistérios e buscando compreender o início e o fim. A frase “vida a vida, rio adentro” sugere uma jornada contínua e a exploração do desconhecido. A última linha ressalta a ideia de contemplação e o reconhecimento da vastidão do universo.
 
HUMANOS
 
Afinal somos filhos do erro sublime
e da máquina resplandecente.
 
Sábios e dementes.
 
Em mistérios entramos, vida a vida, rio adentro.
 
Casualmente, perguntamos pelo milagre do início
e pelo castigo do fim.
 
Nada.
 
A mais pequena coisa, 
impele-nos a este caminho surdo ou mudo.
E neste silêncio, os mais capazes contemplam apenas.
 
Este próximo poema aborda a natureza do próprio poema. A analogia com a caixa negra do esquecimento e o retrato recortado cria uma imagem instigante. O poema é descrito como o “big bang do instante”, referindo-se à sua explosão criativa. A última estrofe destaca a simplicidade do poema, sugerindo que ele é uma representação direta da essência do pensamento.

 

PROBLEMA ONTOLÓGICO
 
O poema é a parte do silêncio
que não coube na caixa negra do esquecimento.
Transbordou por entre as frestas dos dedos
e caiu no vazio
que se instala entre os pingos da chuva.
 
O poema é o que ficou do retrato
depois de recortado o rosto.
 
O poema é o big bang do instante,
expandido-se pelo infinito do balde
que uma criança loura levou para a praia.
 
O poema é só isto.
 
Neste poema, há uma exploração da rotina e da busca por significado. O protagonista parece se isolar e realizar rituais pessoais, como oferecer “imolação da prata” para entidades mitológicas. Há uma sensação de alienação e contemplação na vida diária.
 
SACERDOTE PESSOAL
 
Tinha medo de morrer
e de viver.
Acordava morno.
Bebia sempre leite com café pela manhã.
E quando as aves partiam para o Sul,
recolhia aos aposentos.
Sentado nas memórias,
ligava a TV
para ver os vivos e os outros.
 
Quando as aves regressavam,
acendia o fogareiro.
Depois chamava Neptuno e as Bacantes
e oferecia-lhes a imolação da prata
que havia nas escamas das sardinhas.
 
O poema abaixo descreve uma série de imagens, objetos e sensações, retratando uma cena estática e fugaz. A ausência de julgamento moral (“amoral, natural”) e a referência a elementos naturais reforçam a ideia de que o poema captura um momento de forma direta e simples.
 
INSTANTÂNEO
 
Raízes, pedras,
restos de unhas
de cotovia
dispersas pelo jardim.
 
Ervas, paus,
casas minuciosas,
pontes de sol e terra.
 
Fios de seiva,
outras águas pequenas, sem sabor, nem fim.
 
Cantigas de fadas
na voz dos anjos
de cima para baixo
como chuva ou ordens.
 
Tudo imóvel,
instantâneo,
amoral, natural,
sem não, sem sim.
 
Este poema aborda questões sociais e a apatia que muitas vezes enfrentamos em face de tragédias e injustiças. A imagem de Sócrates e Cristo sendo envenenados e crucificados diariamente destaca a repetição de sofrimento e injustiça ao longo do tempo. A última estrofe sugere uma resignação aprendida, indicando que nos adaptamos a essa realidade.
 
DOCE REVOLTA
 
Todos os dias envenenam Sócrates.
Todos os dias se crucificam Cristos.
Todos os dias se fecham teatros para abrir circos.
Todos os dias se gaseiam inocentes.
 
Às vezes ao longe, outras defronte de nós,
todos os dias olhamos para isto,
enquanto comemos o nosso croissant.
 
Aprendemos a viver assim.
Aprendemos a dormir assim,
esperando acoitados
que os deuses da fortuna não se lembrem de nós.

 

 

Luís Palma Gomes (1967) – Lisboa – Estudou Engenharia Informática e Ensino da Informática na Universidade de Lisboa.Durante a sua juventude, escreveu e publicou poesia para coletâneas, suplementos e jornais. Pertence ao Teatro Passagem de Nível da Amadora onde foi ator, sendo atualmente autor/dramaturgo residente do grupo, tendo levado a palco três peças suas: “A Moura”, “Desnível Bar 2” e o “Último castro antes de Roma”. Venceu o 7º Concurso de Poesia Santo António da Charneca e 4º Concurso de Haicai de Toledo – Kenzo Takemori. Atualmente escreve, sobretudo poesia e teatro, aventurando-se também como contista. Publicou dois livros de poesia, uma peça de teatro e um livro de contos. Alguns deles podem ser encontrados na Amazon.com. É professor de Informática na Escola Profissional de Imagem.
 
Solange Firmino (1972) – Rio de Janeiro – Tem Licenciatura em Português e Literatura pela UERJ. Trabalhou com Jardim de Infância, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Sala de Leitura em Escolas Municipais e Estaduais do Rio de Janeiro. Venceu o Prêmio Literário da Fundação Cultural do Estado do Pará com um livro de haicais e o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.

 

 

 

 

Respostas de 5

  1. Parabéns, Solange. Além de seres uma poeta que muito aprecio, sabes ler poesia e analisá-la com o rigor que as palavras te pedem. Compreendo que o Luís Palma Gomes tenha gostado muito da tua análise.
    Um beijo.

  2. Fico muito grato, Solange, pela a sua análise aos meus poemas do "Fronteira". Resumem e revelam uma leitura madura. Obrigado Jandira, por esta oportunidade em Amaité Poesia & Cia.. Obrigado, Graça e Jaime pelos comentários.

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