A névoa dentro da nuvem V – Marcelo Ariel

Cena do filme PÁSSARO TRANSPARENTE


A criação do mundo segundo o esquecimento (germinação)

   domingo:
A densidade do ser
Quando nos tornamos ninguém e desejamos exatamente a lembrança do agora onde não possuímos nada e somos possuí-dos pelo êxtase frágil ‘da respiração’, a vida se materializa como um incessante e lento nascer do Sol do qual não veremos o apogeu
O processo de ‘tornar-se ninguém depende da capacidade de lembrança do agora ou de um elogio que precisa ser dirigido para a gratuidade de uma alegria desertamente distraída.
Um pensamento que é emanado diretamente da experiência do esquecimento do próprio rosto, do abandono dos espelhos, medusas fracas demais para iluminar nossa ausência
Este dificil e raro pensamento seria capaz de criar uma tridi-mensionalidade, um terceiro ser menos viciado em esquemas e capaz de mergulhos incessantes no silêncio fundador de um adensamento da memória deste cristal de gelo dentro da nuvem do não saber
  
domingo:
O vidro e a água
A partir da extrema profundidade da solidão, de um mergulho tão denso que atravessa o fundo do eu, como uma pedra atra-vessa o vidro, a partir desse estilhaçamento, começa o amor ontológico, depois do fundo do eu, a água pura da fonte de um beijo absoluto encontra a água de um oceano infinito.
domingo:
Parece ser um péssimo senso comum o que afirma que os poetas vivem fora da realidade, desligados dela ou em outro mundo, um poeta não conseguiria escrever um bom poema se vivesse fora da matriz de todos os poemas, se vivesse fora do real, é justamente o oposto que se dá entre os poetas, eles vivem ‘muito dentro do real’ caso contrário como conseguiriam escrever sobre uma cadeira, um ninho de pássaros ou um incêndio como se estivessem imersos e imantados por estas coisas. é mais fácil levantar um muro do que escrever um bom poema. Poetas e escritores trabalham com a solidão e não para a solidão e escrevem mais com a sensibilidade do que com uma caneta, álias a caneta apenas cava a sensibilidade ou o aspecto sensível das coisas, suas camadas que podem ser digamos raspadas por uma frase que pareça vir direto delas mesmas e não apenas do eu do poeta. trata-se de viver a imanência como uma obsessão. Ora uma pessoa que se deixa absorver pela atividade de seu trabalho, um carteiro ou um médico até o ponto de se esquecer de si, o que é terrível do ponto de vista do ser que é a lembrança de si que permite a presença do Outro e não o esquecimento que torna o Outro um tormento, uma oposição contínua, ora estas pessoas vivem uma espécie de imanência negativa onde um fragmento do mundo toma o lugar de uma gama variada que se confunde com o todo, o poeta tem uma natural inclinação para trans- figurar esta imanência negativa em uma percepção fisica do mundo do ser-no-mundo, do nome do fenômeno, não é um escafandrista, tampouco um astronauta na calçada, alguem interessado no mundo e em seu acontecer, apenas isso e quem está interessado no mundo jamais viveria fora dele.

domingo:
Escrever deveria ser mesmo esse magnífico fracasso similar ao da tentativa de elaboração de um catálogo de êxtases embaixo de uma colcha de estases, ao invés da Música das Esferas, temos a britadeira contra o pensamento-orvalho do impossível amanhecer, houve a expansão do hospício em vazamentos inúme-ros começando pelo óleo que vazou hoje no Rio Cubatão, os vazamentos do gás do sublime são mais raros, encontrei em uma banca de jornais na Avenida Lugar nenhum, também chamada de Avenida Paulista, um disco compacto do Réquiem de Mozart por cinco reais, envolto em um plástico onde estava escrito ‘Sobra’, Mozart é a ‘Sobra’,
 domingo:
dissipa a névoa porque nenhuma palavra entra, é um peixe nadando dentro de um  pássaro, dos pássaros, o paraíso que está nos ossos de quem o vê, jardim em volta do  teatro, anjo do lençol freático procurando a música do inacreditável componente bacteriológico que criou a sigla do líquem dna anagrama de deus nenhum há, cancelemos a necessidade de uM em troca da imanência de nenhum, é similar aquela fotossíntese do caracol escondido na tese do ator-botânico, é similar a fotossíntese.


Marcelo Ariel: nascido em Santos (1968), vive entre Cubatão e São Paulo. Autor dos livros: Tratado dos Anjos Afogados (ed. LetraSelvagem), Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio, Com o Daimon no Contrafluxo (ambos pela ed. Patuá), A névoa dentro da nuvem (ed. Lumme), entre outros. Em 2012 gravou o disco Scherzo Rajada – Contra o nazismo psíquico.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *