
A propósito de um quadro de Turner
Tenho a gata em chamas sobre a cama,
combustão frágil crepitando lentamente,
labareda puxada a vento por cada expiração,
rastilho grosso e curto para uma delicada explosão,
alento doce, quente para quando eu sair do pijama.
Um ato isolado
in memoriam Nuno Júdice
Às vezes tenho a sensação
de que só o poeta é feliz —
e por poucos segundos apenas.
Constrói uma casa com o vapor do duche,
senta-se depois confortável lá dentro
ou deita-se de barriga para cima
a contemplar o teto a passar.
Até que alguém — que não sabe ao que vem —
abre a porta e deixa entrar o vento da multidão.
Talvez poucos saibam,
mas a poesia é um T0 num subúrbio discreto
(para não lhe chamar outra coisa pior).
E torna-se insuportável com muita gente lá dentro.
É pena ter que dizê-lo —
logo hoje, num dia tão bonito —
mas a poesia é insocial.
Gatos
Tens de entender os gatos,
por que razão andam arredios
e te arranham as mãos
como se vissem o diabo.
Tens de entender os gatos,
o seu coração insuflado de borboletas,
o corpo a querer descolar para os céus
com asas de caranguejo.
Os gatos são anjos caídos,
impedidos de matar mais que distraídas moscas.
Máquinas tão perfeitas, como tu e eu,
condenados à insignificância da boa companhia.
Todos queremos ser piores do que somos,
mas — felizmente — fracos demais para o mal que desejamos.
Crepuscular
É um pequeno jardim devolvido à lentidão dos bichos,
às ervas daninhas que sobre outras ervas crescem agora.
Por cima dele, os melros cantam pingos de tarde
a cair num balde de ferro;
os limões apagam-se como bicos de fogão;
e a carriça disfarça-se entre os botões desfolhados
das últimas rosas.
A Lua acende as silhuetas,
e o ladrar dos cães engrossa a espessura da noite.
No hay caminos
Afinal,
éramos apenas uma questão de tempo.
Amar?
E como podíamos amar de amor inteiro?
Se em tudo,
o princípio trazia o fim de tudo.

Luís Palma Gomes é um poeta português nascido em Lisboa, em 1967. Vive entre o quotidiano e a contemplação, entre a cidade e a casa, entre o mundo visível e as pequenas fissuras do invisível. Publicou, no ano de 2025, O Cálculo das Improbabilidades. Estes cinco poemas — extraídos desse livro — são uma amostra da sua linguagem que oscila entre o concreto e o simbólico.Os seus poemas nascem muitas vezes da fricção entre o íntimo e o social, entre o desejo de pertença e a necessidade de se afastar para ver melhor. É professor, porque gosta de ver as coisas a crescer, de inícios, da esperança e da boa energia que os mais jovens sempre trazem consigo.
Respostas de 4
Não costumo ser fã de poesia, normalmente não me diz muito, no entanto “Um ato isolado” deixou-me ali, presa, li e reli, as palavras revolteiam e criam imagens, não sei, não costumo ficar presa no T0 com poesia, isso só me acontece com outros géneros literários que normalmente me transportam para dentro da acção e me fixam naquele sítio deixando a multidão lá fora.
Conheço a poesia de Luís Palma Gomes, desde o ‘DN jovem’. Uma poesia de inegável qualidade, original e profunda. Estou sempre à espera que publique mais um livro!
Conheço o Luís há algum tempo, desde as palavras do teatro às palavras ditas com a beleza e a simplicidade com que ele sempre nos alcança. Transformou, obviamente, tudo isto naquilo que já esperava – uma sensibilidade poética e uma pureza no dizer o sentir. A poesia é isto – sente-se sem explicação racional e o Luís tem o dom de nos levar a sentir algo que está cá dentro, mas que apenas os poetas conseguem contornar. Ou não fosse esse o dom do poeta, o de dizer algo que todos sentimos e nos faz reler e reler e reler… Que linda Primavera, Luís!…
O poema “Um ato isolado” parece um segredo entre poeta, quase uma confidência que se faz com ironia e ternura. O início é pungente pela a sua franqueza, como se dissesse que existe um consolo, uma redenção, mas finita e insustentável.
A imagem da casa construída com o vspor do duche também é muito bonita. E mesmo a interrupção vinda “de fora” é uma imagem feliz da invasão do real bem conseguida.
Gostei muito deste poema em especial, especialmente a parte final, onde o poeta faz uma provocação com elegância e sem arrogância com os versos “É pena ter que dizê-lo/ logo hoje, num dia tão bonito/ mas a poesia é insocial.”
Bjs