Ulisses navegando contra a própria correnteza do espírito moderno, de Mateus Machado

Ilustração de Mimmo Paladino

Faz parte da construção dessa aura mítica do livro a ideia da ininteligibilidade do romance, alimentada pelo próprio Joyce em sua sanha de construir armadilhas, enigmas e labirintos. Mas essa intransponibilidade é apenas superficial, vencido algumas armadilhas e persistindo na exploração do terreno, podemos vislumbrar a nudez do moderno-antimoderno Ulisses.

É preciso esclarecer que o entendimento do Modernismo aqui no Brasil é a cisão com o passado, é a destruição do passado para se construir o moderno sobre as cinzas das antigas tradições. Este foi o maior erro do Modernismo brasileiro que, no final das contas, apresentou suas boas sementes muito depois da famigerada Semana de Arte Moderna, manifesto artístico-cultural que está envelhecendo muito bem, mas apenas como piada pastelão.

O próprio Manuel Bandeira, pouco tempo depois, reconheceu a imaturidade do grupo e da proposta, que não passou de mero capricho de jovens paulistanos com espírito adolescente, mimados e inconsequentes. Na verdade, a estilística moderna se apresentou antes da Semana de 22, com Manuel Bandeira e o seu poema Os sapos. Diferente do Modernismo europeu, ou mesmo americano, a proposta brasileira se alimentou de uma escatologia cega e desenfreada que acabou decepando os próprios pés em sua gana enlouquecida de se desvencilhar das antigas tradições.

Joyce não rompeu com o passado, não rompeu com as antigas tradições, mas incorporou seus elementos em uma nova roupagem. Ulisses é um exemplo gritante, mais ainda é Finnegans Wake.

Um dos grandes problemas atuais aqui no Brasil é o relativismo literário que tenta desconstruir a realidade em favor da burrice adquirida, quando não congênita. Desse relativismo surgiu outro problema, uma comorbidade que se apresenta como uma interpretação ideologizada. É muito comum teóricos, mestres, doutores e tradutores abordarem uma obra, quando não a própria biografia do autor, através de uma lente política carregada de militância entusiasta e doentia. Quando intelectuais tentam colocar uma obra, ou um autor, dentro de suas caixinhas ideológicas, forçando a barra com o fórceps acadêmico tão contaminado pelas ideias modernistas e pós-modernistas, cria-se um monstro feito de pedaços ideológicos e filosofias capengas.

A interpretação relativista é a desculpa daqueles que não conseguem alcançar a mensagem da obra, que não conseguem ouvir com nitidez a voz do autor. O relativismo literário é uma tentativa de criar novos Frankensteins. Mas o problema de todo Frankenstein é fazer com que cada membro individual, cada órgão, esteja em acordo com os demais. E se o Frankenstein for montado de maneira errada, não ficará funcional. Afinal, ninguém quer um nariz remendado ao lado do saco ou do ânus.

Quando críticos e estudiosos não alcançam o sentido profundo dessa obra, eles apelam para o óbvio, por exemplo, considerar que Ulisses se trata da história de um corno manso em oposição direta ao herói de Homero e que tudo não passou de uma piada. Mas a obviedade, em Ulisses, é uma armadilha, um blefe.

Mas a dificuldade para a maioria dos leitores, além da estruturação do romance, é que a obra é carregada de símbolos, referências mitológicas, lendas irlandesas, armadilhas e enigmas. Nem é tanto por essa questão estilística, própria do livro, pelo formato labiríntico, mas pela dificuldade de reconhecer e entender os símbolos envolvidos.

Em última análise, o que faz com que Ulisses, de James Joyce, seja um livro tão difícil de compreender, é justamente a perda da dimensão mitológica que o homem moderno vem sofrendo ao longo do tempo. O mitólogo estadunidense, Joseph Campbell já alertou sobre a nossa perda de referência mitológica e o empobrecimento do nosso imaginário para reconhecer os símbolos e arquétipos que representam todas as possibilidades de experiências humanas. Como estamos perdendo a nossa dimensão mitológica, em consequência perdemos a nossa capacidade de interpretar a realidade a nossa volta e tudo que a grande literatura tem a nos oferecer.

Do que se trata Ulisses, afinal? Deixemos de lado um pouco a forma do romance, a forma é a urna em que está guardada a mensagem essencial, que nada mais é do que um problema ontológico. Os três personagens basilares do romance representam parte das três dimensões humanas. E como foi bem colocado pelo professor José Monir Nasser: Não há outra fórmula possível para a existência humana que não seja obedecendo essas três dimensões: Espírito, Mente e Corpo. O Espírito presidindo a mente e o corpo. A identificação dessa fórmula no romance torna-se óbvia.

Leopold Bloom representa o Espírito, porém o espírito fraco, pois não tem domínio sobre a mente e sobre o corpo. Não uso a palavra “paralisia”, muito cara aos estudiosos e usada pelo próprio Joyce, creio que a palavra ideal é “impotência” (eu já expliquei essa ideia da impotência no lugar da paralisia no texto sobre os Dublinenses). Leopold Bloom não se defende das injúrias, das agressões. Não se defende, não ataca, mas foge quando necessário. Sua sexualidade é sublimada ou platônica.

Um símbolo que denuncia Leopold como a representação da dimensão espiritual é que ele gosta de comer os miúdos das aves; para os romanos, as aves representam a ligação entre o céu e a terra, entre a dimensão material e a espiritual. É um símbolo importante. Leopold serve café para Molly na cama. Leopoldo tornou-se o espírito fraco porque perdeu a razão, símbolo que pode ser ligado a morte do filho. Ele só reconquista a razão no momento em que ele se coloca como pai para Stephen Dedalus.

Molly é a representação do corpo, os instintos básicos (alimentação/sexo), por isso ela não sai da cama, espera o seu café na cama e espera o seu amante na cama. Ela pede e espera ser servida. É o corpo sem controle, sujeito aos impulsos básicos, ao prazer hedonista, pois não está sujeita à autoridade do espírito e da mente.

Stephen representa a mente. Abandonou o pai (o espírito) para buscar independência, por isso se encontra perdido, sem rumo, sem casa. O problema de Stephen, da mente, só será resolvido plenamente, em Finnegans Wake, não apenas no plano ontológico, mas cosmológico, tendo a Queda do Homem como ponto de partida, além dos quatro ciclos humanos\históricos.

Como o espírito é fraco, mente e corpo não se submetem. Os três estão doentes; o espírito é fraco e sofre de impotência, a mente busca independência abandonando o pai, mas se condena perdida. Stephen se refugia na própria mente, e o corpo se entrega somente aos prazeres, aos impulsos. E o espírito vaga anêmico, sem autoridade.

Ulisses, o romance, começa com a desordem, por baixo dessa película caótica existem as leis e a ordem necessárias para a existência humana. Ulisses traz, então, a desordem da existência no plano antológico, essa desordem, esse problema, que será resolvido no final do romance, quando o espírito ordena que o corpo lhe sirva, (simbolizado por Leopold pedindo para que Molly lhe sirva o café da manhã; invertendo assim a situação apresentada no início do romance.

Ulisses, de Joyce (assim como o de Homero), em última instância, representa um caminho iniciático em que o espírito precisa voltar para a casa. O herói Leopold Bloom, desfigurado pela impotência, precisa retornar o seu lugar, o seu papel no plano geral das coisas, para que toda ordem seja retomada.

Então, vemos Leopold, simbolizando o espírito que retoma a razão no momento em que passa a cuidar de Stephen, quando ele vê em Stephen um filho, então ele volta a se colocar no papel de pai (espirito), volta a ter consciência de si. Recuperando a autoridade da mente e do corpo.

Em última análise, esse é o grande problema atual, o grande problema do homem moderno, a perda de referência mitológica; não é à toa que o “mito” foi relegado à esfera da mentira, o mito passou a ser o oposto da verdade. Essa inversão de significado é um sintoma do nosso empobrecimento para decifrar o que somos, quem somos e o nosso papel na existência.

E a perda da dimensão mitológica, o empobrecimento do nosso imaginário faz com que nós tenhamos grande dificuldade de compreender as grandes obras literárias que se apoiam e se realizam dentro dessa dimensão mitológica e imaginária. Por isso, não apenas Ulisses, de Joyce, mas toda grande obra se torna difícil de compreender em sua essência, porque estamos perdendo essa capacidade; é próprio do homem moderno essa perda, porque é próprio da Era Moderna a dessacralização da vida. E por isso, hoje nos debatemos em infinitas especulações, em grande parte vazias, para entender determinada obra, com teorias das mais estapafúrdias, muitas vezes tentando enquadrar na obra os nossos ideais ideológicos. E deixamos escapar o essencial da obra, a sua mensagem mais importante.

Principalmente nos dias atuais, em que o pensamento, as ideias e o imaginário estão sendo formados pelas redes sociais ou, mais precisamente, pelo refugo digital de informação que circula na internet. Ora, dentro da perspectiva ontológica de Ulisses, além da formação tomista e de base jesuítica, Joyce vai contra a própria correnteza da modernidade que, por sua natureza, é materialista e, por extensão, antirreligião, anticristã. Ao contrário do que muitos pensam, a pós-modernidade não está separada da modernidade, não é um corpo independente, não é autônoma, mas apenas uma extensão do espírito moderno, uma extensão e aprofundamento do espírito moderno, radicalizando o anticristianismo em prol do progressismo materialista.

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Mateus Machado é anti-poeta, escritor e ensaísta, formado em gestão ambiental pela Faculdade Prof. Luís Rosa (Jundiaí). Em 1997 foi cofundador e diretor de cultura da AEPTI (Associação dos Escritores, Poetas e Trovadores de Itatiba-SP). Participou em antologias e na revista literária Beatrizos (Argentina), vencedor de prêmios literários, entre eles, Ocho Venado (México), e um dos finalistas do Mapa Cultural Paulista (edição 2002). Entre 2017 e 2018, foi aluno de música clássica indiana com o citarista, escritor, tradutor e poeta Alberto Marsicano. Autor dos livros publicados Origami de metal (poemas, Editora Pontes, 2005), com prefácio do poeta Thiago de Mello; A mulher vestida de sol (poemas, Editora Íbis Líbris, 2007); A beleza de todas as coisas (poemas, Editora Íbis Líbris, 2013), com prefácio de Alberto Marsicano, onde finalizou sua primeira etapa como anti-poeta; As hienas de Rimbaud (romance, Editora Desconcertos, 2018); 17 de junho de 1904 — O Dia que não amanheceu (ensaio, Editora Caravana, 2022), sobre a obra do escritor irlandês James Joyce, e Nerval (poemas, Editora Caravana, 2022), um livro de transição. Em 2023, iniciando uma nova fase no seu trabalho, publicou o primeiro livro da trilogia Poiesis Religare, intitulado YHVH, pela UICLAP, através de autopublicação. Agora, em 2025, está publicando o novo livro de poemas O Evangelho segundo as HQs, pela Editora Mondru, iniciando a sua segunda trilogia poética. Atualmente está finalizando o livro Um bode para Adonai — outro para Azazel. É autor do canal de literatura Biblioteca D Babel no YouTube.

Respostas de 2

  1. Estaria eu a faltar com a verdade caso dissesse que fui surpreendido pelo elegante e muito fundamentado artigo do amigo e poeta de alto calibre Mateus Ma’ch’adö. Tal não ocorreu, pois, há muito sei da sua competência, do seu vasto e comprometido conhecimento do campo literário.
    Ma’ch’adö é leitor atento das obras de James Joyce, notadamente de Ulisses. E isto quer dizer muito.
    Ao firmar posição crítica, de maneira a desmistificar a obra sem recusar o essencial fator mitológico; ao alertar, em boa hora, quanto às ideologices, as “explicações” prenhes de lugares-comuns, práticas abjetas levadas à efeito não só contra Ulisses, mas, também, contra outras produções literárias de referência, Mateus Ma’ch’adö nos chama à responsabilidade de preservarmos, mediante recepção esclarecida do discurso estético de escritores como [em termos] Joyce, de suas respectivas e inalienáveis obras.
    O presente texto torna-se, de imediato, um leme seguro para quem, como eu, já leu a obra, e para quem desejar iniciar-se doravante.

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