A névoa dentro da nuvem – Marcelo Ariel

 
 
A criação do mundo segundo o esquecimento (germinação)


domingo:

um escritor/artista/criador não deve “entender” da arte de elaborar projetos culturais. Se alguém aí dentro-fora disse o oposto, isto representa uma pequena vitória-destroçamento do pensamento utilitarista e mercantil sobre a criação artística. um artista jamais deve pensar como uma marca.

van gogh deveria ter sido diluído pelo doutor gachet e se transformado num clone de seu irmão? O projeto cultural é uma óbvia formatação no plano da competência industrial (da indústria e do mercantilismo social, é claro) do ideário dos artistas-criadores. um artista é muito mais do que uma marca. van gogh é maior do que o Banco van gogh, do que o Citygroup e etc… Eu sou van gogh retornando no sempre, para assistir ao suicídio do capitalismo como ideia. van gogh, alguns segundos antes de morrer, sentiu essa inexprimível sensação de fracasso como um triunfo da permanência de uma idéia extraordinária e improvável, a ideia de que sua morte era apenas simbólica e representava o início de um poder místico acessível aos artistas do futuro através de sua obras e testemunho. O poder de criar apesar do dinheiro como limitador da vida do espírito. Não sou tolo, sei da força do dinheiro como uma abstração que potencialmente poderia se tornar criadora de outros mundos e depois anular a si mesma, mas isso é um capítulo da história que ainda será escrito.



domingo:

Ana Cristina César agora é um beija-flor que se solta de um emaranhado de galhos secos e teias de aranha e mergulha em uma piscina. uma criança disse: «Esse beija-flor mergulha na água como uma gaivota.» «um anjo, um beija-flor ou uma gaivota são um peixe por dentro como todos outros» E outras:
«um anjo é um homem que se exclui absolutamente ou seja é uma
mulher.»
(…) Crianças atravessadas pela exatidão da solidão de uma
luz terrivelmente branca que sai da água.


domingo:

Sonhei que assistia um diálogo entre godard e Pedro Costa.

(Sonho anotado)

Pedro Costa: nossa época conhece um tipo de afetividade, que se caracteriza pela falsa objetividade, afetividades vaporosas, onde o encontro real se torna cada vez mais difícil e é sempre mediado pela tecnologia da comunicatividade…

godard: Sim, me parece que nos tornamos excessivamente focados em nós mesmos e ao invés de valores éticos, agregamos apenas as imagens dos outros dentro de nossas construções ficcionais de uma idéia d afetividade,
que se realiza apenas na superfície do distanciamento.

Pedro Costa: de um distanciamento cômodo e suportável, desde que a voz sem a presença seja convocada para atenuar a intensidade de uma ansiedade sem centro.


godard: Que atravessa um poderoso vazio cristalizado pela ausência, como um relâmpago em um dia claro


Marcelo Ariel


Extraído de “A névoa dentro da nuvem” (Lumme Editor, 2017).
 


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