3 poemas de “O olho e a mão” de Ana Marques Gastão

Paul Klee – “Pierrotlunaire” (1924)

ORIFÍCIO

Teu pescoço-tu, uma maçã invisível
de pés ungidos, nus; teus olhos-tu

um rigoroso pedido, fala exígua,
desarmada, que se evade em dor;

e teu fogo, lívido-tu, iluminação em
mãos-bolha de criança anterior.

Teu nariz-tu, em muda sintaxe, é amor
esventrado, palavra-buraco, inflechada,

suspiro e retenção; tua amável fuga-tu
regresso indomável, murado e puro,

de jura transbordante e pele. não vás-tu,
levando, levando o repouso-fulgor, tu,

agora estremeço-eu e eu, torre sem orifício.


Anita Malfatti – “A chinesa” (1922)


O CÍRCULO

O ouvido é de círculo, o círculo de disco, voraz,
incontido, fugaz. o ouvido é de círculo em corpo
de homem com treva de mulher. o ouvido é de
círculo, raio de onde se ausentou a luz
nas suas dez espécies de fogo sem água;

é angular, o rosto, fantasia, abajur de pagode,
banzé e violência, de tudo tem fartura, é fractura
de devoração. a imagem conspícua traz declínio
e queda, erguida em rocha funda, de tanto não se
ver, se torna inferno e mentira, deita-se em ilusão;

a chinesa é impaciente, fera sem lamento ou
piedade, não dorme, não sossega. as sobrancelhas
desenham o v de vagido, as mãos são de animal
antigo. a chinesa cobre-se mas a provação é a nudez.


Edvard Munch – “A vampira” (1894)

SUCÇÃO


                               Poderia ser uma rotação frenética,
queimando as mãos,
a  mulher o sol fulvo, de insistência inelutável,
o homem
radial, lunar, falho de infância, folheando músculos competentes
dentro da lógica e da verdade. 

                              Mas ela não retira as mãos da nuca,
pálpebras fechadas
sobre um não ingénuo azul de olhos, aquático,
florescente,
a articulação do cotovelo desenhando o lento adoecer
da morte que progride por coagulação.

                              A lente capta pormenores da sucção,
leite invadido por um pulsar ligeiro,
repetidos nós geneticamente envenenados por tesouras,
monstruosas,
células dele, voluptuosas, oferecendo-se ao encanto de ceder
a uma dança de olor macabro.

                             A tentação é a de rasgar, sorver, pregar
os dentes alvos em bisturi,
o corpo suspenso, trémulo
e, enquanto ele nada, húmido, transparente, como um feto,
a mãe sem seio, fremindo debaixo da luz perversa,
auto-devora-se em estrada de cabelo.


ANA MARQUES GASTÃO (1962) nasceu em Lisboa. É poeta, crítica literária e ensaísta. Escreveu Tempo de Morrer, Tempo para Viver (Lisboa, Universitária Editora, 1998), Terra sem Mãe (Lisboa, Gótica, 2000), Três Vezes Deus, em co-autoria com António Rego Chaves e Armando Silva Carvalho (Lisboa, Assírio & Alvim, 2001), Nocturnos (Gótica, 2002), Nós/Nudos – 25 poemas sobre imagens de Paula Rego (Gótica, 2004, traduzido para castelhano por Floriano Martins, Prémio Pen Clube, e para o francês por Catherine Dumas), Lápis Mínimo (Lisboa, Leya, 2008), Adornos (Lisboa, Dom Quixote, 2011) e L de Lisboa (Assírio & Alvim, 2015). Publicou As Palavras Fracturadas (ensaios, Lisboa, Theya, 2013). Organizou o livro de entrevistas O Falar dos Poetas (Porto, Afrontamento, 2011) e editou o volume de ensaios de Ana Hatherly, Esperança e Desejo – Aspectos do Pensamento Utópico Barroco (Theya, 2016). A antologia A Definição da Noite saiu no Brasil com a chancela da Escrituras (2003). Alguns dos seus poemas estão traduzidos para castelhano, catalão, francês, inglês, alemão, romeno e esloveno. Coordena, desde 2009, a revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. Licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa e advogada, foi jornalista cultural, durante mais de 20 anos, no Diário Popular e no Diário de Notícias. É membro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


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