A carta sem resposta
Mandei carta a um poeta
que jamais me respondeu.
Maldisse muito o estafeta,
mas acho que o erro foi meu:
sabendo onde mora o poeta,
não sei o endereço do eu
lírico, onde se meta…
Este, nunca a recebeu.
Extrato de banco e gazeta
choviam − menos poeta:
o que devo e aconteceu
foi ser, mas contrário à regra,
poeta – e mais erro meu:
lírico, moro no eu.
Naturismo
Em Massarandupió,
o corpo está nu
e o desejo, encoberto.
E se lábio e pálpebra acortinam,
pés de pegada borram a areia.
Mulheres nuas concordavam
para sempre contra as modas
que ninavam na sacola.
Homem nus concordavam
para sempre contra ciúmes
que adulteravam no peito.
Praia sem rochedo,
o dito mar aberto ouvia muitas vezes
mil proclamas de paraíso
e como surdo que sempre é,
devolvia outra coisa, pura coisa e triste,
de peixe podre a búzio desertado.
Em Massarandupió, mais que em Tambaba,
“Para sempre” é um linde, uma estaca de madeira
e já na segunda vez transposta não
se é mais puro. Mulheres
repetem contra a moda por moda;
homens, contra o ciúme,
silenciam.
Genesíaca nudez, que o surdo
mar masturba, mas também descarna,
voltamos andrajosos à barraca
onde a piña colada sabe ser
por instantes a melhor do mundo.
“Paraíso, paraíso” – lá vamos
tropicais, protocolares.
Estávamos expulsos. Serpente, árvore, anjo –
a mascarada em sigilo refazia-se
para o próximo cosplay.
O desabamento do açúcar
Caiu o sobrado na noite de chuva:
ninguém morreu sob a madrugada
chuvosa e doce, que o sol insulta.
Sem a parede frontal, ideia de casa
que tivesse ficado viúva
da outra metade, colherada rasa,
suas pedras semelham brasa
amolecida e doce: uma cocada-puxa.
Só sobrou do sobrado a envergonhada
alvenaria que não mais se usa;
enrubescida, mas não Sinhá afrontada,
a envergonhada velha confusa
que esquece uma palavra tão falada,
uma palavra doce, a palavra açúcar.
Lance de pássaro
Depois de tanto, o que espanta
é pássaro e flor
João Filho.
Volta o pássaro, agora
e é susto como as penas
do pássaro assustam
a casa: de onde veio
o anjo destroçado o canto
e o rastro de sangue?
Foi o gato, quem sabe,
postado indiferente
ou seu cúmplice − outro gato
um tanto mais ausente?
Mas não se notam neles
qualquer penugem, indício,
pluma… O pássaro
assusta: o ex-
pássaro fragmentado,
des pe ta la do
pássaro
que vamos varrer
para o lixo, lírico,
enquanto os gatos
olham com desdém, olhos fixos,
a flor casual que se forma
no apanhador: flor de penas
matizadas de rubro
porque o acaso (disto sabem
os gatos), eu descubro
agora apenas:
o acaso
não abolirá jamais
a flor: o pássaro.
Não se muda já como soía
ou Camões em Paris
Com flores, sol e neve, folharada,
barrete em quatro cores − quem diria
daquelas quatro estampas de almofada
que eram elas quatro, se chovia
lá fora, na Paris de um mês de agosto?
Madame o fio de ouro, o belo avesso,
louvando os arremates, pelo preço,
mostrava, revirando, cada rosto…
Paris tão cheia estava e de sombrinhas,
que a gente ou se molhava ou se furava:
Outono em Primavera, e na invernia
Verão na alegoria revirada!
Que não se muda já como soía
− Camões, são estações, a quinze cada!
Antônimo de velho
“Entre vous, plus de controverses
Cons caducs ou cons débutants”
Georges Brassens.
Até seu linho tem vincos
mesmo seu rosto se enruga
mas a voz reta é a eterna
avenida heroína sem retorno
convidando a infração e multa.
Belisário,
não tem as dúvidas do poema.
Onde seria um novo adolescente
carregando seu menino morto,
olhando sem gosto os brinquedos,
esbarra antônimo
e é só o sátiro matungo
à caça de ninfa inédita.
Malícia ingênua, perícia avara:
todo jovem será jejuno
e os aconselha a não errar seus erros
assim tão cedo (que lhe não cheguemantes
Malícia ingênua, perícia avara:
todo jovem será jejuno
e os aconselha a não errar seus erros
assim tão cedo (que lhe não cheguemantes
ao mesmo aforismo).
Mostra os livros, mas esconde
algo como um Eclesiastes
e atrás da paciência, a desconfiança
de rabo à mostra – agora o gato
de luz no pulo do gato.
Por dentro dos olhos baços,
por baixo mesmo do abraço,
rapina
envergadura.
Ah o pequeno roedor campestre
que o chame de mestre!
Não viveu em vão, mas em vão envelhece –
arcada solta
Mostra os livros, mas esconde
algo como um Eclesiastes
e atrás da paciência, a desconfiança
de rabo à mostra – agora o gato
de luz no pulo do gato.
Por dentro dos olhos baços,
por baixo mesmo do abraço,
rapina
envergadura.
Ah o pequeno roedor campestre
que o chame de mestre!
Não viveu em vão, mas em vão envelhece –
arcada solta
moldura cusquenha
vazia
sem velhice dentro da velhice.
sem velhice dentro da velhice.
Todos os poemas são inéditos e integram o livro “Aos que se perderam com as chaves”, finalista do Prêmio CEPE 2017, e atualmente no prelo.
Imagens:DeviantART
Imagens:DeviantART
WLADIMIR SALDANHA é poeta, crítico e tradutor. Nasceu em Salvador, em 1977, onde reside. Publicou Culpe o vento e Lume Cardume Chama (7Letras, 2014), seguindo-se, agora pela editora Mondrongo,Cacau inventado (semifinalista do Prêmio Oceanos) e Natal de Herodes –eleito um dos melhores livros de poesia de 2017 pela Revista Amálgama. No formato ebook, lançou gratuito o livro de epigramas A morte sucinta, pela Appaloosa Books. Colabora regularmente com resenhas de poesia contemporânea no jornal Rascunho. Como tradutor,participou da reedição de A cinza do purgatório, de Otto Carpeaux (notas de poesia francesa).Possui formação jurídica, sendo também mestre e doutor em Literatura e Cultura pela UFBA.


