Eterno Passageiro/Ronaldo Costa Fernandes – O Tempo e outros poemas


O tempo
 
O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá fora
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.
 
O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.
 
O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.
 
O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.
 
O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiros
que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.
 
O tempo – animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.
 
 
A imaginação dos bastardos
 
Como serão os anjos na velhice?
Aqui onde a queda é ascensão
não duvido da existência
do hálito de Deus.
Somos as raízes mortas
cheirando a ferro,
respirando o incenso do monóxido de carbono.
As putas recolhem entre as pernas
a espécie sutil de réptil
seco da Johntex:
o pânico feito de elástico, músculo e noite.
 
 
Campos de concentração
 
Essa vegetação dos cabelos
são tranças do ovário.
E o coque de aspereza,
a trama de parecer uma sendo várias.
Ceifar o milharal dos canos,
os ipês sopram ventos roxos,
semear a monocultura dos esgotos urbanos.
Os receios esterilizam a terra
e as estações de metrô
trazem sempre o inverno do cimento.
Só os loucos têm razão,
choramingos febre sezão ai ai Deus.
Talvez as chuvas de verão
me tragam abrigo
e agosto, época de seca,
me chova torpezas.
 
 
Vertigem das baixezas
 
Os alpinistas escalam a morte.
Também sei o perigo do cume,
mesmo sem me deslocar,
sei o alpinismo dos olhares submersos
que me fazem perder o pino.
 
 
A arte do corpo
 
Numa dessas Bienais de São Paulo,
vi de longe, sozinho, passarinho,
o poeta Mário Quintana.
 
Durante anos a imagem – peixe azul – me perseguiu.
Por fim, entendi a recorrência:
 
Mário Quintana era móbile,
magra body-art,
andar performático,
existência conceitual,
em seus parangolés de ossos e calvícies,
em sua lígias & papes
de velho movido a arame,
seu corpo virtual,
ali, entre os cimentos desarmados do Ibirapuera.


Ilustração: Jean Fautrier


Ronaldo Costa Fernandes ganhou, entre outros, o Prêmio Casas de las Américas, Revelação de Autor da APCA, Guimarães Rosa, Bolsa de Literatura da Fundação Cultural de Brasília e o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2010). No final de 97, publica o romance Concerto para flauta e martelo, pela editora Revan, finalista do prêmio Jabuti-98. Ainda no ano de 1998, edita o livro de poesia Terratreme. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Publicou os seguintes livros de poesia: Andarilho (2000, SetteLetras), Eterno Passageiro (Ed. Varanda, 2004). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo. Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras. No final de 2010, saiu seu romance Um homem é muito pouco, da Editora Nankin. O livro de poesia Memória dos Porcos, da editora carioca 7Letras, foi lançado em 2012. Pela mesma editora, publica O difícil exercício das cinzas (2014), Matadouro de vozes (2018), A invenção do passado (2022) e A trama do avesso (2024). Em 2019, publica o romance Vieira na ilha do Maranhão (7Letras). A Academia de Maranhense de Letras publica em 2024 o ensaio Narrativas da vida: o personagem do romance.

Respostas de 4

  1. Voltei a reler e gostei muito de “O tempo – animal que não envelhece,/ nós é que passamos por ele/ como alguém que acena de um ônibus/ para a imobilidade saudosa/ de um bar à beira da estrada.”

  2. Quando eu estava lendo os poemas de Ronaldo Costa Fernandes, parei justamente nas imagens deste trecho. O poeta consegue nos conduzir na ação que entrelaça os versos. Um bar à beira da estrada num aceno me lembrou do final do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa. Grande sacada a respeito do Senhor Tempo!

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