Era uma vez um bairro pacato. Dentro de uma cidade alucinante. Dentro desse mundo chamado Terra. Talvez a cidade ficasse no Ocidente. Mas pode ser também que estivesse no Oriente. Não importa. O que importa é que neste bairro havia dois prédios gêmeos. Um amarelo. Outro azul. Eram tão amigos que suas vistas davam de cara uma pra outra. Eram felizes. Duas portas de vidro enormes e idênticas revelavam o sorriso de cada um deles. Mas o mais curioso era quando as vistas se abriam e revelavam pra dentro o que estava de fora. Mas nem sempre só o que estava fora. Às vezes também o que estava dentro do outro.
Eita que essa história está ficando complicada.
Mas o que importava mesmo era quando as vistas se abriam. Às vezes elas se abriam juntas, às vezes as vistas apenas de um dos dois se abriam e davam de cara com a vista do outro fechada. Essas vistas, por dentro, tinham enfeites de todas as cores e formas. As do apartamento do Luís eram bastante interessantes. A mãe dele adorava pendurar muitos enfeites no varão com a cortina transparente e mesmo ela sendo transparente, se ficasse fechada, o Luís tinha dificuldade de enxergar dentro das vistas do prédio azul. Porque ele morava no amarelo, naturalmente.
Eita que essa história está ficando complicada.
Mas o que importava mesmo era quando as vistas se abriam. Às vezes elas se abriam juntas, às vezes as vistas apenas de um dos dois se abriam e davam de cara com a vista do outro fechada. Essas vistas, por dentro, tinham enfeites de todas as cores e formas. As do apartamento do Luís eram bastante interessantes. A mãe dele adorava pendurar muitos enfeites no varão com a cortina transparente e mesmo ela sendo transparente, se ficasse fechada, o Luís tinha dificuldade de enxergar dentro das vistas do prédio azul. Porque ele morava no amarelo, naturalmente.
Imagem: Joan Miró
Quando as vistas à frente eram abertas, o Luís, que era um menino curioso, ficava de olhos colados nelas. Isso porque, mesmo de longe, ele via que uma senhora muito da diferente vivia por lá. As vistas dela eram tampadas com cortinas escuras, talvez pretas mesmo. E não era sempre que eram abertas. Aquela senhora era peculiar: parecia que algo muito esquisito acontecia com ela. Às vezes o Luís esfregava as mãos nos olhos dele pra ver se não era um embaçamento de vista (da vista dele). Pois ele chegou à conclusão que não era. A tal vizinha da vista sete do prédio azul era mesmo diferente. Tinha uma cabeça desproporcional.
Ela lembrava aquela rainha cabeçuda daquela história da menina do país das maravilhas. E, dessa forma, foi assim que apelidou a vizinha. Para os íntimos, rainha. A cabeça era tão grande a ponto de parecer que ela se enroscava na porta. Algumas vezes, forçando a vista, o Luís percebia que ela até tentava sair pela porta (nessa altura ele já tinha até providenciado de presente de aniversário um binóculo, para acompanhar melhor aquela rainha), mas ela não conseguia. Muitas vezes ela insistia, e ele achava muito engraçado, aquela senhorinha de corpo tão miúdo lutando para que os batentes das portas deixarem em paz sua cabeça. Tudo em vão. A rainha não saía de lá de forma alguma.
Mas, curiosamente, em outros dias muito claros, completamente iluminados pela luz do sol intenso que teimava em visitar de manhã a sala do Luís e à tarde a sala da rainha, a senhora conseguia tranquilamente passar pela porta. E sua cabeça estava do tamanho quase normal. Não parecia nada nada com aquela cabeça de balão de outros dias. Mais uma vez o Luís esfregava os olhos pra ver se era a mesma pessoa de cabeça menor. Será que eram gêmeas?
O curioso é que nunca havia visto lá dentro mais de uma pessoa. Mais curioso ainda é que o Luís se pôs a ser o
detetive a desvendar o caso da rainha do prédio azul. Não pensem que eram os detetives do prédio azul, hein? Era mesmo a rainha que morava no azul. Provavelmente era vizinha dos famosos detetives. Mas ele não teve a felicidade de conhecê-los. E nem precisou, porque criou um método próprio de investigação. Não fazia mais nada na vida além de acordar mais cedo quase todos os dias pedindo aos céus que a vizinha tivesse deixado a vista dela aberta pra ele investigar. Alguns dias era dito e feito. Mas na maioria das vezes a vista estava mesmo fechada. O jeito era inventar tudo quanto era virose pra poder faltar da escola e investigar a fundo o caso. Não era possível alguém ser tão cabeçuda desse jeito um dia e no outro estar com a cuca fresca e vazia.
A mãe do Luís já começava a ficar preocupada com tanta virose que o filho pegava. Já estava querendo até deixá-lo na casa da avó, com medo de que o menino tivesse um pirepaque enquanto ela estivesse no trabalho.
O Luís ficou tão preocupado de ficar longe das vistas da rainha, que maneirou nas “viroses”. Ficou mais de um mês comportadinho indo pra escola todo santo dia.
Mas não é que até lá na escola parecia que a professora dele era meio cabeçudinha? Sabia, não porque tivesse
aprendido por lá, mas porque a mãe era artista do desenho e tinha milhares de livros, desenhos, quadros e tudo o que era coisa de artista e pintor pela casa, que havia em algum lugar alguém que tinha desenhado um homem com medidas e tudo. Lembrava de um homem pelado, bem musculozinho, dentro de uma roda e um quadrado. Achava aquele desenho tão engraçado! E sabia que uma hora ele serviria pra alguma coisa além de imaginar esse homem se livrando do quadrado que o prendia e rolando no chão dentro de uma bolinha pela sala da casa dele. Era tão divertido imaginar esse homem peladão rolando por aí.
Procurou nos livros da sua mãe e achou a figura: era nomeada “o homem vitruviano”. Ele era perfeito. Parecia um homem de verdade. Andou lendo um pouquinho sobre ele e compreendeu que aquele desenho era mesmo a representação de um homem de verdade. Tão proporcional! Descobriu depois que um monte de gente tinha estudado até matemática com essas medidas perfeitas. Ai! Cada coisa que esse povo adulto inventava! Ele preferia mesmo era imaginar o homem rolando por aí. Quem sabe um dia ele entenderia melhor essa coisa de matemática. Até pensou em perguntar pra professora. Ficou tão curioso que sentiu vontade de ir pra escola tirar a dúvida.
Mas voltando à vizinha, ela não tinha quase semelhança alguma com ele. Pensa num corpo humano dividido em dois: cabeça na parte de cima e todo o resto na de baixo. Era assim que era ela. Ficou matutando até como devia ser difícil pra rainha se equilibrar com aquele cabeção todo! E não é que ele também achou nos livros da mãe dele imagens que se pareciam com a rainha cabeçuda? Era um livro de toy art. Ele sabia que toy era brinquedo (principalmente por causa do filme Toy story, né? Ele era dez anos mais novo que o filme, mas os pais dele adoravam o desenho e mostraram pra ele que, claro, gostou também.). E art só podia ser arte, né? Será que a rainha era um brinquedo gigante? Continuou investigando nos livros da mãe e também na internet. Descobriu tanta coisa legal sobre essas coisas todas! Mas não viu nada absolutamente sobre um toy art gigante e com vida.
Lá na escola observou atentamente a professora. A cabeça não era assim tão enorme quanto a da rainha, mas se dividisse o corpo em quatro, a cabeça seria a ponta de cima. Que maluquice! Nunca ele tinha observado a cabeça da professora. Pra ele ela sempre tinha sido normal. Mas, como ficou muito tempo mais preocupado com a cabeça da vizinha, achou que o detalhe da professora tivesse passado despercebido.
Fato é que certo dia, bem num fim de semana ensolarado, daqueles que fazia uns 45 graus na sombra, ele teve tempo e paz (ficou sozinho em casa a tarde todinha por escolha própria) para se colocar a postos em sua vista enfeitada (afastando obviamente todos os penduricalhos da mãe), de binóculo nas mãos e uma cadeira na bunda. Dava uma certa distância entre a janela e ele, não ficava colado no beiral pra que a vizinha não pudesse
desconfiar de nada.
Aquele dia ensolarado foi o ápice: a rainha cabeçuda apareceu caminhando alegremente pela sala de cabeça igualzinha à do homem vitruviano. Não era possível! Luís chegou a pensar que estivesse ficando maluquinho da silva.
Ficou à espreita durante toda a tarde. A vizinha recebeu uma ligação. Parecia que, pelos gestos dela, alguma
coisa não estava indo muito bem por lá. O Luís começou a sentir um calor tão grande, que até parecia que o ar condicionado tinha pifado. Foi conferir… e nada do ar estar quebrado.
Quando voltou, qual não foi a surpresa dele em avistar a vizinha cabeçuda! Ficou furioso! Aquela senhorinha só podia estar brincando com ele. Ela devia saber de tudo. Devia saber que ele a espreitava toda a vida pelas vistas dos prédios. E ela ainda andava deixando cada vez mais a cortina aberta. Pra ele assistir de camarote a brincadeira que ela fazia com ele. Mas também! Por acaso ficar vigiando a janela alheia é coisa de se fazer?! Era um castigo pra ele! Só podia! Ela estava deixando o Luís assustado e furioso!
Achou melhor nem continuar a investigação. Guardou binóculo, baixou a vista da sua sala e nunca mais foi futricar onde não era chamado.
A cidade continuava alucinante. Os prédios continuavam muito coloridos alegrando a rua com seus sorrisos largos que se abriam automaticamente quando alguém autorizado podia passar da porta.
A escola também era um prédio interessante. Toda redonda, era uma enorme construção pós-moderna, toda espelhada. Tinha também alguns andares. Mas, diferente dos prédios, sua entrada não sorria. Eram portões enormes, de ferro, pintadas de azul royal (até se pareciam com a cor do prédio azul), mas eram muito mais sérias essas portas e portões. Havia mesmo um peso em observá-las. Será por isso que a molecada toda não se sentia tão acolhida assim entrando lá? O cimento e as paredes estavam presentes em quase todo o espaço. Pouco verde natural. Alguns apenas em uns vasos e outros ainda artificiais. Poxa! Como era duro passar tanto tempo num lugar cheio de cimento e parede e ar condicionado! Nem um calorzinho eles passavam lá. A coisa mais estranha do mundo era suar. Mesmo num lugar que fazia 45 graus à sombra.
Já em casa, apesar do prédio sorrir, não havia muito verde, nem terra. O jeito mesmo era ficar inventando moda, investigando vizinhos. Porque a mãe dele era a mãe mais esquisita do mundo. Enquanto todo mundo do sexto ano do fundamental já tinha seu celular, ou i-pad ou qualquer outro eletrônico e navegava na internet livremente, ele não podia fazer isso. A mãe não deixava de jeito algum ele pegar nem o celular dela. Que chatice!
Um dia, na escola, mais especificamente, na sala de aula, com a professora-esboço-de-rainha-cabeçuda, ele teve uma surpresa. Observava-a ao fundo, em pé, ao lado da mesa, tentando de alguma forma se fazer ouvir pela criançada toda (criançada? Eles já tinham 11 anos!), que estava na sala na função de assistir uma aula de – adivinhem? – matemática. A professora tentava falar, mas parecia que a voz não saía. Luís, que estava no fundão, não ouvia uma centelha de voz da professora. Mas ouvia em alto e bom som a voz do Roberto, do Gilberto, do Maneco, do Lutreco, e até da Ingrid (essa era a queridinha de todos os professores). Será que a professora estava mesmo sem voz? Foi chegando perto, como quem não quer nada, pra ver se o que ele estava vendo era mesmo o que acontecia! Não é que a professora tinha voz! E não era pouca, não! Ela estava mesmo se esguelando pra ser ouvida… mas não era possível. Eram mais de vinte alunos disputando com apenas uma voz. A batalha estava perdida.
A professora se cansou (decerto ficou com a garganta dolorida) e sentou-se na cadeira entregando os pontos. A baderna continuava a correr solta.
Luís também se sentou. Mas quase na frente da professora. Não tinha coragem nem de falar com ela. Falar o quê? O jeito era ficar quieto, pra dar um apoio moral pra ela. Ficou na dele. Observava apenas a expressão de desolamento dela. E a cabeça, que estava perfeitamente nos moldes vitruvianos, começou a inchar lentamente. Como quem não quer nada, a cabeça crescia e crescia e só o Luís percebia. Nem mesmo ela, a dona da cabeça, conseguiu perceber a magia. Cabeça inchada. A ponto de explodir. O Luís ficou paralisado. Só sabia olhar com os olhos esbugalhados pra cara da professora. Chegou num ponto de tamanho inchaço que foi impossível não perceber. A cabeça da professora estava literalmente a ponto de esmagar todos os alunos dentro da sala de aula. Era impossível sair correndo, porque nessa altura a professora já tinha se levantado e tapava com a imensa cabeça toda a passagem da porta. Pular das janelas não era opção, já que estavam no terceiro andar do prédio da escola.
E então? O que todos iriam fazer? A cabeça crescia enquanto os alunos gritavam e gritavam, já não corriam mais porque não tinha mais espaço. Alguns alunos mais sensíveis começavam a perder o ar. Também! Com um nariz gigante daquele da professora respirando, não sobrava ar pra mais ninguém.
E assim, quase sem ar, todos foram ficando quietos, mudos e até encolhidinhos. Ufa! Que alívio! O silêncio estava instalado. Nessa altura, nem a professora se atrevia a abrir a boca pra falar (sabia-se lá que voz gigantesca e bafuda sairia daquela bocarra), nem alunos conseguiam ter fôlego pra dar um pio sequer.
A paz sonora se instalou na sala. Só silêncio.
A paz estava lá fora! Mas dentro de cada um deles estava o caos que eles instauraram na sala. Nem respirar pra acalmar era possível. A professora, que estava assustadíssima com sua cabeça crescendo sem nem ter comido nenhum bolinho que aumenta tamanho, no silêncio instaurado começou a relaxar.
Relaxando, soltou a tensão dos ombros, relaxou braços e dessa forma foi liberando o corpo inteiro. A cabeça
parecia dar ares de querer diminuir. Será?
Deve ter demorado uns quinze minutos pra cabeça começar a desinchar. Lentamente, a professora foi inspirando quase todo ar da sala, relaxando todo o corpo, inclusive a cabeça, ouvidos e garganta, a ponto de a cabeça começar a murchar. Nesse ponto, a única solução pra criançada toda era também silenciar e relaxar o máximo possível, porque eles não tinham como fazer nada mais. Assim, a cabeça foi desapertando o pessoal de dentro da sala. A professora começou a conseguir movimentar a cabeça de novo. Mas ainda estava tudo muito grande de pesado. Mais inspiração pra acalmar e a expiração controlada e lenta da professora ia esvaziando a cabeça como se esvazia uma bexiga na mão. Dali algum tempo, a professora não era mais cabeçuda e estava linda nos moldes vitruvianos. E as crianças nunca mais seriam as mesmas na sala de aula nem na vida.
Aquele dia estava quente. O sol queimava lá fora assim como os miolos da professora queimavam lá dentro da cabeça dela. Poderia ser até que estivesse tão quente quanto o dia em que a rainha inchou a cabeça aos olhos do Luís. Será que era luz do sol em demasia? Seria muita iluminação? Seria muita informação? Seria muita tensão?
Isso nunca ninguém soube responder. Até porque nunca alguém tocou no assunto da cabeça inchada da professora. Eram mais de trinta alunos na sala e nunca nenhum deles teve a audácia de mencionar qualquer parte daquela situação em toda a sua vida.
Até mesmo Luís, que havia presenciado duas vezes esse fenômeno a olhos nus, fora todas as outras vezes que viu a vizinha emperrada na porta e outras tantas que a viu desfilar por ela livre e solta, nunca tocara no assunto com ninguém.
Mas a cidade continuou a mesma. Os prédios, as ruas, a escola, a Terra. Tudo no mundo funcionava como poderia ser. Seja no Ocidente, ou no Oriente. O sol queimava, a neve caía, o vento soprava, as águas moviam-se influenciadas pela Lua, os prédios sorriam e os muros e portões sufocavam o quanto cada ser pudesse sentir apenas observando a paisagem.
Anos depois, Luís ainda morava dentro daquele prédio amarelo tão vivo. Ainda tinha o prédio azul como gêmeo. Almas gêmeas cimentadas. As vistas de todos eles se abriam de acordo com as almas que habitavam cada apartamento. Cada vista com suas peculiaridades. A dele não tinha mais os penduricalhos da mãe, que tinha partido. O bairro ainda era pacato numa cidade caótica. A vida ainda era como era possível se pintar.
Às vezes Luís acreditava ver uma nova alma cabeçuda, já que a rainha havia sumido há um bom tempo das vistas dele. Sem explicações e nem conclusões. Apenas havia desaparecido.
Muitas vezes se sentava à frente da sua vista e pensava se não era tudo criação da mente inchada que ele mesmo tinha. Será que ele não era iluminado demais pelo sol toda manhã? Será que não era a mente dele que inchava tanto? Disso nunca soube. O que soube é que, depois da professora, o fenômeno nunca mais foi presenciado por ele.
Daniela Aguas nasceu em São Paulo, em 1980, mas vive a vida toda em São José do Rio Preto, onde se formou em Letras pela Unesp. Mãe de três filhos, hoje se dedica a contar histórias para crianças (e para os adultos), é instrutora de yoga (principalmente para crianças) e atelierista (com projetos de expressão artística em várias linguagens). É amante dos tecidos e costura quando pode, criando cenários, bonecos e objetos utilitários.