6 poemas de “Tratado das veias” de Rita Santana

Intervenção: Mauro Coelho
 
LIVRO
 
 
Lanço-te, marujo!
Urge o arremesso do desbravamento,
O amansar da fúria contida nos
dicionários.
Estende o teu olhar pras gentes e vê o
que querem.
Vê o paladar apurado do povo,
Agita os braços ante o infante de
leituras.
Dou-te todo o meu mar salgado,
Minhas mulheres que choram e riem alto,
Minhas noivas dispostas ao divórcio das
prendas,
Arquétipos da minha avó cabocla.
Vai, marujo!
Arrisca teu perfil às tintas, ao incesto
das editoras,
Aos naufrágios à beira da porta,
Aos críticos que rasgarão teu ofício de
dias.
Vai, portuoso!
Beija na boca todas as mulheres que
querem teu beijo,
Todos os homens dispostos ao risco,
Abre teu pórtico de páginas aos servos,
aos escravos,
Aos que vivem sob vigências de feudos
modernos.
Vai, marujo! Gruda nas casas novo ato
de liberdade,
Conspira com os nossos,
E toma da noite sua embriaguez,
Sua inspirada subversão de Musa.
Vai, marujo!
Lança-te ao Mar com tudo que nele há
De Pessoa, de Neruda, de Carlos, de
Adélia,
De Cora, de Bandeira, de Clarice, de
Lorca.
Vai! E afoga meus navios velhos, viola
minhas certezas,
Viola minhas mentiras, meus fingimentos
de Poeta,
Viola minha caixa de Pandora,
Meu anonimato, meu suicídio diário,
Minha textura de negra, minha candura
de puta.
Vai! Antes que eu me lance sem âncoras,
Pois que deixo velas, remos e medos
muitos.
 
 
 
AI DE MIM!
 
 
Deu de abrir comissuras na minha pele,
Porque ele partiu.
E nunca mais voltou pra minha alcova,
Pro meu convento de moça,
Pra minhas paúras,
Pra minhas pioras de noiva,
Pros meus pincéis de Almodóvar,
Pra minha cova roxa.
Eu fico esperando volta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!
 
Deu de abrir fissuras na minha boca,
Porque ele partiu.
E eu fiquei oca,
Fiquei seca,
Virei louça,
Vivi morta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!
 
Deu de abrir fendas no amor,
Porque ele partiu,
E nunca mais voltou.
Eu sucumbi ao sol:
Comi calêndulas,
Girassóis feridos,
Flores de abóboras,
Serpentes de vidro.
Abri a porta e gritei:
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!
 
 
 
ANEMIA
 
 
Às vezes vida escapa-me.
Apatia de mármore inflamado me toma,
E eu, lesma buscando casa, apenas
deixo.
Adiar favores, pagar prendas, esconder
anéis,
Disso tem sido meu tapete, minha toalha
de mesa,
Minha colcha amarrada de retalhos.
Vacuidade – eis meu passatempo –
vontade de nadas.
Abrigo azulado de saudades rubras.
Trazem-me as ânforas do desejo, o
espelho, as vestes.
Faço usanças de provérbios, de preces
de benzer mau-olhado.
Madrinha não me deu magia!
Roubei-a num beijo,
Onde queimei meus lábios.
Roubei alquimia nos becos dos livros
que li.
Roubei de uma casta a lira
Que adormece meus calafrios,
Ameniza minha febre,
E trepa com meus versos brutalmente nas
madrugadas ardidas.
A vida infligiu-me o asco, a
penitência.
Arroto alto meus vícios.
E durmo: senhora e rainha.
Abarrotada de almas.
 
 
 
Ilustração: Reza Negarestani
 
AZUL
 
Sou de uma tristeza surda, funda.
Ando cansada das pernas,
Pois o meu amor brincou de picula,
E o sonho gargalhou migalhas nas
toalhas de rosto,
Nas marcas pintadas do meu rosto,
Nas tralhas velhas da minha fotografia.
 
Ando azul porque não me reconheço
gente.
Sou o próprio azul, simples, etéreo,
incorpóreo,
Dos maios, dos setembros foscos de
tanto sol,
De tanta ardência, dos poetas mais
plácidos.
Azul dos palácios encantados, azul das
moscas azuis,
Das estrias recobertas por cremes de
milagres,
Azul da minha saudade-não-sei, de tanta
coisa ida.
Tantas promessas me prometi,
Foram tantos os protestos advérbios,
Tantos esticamentos de veias,
Numa garganta de cobre fundido em ouro
dos mais puros.
 
Estou em apuros porque sobrevivi até
mais tarde,
Mas carrego mortes que desconheço
porque sou pobre:
Deixei de estudar filosofia,
Deixei de fazer poesia,
Deixei de ir ao encontro do sol.
Perdi a maria-fumaça da minha infância,
Pra uma indústria de cacau.
Perdi os leões de mármore da minha
infância,
Pras chácaras dos coronéis.
Perdi minha alegria
Pra essa incompetência diante da vida.
 
Não sei tratar dos amigos.
Sei tratar alguns peixes, mas dos
homens não sei.
Suas escamas crespas,
Vísceras rubras demais pra minha
paciência dilatada.
São flamas demais entre nós, os amigos.
Perdi e encontrei terezas, jorges,
tonhos, miguéis, primos,
Aluguéis, janelas, gudes, bordados,
assovios, cartas de amor,
Fraudes descartáveis, autorias
duvidosas, alarmes, amores…
 
Perdi também palavras raras, livros,
Sonetos, versos de adolescer,
Pus, espúrios párias, pipas, chances,
Galhos secos ofertados à ilusão,
Sangue, suores, caldos de gozos raros,
Disparos de olhares que não vi,
Envelopes, vozes, madrinha, ruas,
pessoas,
Esperanças, alianças, presentes,
Crianças, avós – todos os avós já
perdidos – analices e luzias.
Faço qualquer coisa pra resolver
A inapetência diante da praticidade dos
futurosos,
Dos que já deram certo, dos corretos,
dos sem dores,
Dos bem-sucedidos, dos resolvidos,
simplórios,
Dos que têm dor de dente
Mas não sabem o que é dor de alma.
 
Pois tenho urgência é de alegria,
mansidão.
Sou um azul, azulzinho escuro, claro,
Azul céu, azul serpente, azul maçã,
Azul molho-de-tomate-elefante,
Azul clarinho, quase branco, azul
amianto, azul-ami,
Azul trinta, azul balzaquiana louca,
azul mulher, azul negra,
Azul esquisita, azul Rita, azul Dione,
azul sul-da-Bahia,
Azul alegria, azul saudade,
Azul idade de envelhecer vez por todas,
Azul sem roupa, azul peruca,
azucrinada, que nada!
Azul Ferreira Gullar, azul minha boceta
cor-de-rosa,
Azul cerveja, azulilás, aliás, azul
pirraça.
 
 
 
BÊNÇÃO
 
 
Apeio o peito sobre a saudade que arde
a carne,
Sem consolo possível no solo das
desesperanças.
Herdei de meu pai pujanças, bravezas,
E de minha mãe a fragilidade animal das
fêmeas.
Por isso tenho tudo!
Posso despregar o afeto como macho
cansado faz,
Posso abandonar as armas, trêmula,
porque morro.
Tenho grandes, pequenos e verdes medos,
Sou mulher de agora, de hoje,
Tenho hábitos de galo e caprichos de
galinha.
Falta o dicionário farto em suas
doações doces de fonemas,
De raízes, arcaicas presenças de verbo.
Doarei o dia à paz, ao abandono das
preocupações.
Tratarei da poesia, minha parceira de
demolições e alvenarias.
Quem me dera só ser, sem bruscas
mutações,
Mas o corpo oscila na regularidade do
ciclo.
Endoideço alguns dias porque virá a
sangria
E entrarei no templo das penitências,
Fitando meu Deus com acusações humanas.
Sou esse fruto peco das diásporas,
Minha veemência é minha mordaça,
Assim têm sido meus dias de santa,
casta, pacata,
Senhora de um Deus-homem.
Desacato porque sorvo substantivos,
substâncias,
Essências de nomes, dores, fantasias.
Desacato porque sou poeta.
Tenho língua de fontelas, hildas.
Sou muito brava para donos
E afeita a clamores de desprotegidos.
Tenho tudo sob meu viaduto-castelo.
Sou rata e rainha.
 
 
 
CIÚME
 
 
As imagens frequentam o meu palácio,
Ganham janelas e cômodas, visitam gavetas.
Masco o meu ciúme sem defesas, sem
gravetos secos,
Sem dedos em riste.
Só, eu e o meu palpite de fada negra.
Nas charnecas, deito o meu idílio de
dama cansada.
 
Arreio a ira, a febre de crime
passional,
Arreio minhas ancas duras de mulher que
tem querer,
Arreio meus seios moles de vaca parida,
Penso protestos feministas com camas
nas calçadas.
Que nada!
Tudo são dunas de mulher perecedora,
Vento carrega e a alvenaria se faz
noutro lugar.
Cozo abóboras amarelas inteiras,
Preparo recheio de confissões de dengo,
E arrumo o quintal pra festa.
 
O que me resta é entrar na roda e
tergiversar
Ou só versar, tocar minha lira,
E virar Safo de mármore na praça de
Ilhéus,
Minha Lesbos abandonada.
Gritos, gemidos de gozo mudo, orgasmos
de madalenas,
Poemas inteiros dedicados ao Farol, ao
Raio.
Deixo meu afeto ao Sol e viro grama.
 
 
 
 
 
Rita
Santana
é atriz, escritora e professora de Língua Portuguesa na Rede Estadual de Educação do Estado da Bahia. Em 2004, foi uma das premiadas no Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Logo depois, o seu livro Tratado das Veias (poesia) foi publicado pelo extinto selo Letras da Bahia, em 2006. A Editus publicaria o seu Alforrias (poesia) em 2012.  Participa da antologia Outro Livro da Estante organizada por Herculano Neto e publicada pela Mondrongo em 2015, com o conto Ondas, Trânsitos e Trilhos, além de ter o seu poema Adusto publicado na revista organismo, projeto do Editor Jorge Augusto, organizada por Ederval Fernandes e Alex Simões. Em 2105, participa da FLICA, em Cachoeira. Ainda em 2016 participa na Colômbia do XVI Festival Internacional de Poesia de Cali e do III Encuentro Internacional Mujeres Poetas Em El Camino Del Café País De Las Nubes.
 

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