O desguardador de dores
em suas retinas
as imagens imóveis não codificam
as ânsias que lhe habitam…
e não pela vez primeira
um sorriso urgente molda-lhe o
semblante
adolescendo as esperas
e contemplando o segredo das
auroras…
quais mármores espedaçados
suas palavras pedem o gume do
vazio
pois os organogramas das manhãs
já diluíram o faro das suas
reminiscências…
e mais uma vez
os sabiás de voos dourados
que lhe gorjeiam
e apontam o sol
desatestam o
óbito do devenir
sem surpresas
cortando o pulso das horas
lateja em sua fronte
a mesquinhez acrobática do
cotidiano…
e novamente amadurece em seu
olhar
o néctar que reinventa os jardins
que colorem os colibris do sonho
a flor negra na lapela do tempo
espreita os seus passos matinais
enquanto os arranha-céus da
solidão
ocultam o sorriso dos
flamboyants…
e salvaguardando-se com silêncios
ele grita a liberdade
sempre
assim…
e assim ele segue
sempre
e sempre
aguardando andores
desguardando dores…
Contemplador de silêncios
branco de sonhos
ele não brinca de senhas
e enovelando os flocos da solidão
busca a meada e o fio
das coerências da silencitude
ausências retesadas não leem suas
linhas
nem alinham suas mãos
que driblam o casulo dos
desejos…
qual voo desfeito na falésia
é a sensação do agora
– há presságios refletidos
no vazio
das ruas minguantes que lhe acenam…
acolhendo o lapso que apazigua a
dor
ele recobra o estatuto da aurora
e clareia-se em passos de cirandar…
comete dádiva dourada
e a tácita taciturnidade da
surpresa
que instiga a desinquietude
pelos postigos da essência…
e tirando os véus do seu mergulho
ele renega as setas do delírio e
da angústia
retornando ao imponderável
instante
fincado no desvelo inconsciente
– seus pilares
neurônicos latejam
sem excessos e sem punhais…
ante a libido esfarelada da
emoção
e a pulsão das estranhezas
reveladas
ele queima a carta de despedida
vai ao espelho
recolhe a lágrima banal e insana
reprime o transgressivo grito
desmelancoliza-se
reordena o seu vir-a-ser
e renova-se em estado de
silêncio…
Gaivotas
Na barca veleira
dos meus sentimentos
gaivotas pousam cansadas,
como a procurar as luzes efêmeras
das pálpebras do tempo…
Em revoadas, tecem auroras
no vértice das chegadas e
partidas
que me eternizam lembranças…
Estas gaivotas
me ardem palavras matinais
e, à noite, confundem-se
com as estrelas irrequietas
do meu espaço mental…
Deixam-me insone
para vigiar as minhas intenções
e o sarcástico segredo
do fogo dos desejos
ante as dádivas das direções
anunciadas
pelos anjos sem trombetas…
Estas gaivotas
emprestam-me suas asas
para que eu sinta
|por entre as sombras das
realidades caolhas|
a leveza de um novo olhar
no claro-azul das mutações
circundantes…
Estas gaivotas
reinventam rotas nas minhas
retinas…
Adornam a minha solitude:
entendem as certezas dos meus
desalentos
e equilibram o voo
das minhas incertezas…
Caravelas
E descubro nestas caravelas
as paisagens levitadas em
sintonia
com os pássaros e estrelas…
naturalmente translúcidas
não precisam de carta das marés
talvez das auras que arejam o espírito
e
edificam passadiços para
a estesia do ser… …
de repente
milhares de milhas são vencidas
sem as incursões de corsários
e sem os rangidos
das noturnas lendas dos mares
nos ares
os ecos azuis dos vilancetes
desancorados das amuradas
e refletidos nos rochedos
flamejantes
convocam os ventos
para turnos extras de renovos
e para embalar a solidão
das sonâmbulas nuvens
cravejadas de elegias…
e vejo sobre o convés principal
destas caravelas
vistosos cavaletes
com telas tridimensionais
e nelas
prismas e pincéis de sóis
a delinear símbolos lúdicos
e a recriar elos de primazias
intermináveis…
há códigos discretos
nas velas dianteiras destas
caravelas…
inconvencionais mensagens
[quais champanhas
com sabor de segredos]
aos navegantes da essência.
Velho relógio de parede
Ah, este velho relógio de parede
irritando as horas,
no convés do mundo,
tentando pôr os ‘ires e vires’ no
ponto…
minutos e segundos
que consomem nossos ouvidos,
enquanto as vidraças
sorriem dos supersônicos…
Ah, este relógio antigo…
nele, o tempo desconhece
a velha engrenagem humana
na parede pregada
e sem ponto de fuga;
nele, as luvas das jornadas
renegam a impontualidade
do cantar dos galos…
E, a intervalos
nem tanto regulares,
há sempre algo a nos dizer
que o tempo não se assusta
diante do espelho,
nem sente falta de um divã na sala
de estar,
tampouco se impressiona
ante as acrobacias de um raio de
luz.
Em ponto de cruz,
o tempo borda imagens,
à frente das carruagens
cerzidas com norte incerto,
perdidas num longo deserto…
Com tato, a noite traz o ponto de
contato
aos bichos e paisagens,
aos seres e edifícios,
aos desenleios e
desejos.
A penumbra é o ponto alto:
acomoda as cores da vida…
Nas avenidas, velhos semáforos
medem o caos;
no mar, os rastros do plenilúnio
dão o ponto de equilíbrio
do sentimento cadenciado pelo
mesmo vento
que proporciona o fecundo voo de
polens
e o susto breve da donzela na
escadaria…
E, na parede fria,
o enfadonho relógio a refletir o
tédio
e a repetir
a mesmíssima toada,
qual uma ciranda de ganidos
que demarcam um ponto.
Isto é ponto de honra
e nunca se abala.
Relógio de ponto
em ponto de bala.
Relógio sem pulso
a pulso na sala;
qual ponto-limite
ou ponte de sal…
Um tanto torto,
em ponto morto,
sem ponto… a/final.
Ilustrações: Vladimir Kush
Rubenio Marcelo é poeta escritor, compositor, ensaísta e revisor. Membro titular da Cadeira 35 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), da qual é atualmente integrante da Comissão de Cultura e foi secretário-geral (até outubro/2020). Autor de dez livros publicados e três CDs, destacam-se nas suas obras autorais mais recentes, além do CD “Parcerias”, os livros Horizontes D’Versos, Voo de Polens, Veleiros da Essência, Palavras em Plenitude (prosa e crítica
cultural, Ed. Life) e Vias do Infinito Ser (poemas, pela Ed. Letra Livre), este – já em segunda edição – indicado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) como leitura obrigatória para o Vestibular 2021/2022 e para o triênio do PASSE. É membro correspondente da Academia Mato-Grossense de Letras (AML). Foi Conselheiro Estadual de Cultura de Mato Grosso do Sul. Reside em Campo Grande/MS.
Respostas de 2
Todas elas muito bonitas… Em velho relógio de parede você se supera. Aplausos!
👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻