
Goethe e Barrabás (Minotauro, 176 páginas), de Deonísio da Silva, lembra aqueles contos dos anos 70 publicados pelo autor no início de sua carreira, naquilo que eles tinham de mais interessante: a comicidade permeada por muitas citações e referências, estas já explícitas no título. O autor de Fausto e Os sofrimentos do jovem Werther é mencionado em toda a narrativa, tanto no que se refere ao pacto fáustico, como também ao tema do suicídio, passando pela lenda de que Goethe teria dito, como suas últimas palavras, que abrissem as janelas para entrar mais luz. O protagonista, por sua vez, é um professor e escritor que usa como pseudônimo o nome do personagem bíblico que teria sido escolhido pelo povo para se livrar da crucificação, sendo que Jesus Cristo foi o escolhido para morrer. Não por acaso, Deonísio acrescenta um subtítulo a esta nova edição do livro (a primeira é de 2008): As más escolhas que fazemos na vida.
Barrabás, ou Bar, para os íntimos, embora casado e cinquentão, namora com uma jovem que também tem nome bíblico: Salomé. Um amor regado a muito sexo e papo cabeça, já que a mulher também demonstra ter muita leitura, o que faz o professor se apaixonar ainda mais. A história parece num primeiro momento ser apenas de amor, mas outras tramas do livro (“É um romance quase sem tramas. Mas tramas para quê?”, diz um personagem a certa altura) demonstram que o enredo tem na verdade um teor político, na medida em que surgem personagens que mencionam a época em que vivem, e estamos falando dos primeiros anos deste século, portanto na primeira era Lula. Barrabás se mostra decepcionado justamente com aqueles que lutaram no tempo da ditadura e depois venderam sua alma. As más escolhas, portanto.
A minha decepção decorre de uma personagem que aparece e logo some; trata-se de Raquel, a avó de Salomé, que dá conselhos bem liberais para a neta no primeiro capítulo. Com um olhar peculiar para as coisas da vida, misturando experiência com erudição (“a idade e os novos tempos, além das minhas leituras, me levaram a mudar de rumo”, afirma ela), essa avó desaparece no restante da história. Confesso que li em diversos momentos pensando na sua volta. Uma boa personagem desperdiçada.
Isso, no entanto, não tira o brilhantismo do romance. Deonísio traz a luz que Goethe tanto queria. Um dos grandes nomes que surgiu no cenário literário nacional nos anos 70, o autor de Stefan Zweig deve morrer (leia a resenha sobre o livro aqui: https://cassionei.blogspot.com/2020/08/na-minha-coluna-de-hoje-escrevo-sobre.html), vem aos poucos reeditando sua obra, que não faz nenhum pacto com a mediocridade, como vem acontecendo com a literatura atual, que dá mais ênfase ao conteúdo do que à forma, como apontou a professora Walnice Nogueira Galvão em artigo recente para a Folha de São Paulo. Deonísio da Silva, para usar o título de outro de seus livros, sabe usar como poucos a ferramenta do escritor.

Cassionei Niches Petry é professor, escritor e crítico literário. Seu último livro publicado é o romance “Desvarios entre quatro paredes”, Editora Bestiário. Mantém o blog “Uma biblioteca na cabeça”: cassionei.blogspot.com.