6 poemas inéditos de Reynaldo Bessa

 

Busco na poesia

algo que me pertence,

mas que não sei o nome

é como um objeto num espelho turvo

– ou, no espelho, um objeto turvo –

esse objeto nunca será meu,

e não o quero de verdade

apenas anseio procurá-lo

como a mãe procura a criança

no filho que já cresceu.

 

*

 

Abandonar o outro eu

que pesa e descama

o outro eu de mim

que tenta vedar a porta

por onde escapa o pequeno

feixe de luz

soltar o outro eu

que cega e despista

o outro eu em mim

que tenta afinar o canto morto

e finge chorar a

minha ausência

esquecer todos os bons conselhos

e seguir a rota

aquela que permanece intacta

abandonar todas as bengalas

– como disse aquele quando aos prantos abraçou-se
ao cavalo de Turim –

cair e arrastar-me feito um verme

e só reerguer-me quando e enfim,

apenas eu estiver em mim.

 

*

 

– Foutez-moi la paix! –
Ele está longe e negociando em árabe
Leva armas para o afetado rei Menelik
Tudo está certo, até o poeta rejeitar a boceta da esposa do rei
Há poeiras e caravanas infindas
A bocarra sedenta do grande deserto
O sol como uma grande ferida sobre o tédio bilioso
Quase nenhuma poesia
O passado está submerso na fuligem da recusa
– Foutez-moi la paix! –
Armas sim, não escravos. Que fique bem claro.
Então, leões trucidam cavalos
e para devorar inválidos, aleijados, doentes, mortos…hienas esgueiram-se por
entre as brechas
dos grandes muros da cidade
Na sua ausência, Harar é assolada pela fome
O canibalismo mostra seus caninos de catedrais
O poeta troca o absinto pela morfina. Fazer o quê?
A natureza parece querer lhe cortar as asas e as línguas
Em Marseille, arrancam-lhe uma perna
Chora, não pela perna, mas pela mítica, e agora impossível Zanzibar.
Desperta de um cochilo, e em seu último delírio, chama o desconsolado Djami
para lhe ditar uma tarefa que nunca acontecerá.
Enquanto isso, na França, de pária, encrenqueiro, piolhento
passa a ser chamado de o pai da poesia moderna.
– Foutez-moi la paix! –

 

 

Não tenho pátria
E qual pátria eu poderia chamar de minha?
Essa onde cães em seus Armani comem os próprios filhotes?
Onde envenenam o pão suado
e riem dos sonhos mais nobres?
Não tenho para onde ir
E para onde eu iria em meio a esse caos?
Até na Índia – terra dos deuses,
lugar da árvore bodhi, da Ficus Religiosa –
há sede de sangue e lucro
Em qualquer lugar há essa necessidade de escravizar
Há dogmas, estatutos e morticínios em cada grão de areia, não?
Para onde se vá, pessoas são postas de joelhos, e
lhes garanto que não é para orar
Sou um apátrida com rg, cpf, pis e cartão de crédito
querendo sem querer, Indo sem ir, sendo sem ser
Um pária no centro da multidão
que acha que convive
Por essas e por outras
Fico aqui
dentro do poema,

feito um Moisés contemplando a terra prometida.

 

*

 

Gostaria
que a poesia pudesse parar a guerra.

O que
posso fazer além de estar aqui a escrever estes versos brancos de paz?

Gostaria
que os poemas fossem grandes argumentos em meio a esta discussão exacerbada e
confusa.

Gostaria
que os soldados, de ambos os países,

trocassem
livros de poesia ao invés de ódio e bombas. E

que a
única divergência fosse sobre a morte de Maïakovski.

Oh,
gostaria que os rifles fossem carregados com bombons para a felicidade das
crianças que agora se encontram tremendo de medo,  incerteza e frio.

Gostaria
que os soldados dentro dos tanques, sob as árvores, parados nas esquinas, nas
estradas, perdessem a hora, o tempo, o objetivo hediondo, porque estão imersos
e deslumbrados nos versos de Taras Chevtchenko, ou num texto de Gogol.

Gostaria
muito que a poesia pudesse parar a guerra – e o querer eu posso –

Mas
gostaria ainda mais que o presidente da Rússia fosse Alexander Pushkin, e

não
Vladimir Putin.

       

*

 

Barricadas foram erguidas

Muito sangue foi derramado

Ruas foram tomadas

O grito da insatisfação choveu nos piqueniques à
Renoir dos abastados e

supostamente felizes

Os estampidos, por noites e dias, perfuraram a pele
dos desmandos perfumados e

de barrigas cheias.

Rei e rainha tentaram fugir

Seus travesseiros com penas de gansos e seus
colchões macios foram esfolados

pelas facas das peixeiras francesas

Faltava pão e decência

Faltava justiça

O que perdemos?

O que não entendemos?

O que deixamos passar?

Para onde nos guiou a Liberdade, de Eugène?

Para onde foi a força dos seus braços quando erguia
a nação em farrapos

Para onde foi o aconchego, a promessa dos seus
seios fartos e tenros?

Muito depois, direitos foram estabelecidos

Mas e aí?

Mas e aí?

Pobres ficam mais pobres

Ricos ficam mais ricos

Os primeiros, em seus desesperos,

chafurdam misérias

Comem osso

Procuram um jeito de continuar existindo

Os segundos, em seus tédios,

Futilidades,

Vão ao espaço

Conquistar as estrelas

Buscar novos lugares para também

colonizar e destruir

 

 

Ilustrações: Dariusz Klimczak

 

 

Reynaldo Bessa é músico, escritor, poeta e professor. Já lançou sete CDs. O mais recente: Com os dentes, com músicas próprias sobre diversos poemas de autores brasileiros. Em 2008 lançou seu primeiro livro Outros Barulhos – Poemas (Anome Livros) – (Prêmio Jabuti 2009 – Poesia). Em 2011 lançou seu primeiro livro de contos Algarobas Urbanas. (editora Patuá). Pela Rubra Cartoneira Editorial (Londrina-PR), publicou o seu terceiro livro, Não tenho pena do poema (o segundo de poesia). Em 2013, lançou Cisco no olho da memória – poemas (Terracota editora/Selo Musa Rara), – Menção honrosa no Prêmio Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores – UBE-RJ em 2014 (entre a comunidade lusófona). Ainda em 2014, publicou o seu primeiro romance: Na última lona (Editora Penalux). Também pela editora Penalux editou os títulos: Do pássaro voando ao contrário – (poesia), A noite além de escura (contos), e o mais recenteEsta Vida Ou Outra Invenção (Poesia) – 2021 -. O autor tem poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês e grego. Foi jurado de grandes prêmios literários, entre eles o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Também escreve para sites, blogues, jornais de literatura, música e poesia. Tem contos, crônicas, poemas publicados em revistas, jornais, suplementos literários pelo Brasil e exterior. Ainda em 2021 lançou o seu novo disco – O futuro que me alcance – nas plataformas digitais.

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