Coluna Cunha e Silva Filho: Tradução de um soneto de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa (1888/1935)

       

O lendário Fernando Pessoa (1888-1935), lido e relido por multidões de leitores daqui e de além-mar, tão famoso quanto Camões (1524-1580) analisado e mais analisado por diferentes exegetas, em Portugal, no Brasil e em outros países, considerado, enfim, um bardo especial famoso pelos seus heterônimos e ortônimo, um poeta valendo por vários poetas, glória lusófona, com produção em prosa e verso cuja obra parece estar sempre crescendo pelo surgimento de novos produções, teve ainda fôlego para escrever versos em puro inglês, em francês e ainda foi tradutor de “O corvo,” “Annabell Lee”, “Ulalume’ de Edgar Allan Poe (1809-1849) e “Da Antologia Grega”, a partir da versão inglesa de W.R. Paton.
 
     No que tange aos seus poemas ingleses, deixou a seguinte produção que, até onde pude pesquisar, não foi grande: English Poems I-II (Antinous e Inscriptions, III (Ephitalamium) e 35 Sonnets (1918). Pelo menos é isto que ele revela em carta de 18 de novembro de 1930 a Gaspar Simões. Essa informação faz parte de uma “Nota Preliminar” do poeta da seção Poemas Ingleses constante da Obra Poética, volume II da Editora Nova Aguilar, 1977, organização, edição e notas de Maria Alieta Galhoz e de uma Cronologia da vida e da obra de Fernando Pessoa, de João Gaspar Simões. Releva assinalar uma observação que Pessoa faz quanto à composição desses poemas. Segundo ele, os poemas ingleses apresentam grande complexidade de composição, sobretudo os sonetos, esclarecendo, além disso, ao leitor que este precisaria de conhecer profundamente a língua de Shakespeare(1564-1616).*
 
       Informa ainda Pessoa que os poemas citados, Antinous e Ephitalamium, constituiriam com outros três poemas um “pequeno livro” englobando o que ele denomina “o círculo do fenômeno amoroso”. A esse “círculo, por sua vez, Pessoa designaria de “ciclo” imperial, assim distribuído: 1) Grécia, Antinous; 2) Roma, Epithalamium; 3) Cristandade, Prayer to a Woman’ body; Império Moderno, Pan-Eros; 4) Quinto Império, Anteros. Os três últimos, acrescenta ele, se achavam inéditos.”**
 
    Aos meus leitores, transcrevo abaixo o primeiro soneto, daquela série de 35 sonetos, e, logo em seguida, como de costume, a minha tradução bilíngüe. Vejam ele segue o esquema rimático do soneto shakespeariano (ababcdcdefefgg), i.e., três quadras seguidas de um dístico final:
 
Sonnet 1
 
 
WHETHER WE WRITE or speak or do but look
We e are ever unapparent. What we are
Cannot be transfused into word or book.
Our soul from us is infiniteley far.
However much we give our thoughts the will
To be oor soul and gesture it abroad,
Our hearts are incommunicable still.
In what we show ourselves we are ignored.
The abyss from soul to soul cannot be bridged.
By any skill of thoughts or trick of seeming.
Unto our very selves we are abridged
When we would utter to our thooughts our being.
We are ur dreams of ourselves suls by gleams,
And each to each other drems of others’ dreams.
 
  
Soneto 1
 
SE ESCREVEMOS ou falamos, ou apenas olhamos
Somos sempre indefinidos. O que somos
Não se pode transfundir numa palavra ou livro.
Permanece infinitamente distante de nós mesmos,
Por mais que permitamos à nossa alma pensamentos,
Fica distante a vontade de nossa alma e gestos.
Incomunicáveis ainda são nossos corações.
Aquilo que de nós revelamos não exprime o que somos.
Pois não pode existir ponte no abismo de alma a alma.
Seja qual for a argúcia do pensamento ou aparente artifício.
Apenas somos a síntese de nossas próprias subjetividades.
Quando transmitíssemos a ideia de nosso ser ao nosso pensamento
 
Somos os sonhos de nós mesmos, almas de brilhos vagos.
Os seres entre si sonham com os sonhos dos outros.
 
 
NOTAS
 
* Op. cit., p. 587-588. Não foi minha intenção desta vez fazer comentários mais pormenorizados à Nota Preliminar que, como já afirmei, é um esclarecimento sobre os poemas ingleses, em forma de carta, de Fernando Pessoa ao crítico João Gaspar Simões
 
** Op. cit., p. 589.
 





Francisco da Cunha e Silva Filho é Pós-Doutor em Literatura Comparada (UFRJ) e Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira, UFRJ) e possui uma vasta experiência na literatura e na educação. Ensaísta, crítico literário, cronista, tradutor. Colaborador de jornais e revistas. Autor, dentre outros, de Da Costa e Silva: uma leitura da saudade (1996); Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação (2009); As ideias no tempo(2010) e Apenas memórias (2016). Cunha é um intelectual multifacetado, com uma vasta trajetória acadêmica e profissional, que o credencia como uma voz importante no cenário cultural brasileiro.

Uma resposta

  1. Conheci mais retidamente Fernando Pessoa no início do curso de Letras. Li quase tudo do autor de Mensagem (curiosamente o livro dele que não aprecio tanto). Apesar de saber que Pessoa começou a escrever em inglês na infância, não conheço muito seus poemas vindo deste idioma. O certo é que eu quis me livrar dele, passei a achar repetitivo, maçante e até tiete falar que “gosto do Pessoa na pessoa”. Porém, ainda hoje o tenho, heterônimos e ortônimo, como fonte de inspiração. Como sempre me lembro de poucos autores, eu me apego àqueles poucos. Fernando Pessoa é um destes poucos da minha avulsa e pequena biografia. Ver este poema traduzido por Cunha, faz-me sentir a segura proximidade com os dois autores, o tradutor e o traduzido. Que venham outras traduções das muitas que nosso douto amarantino tem guardado (parecido com o autor do O livro do desassossego, nosso colunista tem muito mais literatura guardada do que publicada. Aguardamos os muitos bons livros, senhor Cunha e Silva Filho). Prossigamos!

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