
CONECÇÃO A FERRO
apropinquar-se a voar mulher noturna
a dança do seu cabelo
vergado nas notícias da sua boca
atormentas o campo físico como se o beijo
escrevesse jornal da cidade e destapasses a pele que há
nas pedras e buracos místicos
apunhalando muros à noite
e cortando os dedos dos impérios
destas azáfamas em negras sementes
o calor o sexo sangrando nas paredes DOS JORNAIS
PRÓLOGO DA ALMA
vens e engoles as lâmpadas deste caderno a república
tão longe o voo das borboletas o enterro
o varrer do caminho ainda máquina dos nomes. e
trazes paredes para erguer a cor como se o rio calasse
sua língua materna. a terra em museus e os
dedos de um caminho imaterial onde morreram as mãos e
quiseram rebobinar as feridas
CINZAS EM VENTO
é como se o mundo
estivesse a derreter
igual os relógios de Salvador Dalí
o quadro a persistência da memória
as mãos
e outros repousos procurassem
suas sombras ao meio da noite
não ficassem mais pelo caminho
as palavras tenazes
e o capim que se calcula
na autópsia da fome
bebesse os pés do rio
e os olhos do bairro
como se vestíssemos o vento
e a máscara da cidade rural
NUVENS ENQUANTO AS ORAÇÕES
ofereço nas sombras da humanidade
palavras ainda humanas [ pesco
a visão da chuva] inventando nu
vens
despelo ruas ainda bosques…
ofereço cigarro do ar: hipoteticamente falando do estômago
prego dor desbotoada desta marcha
do poder que me incendeia
das casas que o barro machuca…

RAÍZES A VAIDADE DO TEMPO
descortinar este berço as paredes de toda boca
imprimir o sombral da mulher
em tempos de chuva
quando cheira luz ou sal
o envaidecer dos sonhos
como se rega de sangue a bomba dos frascos
a imitar a vida a desenhar raças
descortinar oceano a ejaculação atómica
onde o berço começa estranho.
VIDA NA TV
quanto custa a madrugada?
resta-me a memória
e o corpo para as personagens do mundo
!
vencem os pés minha cubata
os carapaus se
assemelham nas ruas a envaidecer
o caminho das quitandeiras
DOS PANOS DO MAR E DAS FOLHAS DA PÁTRIA
UMA CHUVA INCENDEIA A PELE DE UMA INFÂNCIA
e nos rostos do deserto as casas
construídas com óleo de palma
sabe-se sobre a lagoa que
nos leva os muros da morte
ainda se crema o sal
espreme o incêndio a solidão
sempre amanhece com
cheiro de silêncios a venda da juventude
os assobios dos pássaros de areia…
O ESCURO
noite
é uma lâmpada febrenta
com chamas de dor
– os cantos do vento
meu peito
… o surto
é uma palavra ainda segmentada
com sonho sem tempo da janela de todos os caminhos
emerge no cursar do mundo
uma pedra dentro – sem amanhecer
[ sem nos ouvir ] os tambores secos
e surdos feitos pelos homens
a cor dos pneus
famintos de luz a terra amarga
como paracetamol das
surdinas que não nos ouvem.
TERMÓMETRO DO VENTO
era para abanar a âncora
o tempo nas ruas das cidades
ao engolir os depósitos das sombras no [mar
as aves os sinos
ondulam minha casa de adobe. todas as
almas quando os termómetros foto
grafam a medida do dia
INEXISTÊNCIA EM EXISTÊNCIA
esperei o poema me esperar
e amontoar as letras
na oficina da noite
onde o sexo
tem os signos (in)termináveis no asfalto
mas o trauma de se orientar
igual o rio
me ofendeu o desejo de soletrar os pássaros
esperei passar
a noite
num vazo onde o sal
ilumina os cigarros
política mente estável
um poema que não é
nem renasce nem se transforma
— a cor do dezembro
há…! um poema que rejeita seu culto
é como uma gestação em advinhas
Ema Nzadi nasceu na província do Zaire, Angola. Membro do Movimento Litteragris. Escritor e pesquisador de teoria da literatura e literatura de língua portuguesa. Autor dos livros Pintura dos Ecos`, obra vencedora do prémio nacional de Literatura António Jacinto 2019, Homilias da Barga, livro publicado no Brasil pela Opera editorial em 2024. Publicou em várias Coletâneas, Antologias, Revistas, jornais a nível da CPLP.
Uma resposta
Ema Nzadi Nós do Amaité ficamos felizes com a presença de sua poesia verossímil de si mesmo, desprendida; versos estruturalmente originais, cheios de imagens excelentes! Genuinamente aproximada é a poesia e a prosa que exigem releituras. Na releitura vamos palmilhando surpresas, criações nossas. Principalmente hoje em que pululam versos para estabelecerem uma “nova ordem”. Porque acompanham “ordens estabelecidas” (verdades absolutas são apagadas pelo tempo). Como se literatura fosse um curso acadêmico ou afins. Poesia é o que não se atinge, uma vagueza espontaneamente resultando em ética e em respeito ao leitor. Desta feita, não se deve querer validá-lo, catequizá-lo, pois literatura é contrária a projetos de poder. Sua poesia, Ema Nzadi, ainda bem, não permite que nem você mesmo se defina, vista uma farda. Continue com esta voz que buscamos, autor e leitor, individualmente, num jogo de universalidade. Na poesia o “juntos” é sozinho, porque o leitor não é uma extensão do poeta , mas do que descobre no que lê. Na poesia o “é” está sempre por chegar dos versos que lemos aterrados, para grande surpresa de ser simplesmente. Continue, poeta, livre para o que já dizia e diz Manoel Bandeira: “Estou farto… De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo /… – Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”.