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Cheguei ao Charles de Gaulle às quatro da manhã. Meu voo para o Brasil seria às seis. Confesso que um cemitério qualquer de Paris devia estar mais animado do que aquela geringonça transparente que mais parece o brinquedo de um bebê gigante. Caminhei inquieto por aqueles corredores de polida indiferença. Veio-me à mente o conto “O Avião da Bela Adormecida” de Gabriel Garcia Márquez, e tentei adivinhar onde o autor poderia ter comprado o último sorvete.
Já dentro da aeronave, não pude deixar de reparar na bela aeromoça. Ela se parecia muito com Ela muitas-lembranças, quando a conheci. Meio para mim, meio para todo mundo, eu disse, em português – para que não me entendesse – “você não vai me deixar de novo, né?”, e para minha surpresa, ela riu, e logo me devolveu um: “Não, senhor, até o avião pousar não poderei ir a lugar nenhum. Viajaremos juntos pela eternidade de um voo”. Ela era brasileira, e poeta, não? Não pude deixar de sorrir. A vida e suas peripécias, sempre.
Quando o avião pousou em meu país – depois de treze horas de voo ou mais – desembarquei com a desenvoltura de um aleijado. A bela aeromoça saudou-me com um desejo de “boa tarde” num sorriso profissional denotando um futuro que não me cabia. Entrei num táxi cheirando a inquietações indefinidas. Olhei o céu cinzento da cidade que conheço bem. Senti o cheiro de chuva e óleo diesel. Havia mesmo muitas histórias para contar para mim mesmo. Odisseu sem Ítaca. Penélope, enfim, havia decidido concluir a mortalha do ancião Laerte. Os pretendentes brindavam. Suas taças transbordavam o vinho da tão almejada vitória. Eu estava indo ao meu próprio encontro. Em casa, no máximo, haveria apenas o outro de mim no espelho. E mesmo assim, este, talvez não me reconhecesse. Era como assobiar uma marchinha da Quarta-Feira de Cinzas do meu próprio carnaval. Aquele em que você se fantasia e, sozinho, senta-se num sofá, numa sala escura e toma resto de vinho barato. No meu guarda-roupa, nenhum vestido para atiçar as testosteronas das minhas calças e camisas cheirando a naftalinas.
Peguei-me pronunciando o nome d’Ela, bem baixinho, porque tive receio de o motorista puxar conversa. Não queria que a bocejante realidade dele profanasse a redenção daquele silêncio de pelúcia. O som desse nome já não me remetia às imagens de cidades devastadas, ruínas, hecatombes? Por isso, e ainda mais baixinho, voltei a pronunciá-lo, só para me certificar de que o havia mesmo pronunciado corretamente.
Dei outra olhadela no céu. Uma massa cinzenta sobre nós. Do rádio do carro vinha uma música – Só agora me dava conta dela – Parecia um desses sons que escapam das tevês de algum solitário do outro lado da parede, que por diversas vezes, adormecem com o aparelho ligado e só o desligam na manhã seguinte, quando despertam arrastando o dia em seus chinelos. Eu podia ouvir um solo de sax, vez em quando, sobressaindo-se ao restante dos instrumentos e logo sumindo novamente feito o som de um pernilongo sedento, em noites quentes, sobrevoando nossa cabeça, ainda decidindo, onde fincaria sua broca vampira, e chapar-se à vontade, de olhinhos revirados, feito os viciados de Berna picando-se sob os grandes relógios, num domingo de sol e céu azul.
Ó, ávida vida. Parece mesmo certo: não há como riscar-se do mapa, fugir, escapar de si mesmo, negar os encantos ilusórios dos sentidos. Talvez, apenas aceitar que, na vida, assim como no jogo de boliche, vez em quando, precisamos derrubar algumas coisas para que outras aconteçam. Não é sempre que podemos pedir que nos amarrem ao mastro para que possamos resistir ao canto das Sirenas. Na maioria das vezes, o melhor mesmo, é nos deixar ser levados por ele.
Ah, vida atrevida. Pássaro de asas depenadas. Precisei cruzar o meu próprio oceano, criar a minha própria guerra, dormir com mulheres, cujos nomes esqueci no instante em que bateram a porta e sumiram de vez. Precisei exalar o pólen asfixiante da flor venenosa e murcha da tua ausência, devassar minha própria aldeia e chorar sozinho ao lado de um túmulo do eminente escritor, num finalzinho de tarde e chuva fina, no Pére Larchaise já quase fechando. Para quê? E quantos Ricards tive de tomar em solilóquios insanos. E quando alguém me olhava, como a se certificar de que havia mais um louco na cidade, eu fingia cantar uma canção qualquer numa língua estranha, que é, na verdade, o idioma dos solitários.
Foi num desespero de mãe que enterra o seu único filho, que procurei a todo custo vedar a frincha por onde eu esvaía-me. Agora, ironicamente, ela parecia me servir de base, ainda que fofa, é certo, para que eu – mesmo que de forma desengonçada – finque os pés e continue seguindo, seguindo. Mas para quê? Temos mesmo de atravessar o fogo para nos encontrar com Beatriz? A experiência talvez seja isso, uma coisa que só é absorvida intensamente, quando já nos encontramos muito longe de nós mesmos. Como o país-infância que, só o vislumbramos em sua amplidão e força, quando já estamos numa distância
considerável dele, e, até muito depois, com o correr desenfreado dos anos, quando diante do espelho, logo pela manhã, perguntamo-nos; quem é esse?
O céu tornava-se cada vez mais escuro e começava a trovejar. Folheei um velho livro que carrego comigo desde o início da minha epopeia. Ora sob um braço ora sob o outro, como quem carrega, para uma grande guerra, uma arma sem munição. Fala de um tempo em que a palavra não precisava ser assinada. Folheei-o só para sentir as páginas em meus dedos, como a constatar que eu estava mesmo ali, naquele carro, voltando, depois de tudo, depois de amordaçar o inimigo na tocaia de mim mesmo. Joguei o livro para o lado – como fazem as crianças quando se cansam dos brinquedos – e repousei os pensamentos no espaldar do banco do carro e fechei os olhos. Começou a chover.
Reynaldo Bessa é músico, escritor, poeta e professor. Já lançou sete CDs. O mais recente: Com os dentes, com músicas próprias sobre diversos poemas de autores brasileiros. Em 2008 lançou seu primeiro livro Outros Barulhos – Poemas (Anome Livros) – (Prêmio Jabuti 2009 – Poesia). Em 2011 lançou seu primeiro livro de contos Algarobas Urbanas. (editora Patuá). Pela Rubra Cartoneira Editorial (Londrina-PR), publicou o seu terceiro livro, Não tenho pena do poema (o segundo de poesia). Em 2013, lançou Cisco no olho da memória – poemas (Terracota editora/Selo Musa Rara), – Menção honrosa no Prêmio Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores – UBE-RJ em 2014 (entre a comunidade lusófona). Ainda em 2014, publicou o seu primeiro romance: Na última lona (Editora Penalux). Também pela editora Penalux editou os títulos: Do pássaro voando ao contrário – (poesia), A noite além de escura (contos), e o mais recente, Esta Vida Ou Outra Invenção (Poesia) – 2021 -. O autor tem poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês e grego. Foi jurado de grandes prêmios literários, entre eles o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Também escreve para sites, blogues, jornais de literatura, música e poesia. Tem contos, crônicas, poemas publicados em revistas, jornais, suplementos literários pelo Brasil e exterior. Ainda em 2021 lançou o seu novo disco – O futuro que me alcance – nas plataformas digitais.