Coluna Guido Viaro: O Quadrado/Capítulo 2

Ilustração: Alicia Tilmant


Há mudanças de capítulo que não passam de um respiro entre pensamentos ou intenções, mas existem aquelas de outra ordem, grandes montanhas cobertas por gelo e sombras, onde os respiros nascem ou desaparecem. Essa é uma mudança do segundo tipo.    
   
Hildebrand vivia um dia ordinário, anil, repleto de pequenos prazeres que se valem da ausência de nuvens para plantar no rosto de cada um o sorriso sutil de um leve otimismo. E ele era um deles, desfrutava das sombras e do sol, não havia excessos, o dia fluía com a naturalidade do tempo, que nos presenteia com cores ligeiramente diferentes após mínimas distrações. Os azuis foram ganhando tonalidades mais pesadas, até finalmente serem rasgados pelos amarelos artificiais. Os sons também foram se modificando, perdendo a premência, ganhando lonjuras e solidão.   
    
Mas quem nos interessa é Hildebrand, e não a cidade, o indivíduo que possui uma cidade no peito, mas que é também veias, músculos, órgãos mergulhados em uma solidão escura, e, sobretudo, desejo. E ele exerceu-o durante aquele dia, encheu o reservatório de satisfações, eles logo se transformavam em novos desejos que, como não eram plenamente atendidos, faziam nascer pequenas angústias, que morriam afogadas em um conformismo que escorria de sua alma como cascata volumosa, irrigando cada esquina de seu corpo.

Almoçou no restaurante universitário, passeou pelo Jardim de Luxemburgo, arrastou uma cadeira até bem próximo da estátua de Baudelaire, e lá adormeceu até ser acordado por uma dor no pescoço. Subiu as escadarias que dão acesso ao Senado e olhando para o parque e para as pessoas que estavam ali, lembrou-se de suas reflexões sobre o quadrado feitas na noite anterior. Mas tudo aquilo lhe pareceu distante, um sonho adolescente sem qualquer importância. Sentiu um cheiro estranho, sem conseguir identificar a origem e do que era aquele odor, ligou-o a alguma sensação desagradável vivida em sua infância. Mas também não conseguia localizar o que era, um lampejo perdido, que atravessara décadas para se manifestar ali, naquele lugar sem ninguém ou nada por perto.  
   
O sentimento agradável do sol na pele havia ido embora, o que sobrara era a sombra fria e o cheiro desagradável. Resolveu apressar seu retorno, abandonou os passos leves e impôs velocidade e peso às passadas. Percebeu alguns olhares de pessoas com as quais cruzou, leu resignação naquelas expressões, mas também havia alguma solidariedade, olhos que, apesar de desconfiados, pareciam afirmar que: “estamos todos no mesmo barco”. Estranhou essa percepção e aumentou ainda mais a velocidade, não precisava de olhos cúmplices, que a escuridão os engolisse como faz a noite com a cor das flores.

Avistou de longe a galeria onde se localizava o Hotel Chopin, e mesmo a essa distância percebeu uma ambulância estacionada em frente à entrada. Correu. Tudo parecia fazer sentido, o cheiro estranho, os olhares de compaixão, a vida lhe sussurrava uma tragédia. Perdeu o fôlego, aquilo era uma bobagem de sua cabeça, havia os quadrados, a matemática e tudo mais, muitos milhares de pessoas moravam ao redor da galeria, a ambulância poderia ser para qualquer uma delas. Caminhou com os passos de um homem feliz, recobrou o fôlego, entrou na galeria, tomou o elevador e assim que chegou no andar desejado foi recepcionado pelo olhar revelador de um dos funcionários do hotel.  
            
Sem dizer uma palavra, apenas puxou-o pelo braço até seu quarto, que estava repleto. Os bombeiros tentavam as últimas manobras de ressuscitamento em sua enteada, para alguns instantes depois desistirem. Os gritos angustiados dos profissionais deram lugar a palavras murchas, frases estudadas em manuais de ética, mas que apesar de tudo carregavam consigo alguma solidariedade para aquele que sofre. Eles saíram, um a um, constrangidos por não haver conseguido salvá-la, o funcionário do hotel, assim que percebeu que só restava o casal e a menina morta, desapareceu.    

Liotta estava pálida, silenciosa, a dor em mármore, cada um de seus traços queimava, e cada centímetro de seu corpo parecia decidido a caminhar em direção oposta, desfazer o que havia sido aquele ser até há uns poucos instantes. Quando Hildebrand a abraçou, ela gritou. Um urro sem fim que pareceu conter a energia de todas as mulheres que já existiram. O vulcão ardia  , jorrava luzes, mas elas eram todas destrutivas, descontroladas. Ela perdeu parte do fôlego, mas assim que se aproximou da filha morta e a abraçou, o grito veio ainda mais profundo, parecia que a humanidade inteira estava sendo liquefeita pelo calor da lava, homens, plantas, sonhos, tudo se transformando em fumaça.   
                       
Hildebrand derreteu junto, derramou todas as lágrimas que conseguiu produzir. Depois assistiu à mãe abraçada ao corpo da filha, acariciando seu rosto, molhando-o com suas secreções, murmurando palavras desconhecidas, que pareciam não existir. Tudo aquilo mergulhado em uma luz mortiça, amarelada, que vacilava de propósito, encobrindo com sombras o que era doloroso demais para ser mostrado. Ele percebeu que depois daquilo tudo, jamais seria o mesmo homem.

Ela finalmente silenciou e depois de algum tempo adormeceu abraçada à filha. Hildebrand não sabia o que fazer, se permitia alguns minutos daquele sono macabro, ou a trazia de volta para a realidade.  Enquanto não decidia concentrou-se na língua da enteada, que pendia para fora da boca, abandonada, mergulhada em uma escuridão que a transformava em uma substância irreal, uma ausência de matéria que ocupava espaço no meio da realidade. Pensou em recolhê-la, mas não teve coragem. Liotta veio à tona de seu cochilo que, de fato, talvez se tratasse de um desmaio. Os gritos perderam a intensidade e depois se transformaram em choro, que se arrastou por horas.   
                                                           
Pouco antes do dia nascer o serviço funerário levou o corpo, junto com a roupa com a qual deveria ser enterrada. A mãe preparou com cuidado uma sacola, não esqueceu das meias, escolheu um par de inverno. E então sua filha foi embora, deixando o quarto silencioso, ela, Hildebrand e um dia que acabara de nascer, e pelos primeiros indícios, anunciava-se belo e luminoso. Mas havia uma outra presença no quarto, era aquela que ocupava mais espaço, uma massa compacta, pesada, um veneno concentrado que não se importava com o céu azul que crescia do lado de fora, aquilo não tinha nome, mas possuía como principal característica o fato de conseguir esmagar qualquer alma que por ela estivesse envolvida.   
            
Mesmo assim ninguém se moveu, permaneceram silenciosos, afundados na penumbra. Apenas Hildebrand se deu conta do mal que se avizinhava, e do fato que era preciso movimentar-se. Os olhos de Liotta não piscavam, tentavam sem sucesso devorar as paredes que já haviam sido mais brancas. Estavam lá, entregues ao crematório sem chamas. O ar pesava e Hildebrand, abriu uma janela, junto com ela veio o barulho da cidade. A substância mortífera perdeu um pouco da consistência. Então ela voltou a dormir ou desmaiar, olhos fechados e uma palidez assustadora, mas seu ventre se mexia, ritmado, uma máquina de existir.   
                                
Ele a invejou, também queria respirar. Passeou pela galeria e depois se perdeu em ruas desconhecidas. O ar e a vida anestesiaram parte do veneno com o qual havia sido contaminado. O mundo dos vendedores, motoristas, dos ansiosos e dos sorridentes, continuava existindo, havia também os mendigos, as moças bonitas e os homens de negócio, todos agindo como sempre, absolutamente ignorantes e indiferentes ao sofrimento que experimentara.

Demorou a encontrar um banco público, mas quando avistou um, sabia que era daquilo que precisava. O dia já ganhava os primeiros pelos no rosto, as entregas e os turistas eram prova disso. Ele não dormira, mas isso não lhe fazia falta.    Precisava colocar os pensamentos em ordem, elencar prioridades e agir. Mas antes de fazer isso percebeu que a dor que sentira era um reflexo da que enxergara em Liotta, e se não fosse ela que sofresse, mas um desconhecido, sofreria da mesma forma. Então respirou fundo e tomou coragem, era preciso confessar: não lamentava a morte da menina, ela havia sido um alívio para todos, inclusive para a mãe, e até para ela mesma. Pronunciou entre lábios: “Que sentido poderia ter uma vida como aquela?” Uma família de escandalosos turistas americanos ocupou parte do banco em que estava sentado, pressionando-o a um canto. Com o rabo dos olhos observou uma comilança desvairada, e escutou o sotaque anasalado do sul pronunciar banalidades que se emendavam a outras, construindo uma piscina de iniquidades cujo fundo ficava distante de vista.

Levantou-se contrariado, e já nos primeiros passos pronunciou para si mesmo: “Qual é o sentido de qualquer vida?” A caça por um novo banco parecia-se com a de um tigre albino, se fosse para conseguir algo não seria durante o dia. Decidiu esquecer o banco, o tigre, muitas das grandes ideias da humanidade aconteceram durante caminhadas. Sorriu, um sorriso magro e doente, ironia, não desejava grandes ideias, apenas organizar os problemas e, no fundo, descobrir o que seria da própria vida. Talvez a união com Liotta melhorasse com a ausência da filha, mas não havia garantias. Não sabia mesmo se desejava continuar casado com ela. Talvez dessa dor nascesse uma possibilidade, uma porta que sempre estivera próxima e nunca conseguira enxergar.

Cruzou com uma mãe acompanhada de sua filha pequena. A criança arrastava orgulhosa um balão vermelho que dançava ao ritmo do vento. Dessa vez o sorriso que pousou em seus lábios era vigoroso, um espécime saudável. A ideia chegara, talvez não fosse grande, mas possuía o tamanho que a ocasião necessitava. Iria presentear Liotta. Custearia um enterro no Cemitério Pére Lachaise. A criança repousaria a eternidade ao lado de Chopin, Édit Piaf, Marcel Proust e dezenas de outros grandes nomes.

Duas horas depois Hildebrand telefonava para a Inglaterra para se desfazer da metade daquilo que havia sobrado de sua coleção de pinturas de caça. O que acontecera era que como não havia túmulos disponíveis, os que desejavam absolutamente repousar no renomado cemitério eram incentivados à cremação e a terem suas cinzas depositadas em um enorme armário de cimento onde em uns poucos centímetros quadrados nomeava-se a pessoa. Se quisessem colocar foto não haveria espaço para nomes. Ele recusou essa oferta e quando, cabisbaixo, se preparava para ir embora, um funcionário da administração do cemitério pediu que esperasse.

Havia uma possibilidade. Coincidentemente uma menina, que havia sido enterrada há 154 anos, e agora, por falta de parentes, estava sendo despejada de sua morada e relocada em um ossário. O problema era que seu túmulo se localizava a apenas 20 metros do de Honoré de Balzac, fato que inflacionava em muito o preço do jazigo. Mesmo assim não teve dúvidas, encheu o peito de um orgulho estranho e fechou o negócio. Os quadros, pela pressa que possuía foram vendidos com um desconto enorme, o que não lhe trouxe qualquer arrependimento. Quando voltou ao quarto já era noite, e Liotta parecia estar na mesma posição de quando ele deixara o quarto, pouco depois do sol nascer, mas a substância tenebrosa que antes pairava e espremia vidas, parecia haver ido embora.

Ele a abraçou, e ela, apesar de não retribuir, segurou as pontas de seus dedos sem muita vontade. Queria contar-lhe a novidade mas sabia que isso remeteria à filha e ao sofrimento que começava a amainar. Mas ainda mais desconfortável seria tentar abordar um outro assunto. Aos poucos foi se aproximando do assunto, homenagem, eternidade, merecia, essas foram algumas das palavras que utilizou. Seu semblante mudou, as maçãs do rosto perderam a palidez, ela ficou em pé e caminhou pelo quarto. Ele contou sobre a possibilidade de cremação, o que a fez voltar a sentar-se e encolher-se em uma cadeira. Então a virada, o funcionário o chama e oferece, a peso de ouro, um túmulo que acabara de ser desocupado após um século e meio. Ela volta a ficar em pé, seus olhos ganham um brilho que havia ido embora, ela está ansiosa, indecisa, angustiada com o desfecho da história.
Ele sorri, ela o abraça como se ele tivesse conseguido ressuscitá-la. Volumosas lágrimas escorrem de seus olhos, mas elas não são de tristeza. A filha, antes condenada a uma vida vegetativa, agora passaria a eternidade ao lado de Balzac.      Uma remissão, talvez de seus próprios pecados, pois, no fundo, alimentava uma culpa carnívora sobre a condição da filha. O tampo de mármore teria a capacidade de encerrar um capítulo e inaugurar outro, que ainda seria escrito, e por isso mesmo acumulava todas as possibilidades do mundo.

Assim que percebeu que o oceano de tristeza daquela madrugada havia sido reduzido a uma poça rasa no chão do quarto, Liotta sentiu culpa. Olhou para o chão tentando inspirar algumas lágrimas, mas elas não vieram. Para compensar essa falta decidiu se calar, pouco falou até a hora de dormir.

Três dias depois um azul enlouquecido deitava-se sobre as moradas caiadas do Pére Lachaise. Em frente à boca aberta recheada de terra preta, e o branco eterno das grandes chapas de mármore, Liotta, Hildebrand e dois coveiros. Os olhos da mãe, encobertos por óculos escuros, estavam fixos no fundo terroso do túmulo, talvez imaginasse como seria o mundo de daqui a 154 anos, quando sua filha poderia eventualmente ser despejada de sua morada. O caixão branco desceu com grande rapidez, e pelo que balançou no ar parecia tão leve que talvez estivesse vazio. Ela preferiu não olhar e caminhou alguns passos até o túmulo de Balzac. Hildebrand manteve-se firme, e apesar de mentalmente estar distante, assistiu à terra úmida sendo jogada sobre o branco envernizado.
       
Alguns minutos depois um terceiro trabalhador veio se unir aos outros dois e ajudou-os com a pesada lápide de mármore. Liotta conferiu se aquilo que estava inscrito na pedra correspondia à sua encomenda. O nome e as datas de nascença e morte estavam corretas, e em grandes letras garrafais tingidas em dourado, lia-se a frase: “O frágil sopro sem permanência, agora se une à tempestade.” 
                                                                   
No final da cerimônia ela era uma mulher renovada, exalando saúde e prestando atenção para que seus sorrisos não fossem muito pronunciados. Ofereceu uma gorjeta importante aos coveiros, que recusaram. Abraçou Hildebrand, e quando passaram em frente ao muro onde foram fuzilados os insurgentes da Comuna de Paris, quem os visse, diria se tratar de namorados que se divertiam tentando encontrar os lugares de repouso eterno de seus ídolos.

Ela disse que estava com fome, o que fez com que ele sorrisse. A página estava definitivamente virada. A nova vida gritava, dizia que estava chegando e pedia para que estivessem preparados para ela. Hildebrand parou de caminhar, não sabia o que responder e mesmo se seria necessária uma resposta. Não tinha planos, ou expectativas, mas percebeu que talvez isso devesse mudar.

Ela perguntou o que havia acontecido. Um instante de silêncio depois ele falou de um restaurante grego que gostava muito. Ela sorriu como se tivesse a certeza de que a garçonete que os atenderia seria sua filha, sem defeitos, uma moça linda e cheia de futuro. Ele baixou a cabeça para não assistir àquele sorriso. Eles ainda costeavam o longo muro do cemitério, ele pediu que atravessassem a rua logo e descessem as escadarias do metrô.
     
No restaurante ela pediu vinho e desandou a falar sobre qualquer assunto que não possuísse nenhuma profundidade. No começo ele colaborou com ela, mas então ele achou que o luto havia ido embora de maneira muito ligeira. A página havia sido virada, mas não queria encher a próxima página com tolices sem peso. Não permitiu que pedisse uma segunda garrafa. “O que será de nós?”. Assim que pronunciou a frase arrependeu-se, ela olhou-o como uma mãe que descobre a travessura de um filho e finge uma brabeza que não possui. Então sorriu e segurou sua mão sem responder.

Ele prosseguiu: “Precisamos saber se continuaremos juntos, ou então…”
Ela interrompeu sua fala com um soco na mesa, então abaixou a cabeça.     
“Está querendo se livrar de mim, seu porco sujo.”                              
“Não é isso, eu apenas…”

Ela não permitiu que terminasse a frase, ficou em pé, aproximou-se da mesa ao lado, pegou a garrafa de vinho que bebiam e a bebeu quase inteira no gargalo. 
               
Hildebrand tentou trazê-la de volta para a mesa, mas ela o empurrou. Os homens que tiveram o vinho roubado vieram tomar satisfações. Ele não sabia se respondia à Liotta ou ao grupo, o que fez com que um deles avançasse e o pegasse pelo colarinho. Hildebrand sacou da carteira e empurrou-lhe uma nota que pagava duas daquelas garrafas. Depois, em particular, explicou o que havia acontecido, a mãe acabara de enterrar a filha, o que pareceu acalmar de vez os ânimos exaltados. Ele pagou a conta e conseguiu arrastá-la para fora do restaurante enquanto ela gritava: “Hoje não foi um dia bom, enterrei minha filha e meu marido quer me jogar no lixo.”       

A embriaguez apossou-se de Liotta, ela começou a falar no estranho idioma com o qual às vezes se comunicava com a filha, para depois voltar à mistura de línguas com a qual se comunicava com o mundo. Gritava, chorava e cambaleava, Hildebrand tentou ajudá-la e ela cravou-lhe as unhas no rosto.

“Maldito porco ingrato vai me abandonar…” 
                                     
“Veja o que fez no meu rosto, desgraçada, por pouco que não me fura um olho.”                                                                                        
“Quero furar os dois…”                                                             
“Ingrato eu? Fui enganado por você desde o primeiro dia, quando me apareceu com aquele monstrengo, tive de suportar todos esses meses de tortura e gastei quase todo meu dinheiro para dar uma sepultura digna para aquele…”     
                                                                                        
Ela apanhou uma pedra no chão:   
                                                     
“Se você repetir aquela palavra eu te mato.”                                       

A gritaria atraiu vizinhos que acenderam luzes e depois chamaram a polícia. Liotta mal parava em pé, Hildebrand entrou no carro e explicou toda a história aos oficiais que decidiram chamar uma ambulância. Ela foi sedada e encaminhada a um hospital. Quando assinou os papéis ele leu as palavras “surto psicótico”. Ele acompanhou-a até o hospital mas os médicos disseram que ela não corria perigo e que apenas dormiria por muitas horas, então era melhor que ele voltasse no dia seguinte.

Quando abriu a porta do seu quarto deu de cara com o berço vazio, duas lágrimas encheram seus olhos, elas nasciam do arrependimento de haver dito aquelas palavras. O espelho mostrou que o corte em seu rosto era menor do que pensava, o que fez com que se sentisse ainda pior. Estava exausto fisicamente e destruído psicologicamente, não sentia forças nem para dormir, e sabia que aquela talvez não fosse uma boa ideia, pois reencontraria boa parte do que havia vivido naquele dia. Sua primeira providência foi colocar o berço vazio no corredor do hotel, decidiria no dia seguinte o que faria com ele. Então deitou-se de barriga para cima encarando o teto. 
     
A vida agora mostrava-lhe seu lado sombrio, um caminho gelado e solitário que ia se estreitando a cada passo que dava. Talvez a escuridão escondesse abismos que cessariam com todas suas dúvidas e dores, mas sabia que precisava acima de tudo evitá-los, pois por pior que fosse o que que vivia, ainda era muito mais rico e complexo do que o nada, e a inconsciência. Para eles haveria toda a eternidade e a certeza de que jamais escaparia. Então estava condenado a perambular por caminhos desconhecidos que sempre conduziam a consequências inusitadas, mesmo que essas surpresas cotidianas, quase sempre se parecessem muito umas com as outras.   

Respirar fundo, misturar pontos de vista, identificar nos outros a dor que se sente, imaginar novas cores, sentir os odores desaparecidos, e, durante os sonhos, farejar novas maneiras de existir. Viver o dia posterior à própria morte, e quando o sol se puser, aguardar ansiosamente pelo dia anterior ao nosso nascimento. Louvar e desprezar na mesma medida, tanto tempos quanto espaços, escolher séculos aleatórios para passear pelas avenidas plácidas de Namur, San Bernardino, Botucatu ou Osaka. Cumprimentar com desencanto os encantadores habitantes do futuro, e com piedade os que viveram antes do nosso nascimento, para então aprender, perceber que não há diferenças. Todos amarrados a um mesmo tempo, todos ladeando precipícios de olhos vendados. Cada um esgueirando olhos por entre as frestas do pano, tentando deduzir se a pedra ou a árvore que enxergam, significa algo. E se esse significado amarra-se ao fato de que o indivíduo percebe a própria existência.       
                                                        
Então a consciência vagueia como pedra roliça na correnteza, para, e apenas, flutuar nas águas sem movimento plantadas sob um céu vazio de cores ou astros, uma espera sem tempo. Enquanto a outra pedra, que possui o mesmo corpo dessa, é arrastada por vontades alheias à sua, e lamenta não poder escolher os próprios caminhos, pois desconfia que a mesma força que a fez existir, decida seus desígnios. Então faz das águas do rio suas lágrimas, do murmúrio delas, o grito de dor. Ela, que não possui endereço ou destino, é tragada pela força da correnteza, que sem que perceba, a transforma, fazendo com que se torne consciente de sua coirmã, a outra pedra, que ela também é, e que habita seu corpo, e que ao contrário dela, vive na mais completa imobilidade.

Então ela percebe que o existir é um caminho entre dois extremos e que, talvez, o bem existir, se é que pode haver graduações dentro dessa aventura, seja saber se equilibrar adequadamente, e quando quiser, movimentar-se na direção de um dos dois postes que sustentam o arame.    

Afora isso são essas manchas na pintura do teto do quarto, e essa acidez estomacal que se espalha pelo corpo e atinge a alma. Adormeceu um sono opaco, felizmente sem sonhos, mas que, quando acordou, percebeu que não serviu para restaurar suas energias. Almoçou no mesmo lugar de sempre e foi só no meio da tarde que se lembrou das palavras do médico pedindo para que voltasse no dia seguinte. Como já era tarde decidiu que só iria buscá-la no dia seguinte. Essa curta independência foi suficiente para acender em seu peito algumas luzes que costumavam permanecer apagadas.   
 
Mudou o itinerário, passou em frente a alguns bares e finalmente escolheu um para se sentar. Era um lugar animado e colorido com música caribenha e muitas moças bonitas. Pediu uma cerveja que era servida em uma tábua de madeira rústica acompanhada por um pote de salgadinhos de milho. O garçom era um jovem imigrante africano com grandes dentes brancos, um sorriso que lhe servia de passaporte de entrada em qualquer ambiente. Ele bebeu metade de sua cerveja e só então conseguiu perceber que todos os presentes, inclusive o garçom, pareciam ter no máximo a metade de sua idade.  
                                                                                      
Nutriu-se dos sorrisos, da pele macia, e da falta de preocupação dos jovens. Enquanto pode evitou mentalizar a frase, mas ela finalmente venceu, e conseguiu até ser pronunciada entre lábios: “Vocês não sabem o que os espera”. Terminou a cerveja, comeu os salgadinhos e assistiu à vida acontecendo ao seu redor, mas, apesar da beleza, dos sorrisos, e da alegria, não encontrou ali nenhuma novidade que o tentaria a escavar mundos em busca de um elixir da juventude. Tudo pareceu-lhe pré-determinado, dali saltariam rapidamente aos vinte e cinco e às obrigações profissionais, mais um pouco, casamento, filhos, novas e mais rígidas regras não escritas. Enquanto tudo isso não acontecia, havia a ilusão dourada mergulhada no fundo de um copo de cerveja.  

Pediu um segundo copo, e foi na metade dele que percebeu que, assim como assistia ao mundo ao seu redor, também era assistido. Os olhares eram acompanhados por palavras ditas em voz baixa, por lábios que se escondiam atrás de mãos. Talvez, assim como havia feito, eles também tentassem sintetizar suas impressões sobre ele em uma frase. Só faltava tentar adivinhar qual seria. Não se envergonhava ou ofendia, em sua juventude pensaria algo igual, mas preferiu não sintetizar o sentimento dos jovens em palavras. 
    
Pediu a conta, e enquanto ela não chegava foi atravessado por uma pergunta incendiária: se existisse a possibilidade mágica de apertar um botão e voltar a ter vinte anos, ele apertaria? A conta, bem maior do que imaginava, veio acompanhada pelo sorriso de marfim do garçom. Ele deixou uma nota, que englobava a conta e uma razoável gorjeta. O rapaz trouxe o troco, como é de praxe, mas no momento de ir embora, Hildebrand recuperou as moedas deixando o funcionário sem gorjeta.  Então decidiu que seus instantes de distração deveriam terminar por ali, e que precisava voltar para seu mundo. Sabia que essa vontade era devida a alguma espécie de culpa, mas que, no fundo, ela não fazia muito sentido. Mesmo assim obedeceu àquele senhor ao qual não reconhecia a legitimidade do poder.      
  
No caminho para o hotel foi invadido por um desejo que conseguiu mover seus lábios na direção de uma pretensa alegria. Depois de abrir a porta do quarto não teve dúvidas, iria vasculhar uma gaveta trancada à chave, mas que ele sabia onde ela a escondia, eram os papéis de Liotta, seus documentos, programas de concertos onde havia se apresentado. A chave estava exatamente onde imaginara, embaixo de uma falha no carpete, onde anteriormente ficava o berço da filha. Assim que abriu a gaveta uma surpresa, a quantidade de papel era bem menor do que imaginava, algumas cartas amareladas pelo tempo e envolvidas por um elástico, algumas fotografias de sua família, mas em nenhuma delas estava sua filha. E uma pequena caderneta escura, seu passaporte, que, ao contrário do que ela sempre afirmara, não era italiano, mas albanês.

Havia também uma pequena diferença em seu sobrenome, duas consoantes invertidas, fato que poderia parecer insignificante, mas que para efeitos legais incorria em crime de falsidade ideológica. Ele abriu as cartas mas todas estavam escritas em seu idioma materno, os remetentes eram todos albaneses, mas os endereços de destino se localizavam na Itália, Mônaco e Suíça. Todas elas recebidas há pelo menos cinco anos. Encontrou ainda alguns bilhetes de loteria e um pingente onde uma caixinha prateada guardava a foto de algum santo.      
                                                    
Ele recolocou tudo no exato lugar, tomou cuidado para que o elástico ficasse na exata posição em que o encontrara. Fechou a gaveta e recolocou a chave na falha do carpete. Então colocou o nome dela na internet, as duas variações, para descobrir quem era de fato aquela mulher com quem decidira repartir a vida. A resposta foi surpreendente: nenhum resultado. Para o mundo digital Liotta não existia. Seus concertos, as pessoas que disse conhecer, sua carreira, sua infância em Bergamo, tudo uma grande mentira.  

Hildebrand sorriu, não sentia raiva, apenas uma grande curiosidade. Conhecia um reduto de albaneses em Paris, era na praça em frente à igreja Saint-Julien-le-Pauvre, eles costumavam se reunir ali para bater papo. Ele cogitou levar as cartas dela lá, para que as traduzissem. Logo descartou a ideia. Também decidiu que nada diria sobre sua descoberta, escolheu cultivar o mistério como aquele que extrai prazer de suas coceiras. Perguntas sedentas de todos os tamanhos e profundidades brotaram por toda parte, mas ele decidiu não dar bola, coçou a perna e foi dormir.
      
Na manhã seguinte comprou flores e foi até o hospital buscar Liotta. Ela sorriu e o abraçou pedindo desculpas. O médico prescreveu alguns remédios e o casal pegou um táxi até o hotel. Liotta abraçava o buquê de rosas brancas quando desembarcaram, e foi então que ele se lembrou do berço que havia colocado para fora do quarto e jazia abandonado no corredor. Talvez fosse melhor pedir um tempo e recolocar o berço em seu lugar, deixando para ela a decisão de jogá-lo fora. Ela sorriu e disse que era bom voltar para casa, puxou-o pela mão até o elevador.   
   
Hildebrand suspirou aliviado quando percebeu que o berço havia sido retirado do corredor, mas logo em seguida, temeu a reação dela quando descobrisse que havia se livrado de algo tão ligado à sua filha. Enquanto girava a chave na fechadura lembrou-se do escândalo no restaurante e tudo o que aconteceu em seguida. Respirou fundo e a convidou a entrar. Ela passeou os olhos pelo quarto e depois de raciocinar por alguns instantes construiu um sorriso que pareceu consumir bastante energia:                                                                                                                
“Nossa, agora teremos mais espaço.” 

Ele não teve tempo de improvisar um sorriso, e quando percebeu que a situação começava a constranger ambos, pediu as rosas que carregava porque iria depositá-las em um vaso. Enquanto enchia um copo com água da pia do banheiro, que depois derramaria no vaso, sentiu uma vibrante coceira no pescoço, que a essa altura estava molhado de suor. Então experimentou algo parecido ao que sentiu o funcionário do hotel quando foi deixado sozinho com o casal e a filha morta, uma vontade imperiosa de abandonar o ambiente. Com a receita dos remédios na mão e um sorriso falso, disse que não demoraria.  


Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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