Viagem à Demência dos Pássaros constitui um exemplo paradigmático de uma tal qualidade e intransigência. O próprio título se assume como um poderoso pórtico para o que aqui se deixará adivinhar, assinalando não só a dimensão antropológica da viagem iniciática (assomando o topos do homo viator) que se empreende ao fundo de si mesmo, mas também as isotopias da loucura e do delírio que percorrem todo o volume.
Exibindo uma estrutura ternária (I. Monólogos do Báltico, II. Cartas à Arquitectura da Geada e III. Crónicas do Nevoeiro), o presente volume não se apresenta formalmente como um objecto unidimensional. Fulgurando, ao invés, como uma realidade movente, o livro ganha a sua espessura própria à medida que as suas composições vão oscilando entre o poema longo, patentes nas duas primeiras partes, e o poema mais breve, quase aforístico, predominante na terceira secção.
Sem jamais ceder ao fascínio da mera erudição exangue, o presente volume incorpora ainda na sua urdidura textual diversas vozes (Celan, Nabokov, Tranströmer, Dostoiévski, Gógol ou Gonçalo M. Tavares, assomando este último em contexto paratextual, convocado em epígrafe para nos recordar que: “Depois do terramoto os únicos elementos verticais são os gritos”[1]) que transformam Viagem à Demência dos Pássaros numa obra indubitavelmente polifónica.
Em termos temáticos, estamos perante uma escrita com diferentes afluentes, deixando polarizar-se pela temática amorosa, pela reflexão sobre o tempo, pela investigação sobre o corpo ou ainda pela meditação metapoética.
Ricardo
Gil Soeiro (poeta e ensaísta)
Conheça 3 poemas do livro:
IV
Recordo os dias,
rítmicos revólveres a bordar o cio da pólvora.
À minha frente o teu nome.
Os espelhos respiram Agosto
e por dentro de Agosto
as crianças enlouquecem
no íntimo gatilho dos pássaros.
Tudo é um texto onde latejam
abruptas lâmpadas.
Beijo.
Homem.
Mulher.
O beijo é uma pedra entre duas bocas.
A mulher deita-se nos lábios do homem
como numa zona de caça.
Este tem palavras que pensam um corpo nu.
O verde é a primeira cor de uma mentira.
O homem imagina árvores, roupa
e a casa luminosa sem precisar das mãos.
A mulher encaixa no pensamento
cidades para garrotar o pó.
Ambos caminham
com orquídeas que rezam névoa.
Lembro agora o tempo
em que imitávamos a infância.
Nenhum poema tomava a pílula,
nem a inocência se suicidava em Deus.
Depois a boca começou a ter cadastro.
A pele adquiriu a claridade fosca
da música de Sibelius
e duvidei se a tua garganta
era a Finlândia.
Todo o frio confessa,
deixaste-me o Báltico.
V
Sabes, meu amor,
adoro os pássaros que voam
quando as árvores já não são suas.
A biografia do coração
raramente esquece a queda das folhas.
E o que é o voo para lá do Outono?
Não me digam para guardar
o vento na garganta
ou que as tempestades
são retratos de um hospício.
O teu corpo ensinou-me,
o Verão é um felino
e a hierarquia das garras
só o tempo a sabe.
É certo, as nódoas têm sinos,
mas no pináculo do perfume
ninguém observa versos rotos.
Ainda te quis quando a pólvora
tocava os últimos acordes nos ramos.
Não tinha aprendido,
aparar as unhas à neve
serve para pintar biombos nos olhos.
Se tivesse ouvido Dostoiévski ou Gógol
e bebido as sombras de São Petersburgo,
saberia,
o ouro das catedrais
assimila a mágoa da cidade.
Sabes, meu amor,
a eternidade procura sempre uma corda no céu.
VI
As mãos já não são a harpa que tocava magnólias.
Talvez um hospício à procura do teu rosto.
A casa é um monólogo dentro de quem ficou.
O mel que corria a pele para a infância
tem uma cidade de nomes que não chegam.
Fuzilou a acne as marés.
Esconderam-se os navios atrás dos muros.
Na corrente pontificam facas
ou retratos de pernas cruzadas.
Tudo nas tuas margens
são águas de lábios rasgados
ou arco-íris com cicatrizes às costas.
O amor é um dicionário de nuvens.
Se tivesse observado o céu de Estocolmo,
veria,
as aves fumam
o batimento cardíaco da tempestade.
A morte chega quando nos apagam
o coração num cinzeiro.
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Alberto Pereira, escritor português. Nasceu em Lisboa. Licenciado em Enfermagem. Pós-graduado na área Forense. Diplomado em Hipnose Clínica. Membro do PEN Clube Português. Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008); Amanhecem nas rugas precipícios (2011); Poemas com Alzheimer (2013); O Deus que matava poemas (2015); Biografia das primeiras coisas (2016); Viagem à demência dos pássaros (2017); Bairro de Lata (2017); Como num naufrágio interior morremos (2019) e Neve interior (2021). Participou em colectâneas de contos e poesia. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para espanhol, francês e inglês. Estão publicados no Brasil, Espanha, México, Peru e Suíça. Foi distinguido com vários prémios dos quais se destacam: 1º Prémio no Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina – Museu Nacional da Imprensa (2013) e Menção Honrosa (2014, 2015, 2017, 2018, 2020); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna (2018 e 2020), respectivamente com os livros, Viagem à demência dos pássaros e Como num naufrágio interior morremos; Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Natália Correia (2021) com o livro Ecocardiodrama |Inédito|; Galardoado com o Prémio Internacional Cesar Vallejo – Excelência Literária (2021) – Unión Hispanomundial de Escritores. Finalista do 21º Concurso de Contos Paulo Leminski – Paraná, Brasil (2010) e do Prémio Internacional de Poesia António Salvado (2021) com a obra Mulheres legendadas de Alzheimer |Inédito|.
[1] Gonçalo
M. Tavares (2006), Água, Cão, Cavalo,
Cabeça, Lisboa, Caminho, p. 39.
Uma resposta
Gostei muito.