
Em vidas pautadas pela tecnologia e embaladas pelas redes sociais, bailam movimentos estéticos em rota certeira de colisão, que só não colidem porque no percurso encontram seu alvo: nós, mulheres. Poderíamos atribuir esse antagonismo estético a alguma imprecisão na coleta dos dados, mas é provável que o único dado levado em conta para a entrega de conteúdos seja o “feminino”, reforçando a importância do “prefiro não declarar”.
De um lado, anúncio de perfis patrocinados de harmonização facial (ou seria demonização facial?), preenchimento labial, lente de contato para os dentes (eles têm problema de visão?), extensão de cílios que fazem sombra para as bochechas, tutoriais de maquiagem que prometem nos deixar com 10 anos a menos. Seria bom ter 10 anos a menos?
De outro, vem, menos impulsionado e bem mais orgânico, o movimento para nos aceitarmos como somos. Liberar a pancinha, naturalizar as ruguinhas, desmistificar a idade máxima para uso de minissaia, entender que não há nada mais feminino que celulite e nada mais maternal que estria.
Em meio a essa bagunça com nossa autoimagem, há o reconhecimento facial exigido por muitos aplicativos. Essa semana, precisei reinstalar o app do banco e estou até agora me perguntando como eles me reconheceram no banco, porque eu não me reconheci. Estava em um dia me achando bem, mas depois de habilitar o app, não fosse toda minha consciência e visão crítica de mundo, fosse eu uma pessoa mais frágil e sem tantas contas para pagar, tinha me atirado na primeira oferta de botox parcelado, deixar minha cara parecendo um sabonete e criar um gasto semestral a mais para minha parca renda. Ok, talvez o problema seja eu, mas sei que é algo maior. Não faz muito precisei ajudar minha mãe a fazer o reconhecimento facial e tive muito medo que entregassem a aposentadoria dela para um agricultor chinês.
Chego à conclusão que a indústria de cosméticos e intervenções estéticas está diretamente ligada à criação dos apps de reconhecimento facial. Não sei o que é, se é aquela moldura oval, se é aquele aproxima e distancia, se é a luz. Mas o reconhecimento facial é um aniquilador de autoestima, tal qual a luz fluorescente branca em provador de biquini.

Malvina de Castro Rosa é de Porto Alegre. Escritora, relações públicas e mestra em design estratégico, publicou os livros As loucas aventuras da guria maluca (crônicas, 2013), Paralelos Cruzados (2021), seu primeiro romance, e Crônicas de um fim do mundo antecipado (2023), no qual reúne crônicas do blog semanal que mantém há mais de quatro anos, www.bomdiasociedademachista.blogspot.com. Em 2024, lançou a coletânea de contos Em nós. Atualmente, é editora assistente na Caravana Grupo Editorial no Brasil e editora-chefe da Caburé, na Argentina, além de conselheira da revista Vinca Literária.
Instagram @malvina.rosa
Uma resposta
Crônica atraente, marcada por humor inteligente e pelo domínio da trama específica (o universo estético da mulher). Porém, sem reduzir ao exclusivo interesse de gênero. O que mais me conduziu está na contradição entre a resistência com a ditadura da beleza e o horror do reconhecimento fácil. Propositalmente Malvina nos estimula a refletir sobre nosso próprio eu (homem ou mulher) diante deste desencontro que não pertence à crônica, mas à própria indústria da beleza. Sim, pois por um lado, massifica a aparência ideal e, por outro, opciona a “anti – aparência”, a bizarrice que sofremos em lembrança das temidas e desonestas 3 x 4. Nelas, em sentido contrário, o embate: temos nossa aparência nivelada por baixo, a ponto de não nos reconhecermos. Como não nos reconhecemos na excessiva busca por beleza. Ironia: os filtros, os truques da IA e a inesperada feiúra nos reconhecimentos faciais. Nos dois casos, não nos reconhecemos, não somos nós. Afinal, numa selfie ou num reconhecimento facial, qual a perspectiva de nós mesmos?