O livro infantil Haicais no jardim, um novo sopro no ar, de Solange Firmino, abre como uma manhã de prazer e descoberta, trazendo para a narrativa poética uma dimensão temporal quase imersiva: “amanhece o dia a minhoca/ por onde anda?/ grama revirada” e assim continua para que o leitor entre também na manhã, como no livro, de uma forma lenta.
Não será alheio a este facto, o poema da página 8: “nos pingos de chuva/ a lesma na pedra úmida/ caminho brilhante”. A luz disponível aumenta e acorda animal por animal, sobretudo surgem as borboletas colorindo a cena e os primeiros trabalhadores: “minhoca rasteja/ alonga-se pelo solo/ fertiliza a planta”.
O dia que nasce não chega para estimular todos, sobretudo quem tem de trabalhar muito. Por isso num dos haicais seguintes se liga a “formiga” e o “café da manhã”: “hora do café/ as folhas verdes andando/ bando de formigas”. A natureza utilizada como metáfora transporta a dimensão humana, citadina e quotidiana, para dentro do livro de uma forma subtil, mas eficaz.
Quando termina o frenesim da manhã, segue-se a tarde. Por aí, a criançada — termo muito brasileiro — está cansada. O poeta aqui demonstra uma profunda empatia pela personagem “Criança”, dando isso a entender ao leitor, como se lhe dissesse: eu também já estive aí (jardim) nessa condição (criança).
Cada haicai vai relevando-nos um animal, uma espécie vegetal, trazendo para além da dimensão temporal, também uma dimensão espacial enriquecida pelas suas cores, cheiros, sons que envolvem o leitor de forma multissensorial. O livro faz também uma pedagogia desta tradição poética japonesa, percorrendo as estações do ano — uma temática tão presente nesta arte: “outono abundante/ são folhas, frutos, raízes/ lagarta agiganta-se”.
O poema segue uma linha narrativa e geométrica, como faz normalmente a poesia da autora, que lembra quase a Dívina Comédia, onde o poeta, Vírgilio, leva o sujeito poeta até e através de vários espaços para que este possa se encontrar com uma experiência misteriosa e, neste caso concreto, cheia de beleza.
E assim entramos na noite do jardim: “chegam pirilampos/ com seus fachinhos acesos/ noite cintilante”. Os elementos da noite surgem então de haicai em haicai: o silêncio, a escuridão, a imobilidade dos bichos. Sendo a Solange, uma grande admiradora e divulgadora de Manoel de Barros diria que esta relação tão orgânica entre todos os elementos vivos e inertes, a forma lúdica como eles se misturam, derivam da influência do grande poeta brasileiro.
Mas mesmo no escuro, aparentemente estéril e inerte, a vida continua a acontecer, deixando ao pequeno leitor a informação de como o sono é importante e que as coisas que não se veem são tão importantes ou mais do que as visíveis: “natureza sábia/ quando anoitece o jardim/ a semente cresce”.
Acompanham cada haicai uma ilustração expressionista muito leve e bonita, variando as cores, os bichos e as plantas, levando o leitor pela mão a conhecer o jardim e a magia instantânea da poesia de Solange Firmino.
Luís Palma Gomes: nascido em Queluz, no ano 1967, Luís Palma Gomes é poeta, dramaturgo e engenheiro. Estudou no Liceu de Queluz e depois na Faculdade de Ciências em Lisboa. Depois de publicar poesia no DN Jovem e Jornal de Letras, durante a sua juventude, entra para o Teatro Passagem de Nível na Amadora, onde interpreta o papel de D.Pedro I na peça “Pedro, o cru” de António Patrício – interpretação reconhecida pela crítica. Vence alguns prémios de poesia em Portugal e no Brasil. A carreira profissional numa seguradora afasta-o durante duas décadas do teatro e da criação literária. Aos 47 anos, é diretor de informática de uma seguradora, quando perde o emprego depois de trinta carreira. A sua vida muda de forma brusca: regressa ao teatro, como ator e autor residente do grupo amadorense; ao mesmo tempo, começa a dar aulas no ensino secundário. Em paralelo, reinicia a sua vida literária.
Solange Firmino nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1972. Graduada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), atuou como professora de Língua Portuguesa e Literatura. Publicou seis livros de poemas. Em 2016, venceu o Prêmio Literário da Fundação Cultural do Pará com um conjunto de haicais. Em 2021 é uma das vencedoras na categoria infantil do Prêmio Biblioteca Digital 2021 da Biblioteca Pública do Paraná com o livro Haicais no jardim, um novo sopro no ar.
Respostas de 2
Muito obrigada Luís, pelo texto maravilhoso. E Jandira pelo espaço igualmente maravilhoso e poético. Aqui me sinto bem-vinda sempre. Que nosso 2022 seja especial e com muita inspiração.
Um beijo
Grata eu, Solange, e muito feliz com mais esse reconhecimento para tua poesia, beijo.