
Créditos do autor
Deambulantes
Deixadas livres na antecâmara do Éden,
displicentes, encontraram-se as duas crianças,
sedentas de si, felizes pelo mútuo consentido sequestro
e a realização alcançada, a paz primordial
que só traz o compartilhado colo.
Longe de seus pais, eram folhas amarelas
testando a fluidez do vento: aquarelas, ensaios de anarquia.
Na parede exterior, despidas, suas cicatrizes:
grosseiras casacas sem utilidade
quando aquelas duas almas francas se encontram.
Uma sorri em seu sorriso repleto de flores
e derruba a outra pela grama exuberante;
rolam céleres, felizes pois impossíveis de deter.
Uma delas, a mesma que dispara flores
quando sorri, modula sua doce voz,
e sua fala é um (en)canto, uma denúncia
do sol e da maritimidade de sua origem.
O Universo morre fora da ravina onde folgam;
elas seguem sorrindo, incólumes, inalcançáveis.
Pois quem, dentre as remanescentes criaturas de Deus,
ousaria adentrar seu campo de fruição
para avisar que o Universo, este opressivo detalhe,
estava agora findo?
Continuaram a sorrir sem cansaço, edificando lembranças,
decompondo a saudade que antes os decompunha.
Livres agora do Tempo, morto com seu consorte, o Universo;
Perfeitos em sua dança, saciados de sua própria música.
Do livro Poemas de Amor em Trânsito (2018)
Carta ao Café
Café aroma de lar
Ritual, despedida de quem vai,
Abraço a quem retorna
Coffea arábica, Coffea canephora,
Coffea liberica, Coffea dewevrei
E as raças secretas de café
Cremes, bolos, infusões
Drinks, balas, canapés
Reversa marihuana
De santos, céticos e sahibs
Aqueduto tônico odoropulsante
Odoropulsar:
Café cuspidor de estrelas,
Regurgitador de luzes
Festim fenomenológico
Reserva moral da literatura
Sol do leite, do creme, do rum
Sol para tantas pressurosas luas
Centro da galáxia
Inimigo do deus do sono Oneiros,
Adversário do deus de gelo Ymir
Multilíngue deus de ébano & trópico
Licor laboral
Elixir de trevas luminosas
Rubro fruto de a noroeste
Do Eufrates e do Tigre
Último pomo a escapar do Paraíso
Antes de seu traslado
De volta ao seio de Deus
Orfeu negro, liquefeita
Cítara
Poema em estado tênsil
Combustível dos Napoleões
Comburente dos Quixotes
Aumente a pressão sanguínea
De nossas ideias,
Aqueça nossa tumultuosa
Solidão campestre ou citadina
Do livro Cartas e Retornos (2021)
Da borda
O sol nasce e seus corcéis.
Os dias explodem, fragatas sem pavio
sou sucessivamente sammis, ossos de crochê
muralhas sem borda,
quilha que desnorteia
a nau dum norte súbito
Um capotado um flaneur um aluado falso autista
recarregando as energias negativas
para um meltdown
contra toda a positividade tóxica
ou um shutdown que gere
ao menos um bom poema
O que me esgota não tem nome
mas é o que nega flores à primavera
Comi um livro novo, indigeri seus albores
de açúcares engenhados
evadi-me inescapável por intra Mongólias
equatotiais, Aconcáguas de chão
fustiguei a chibata dos séculos, e a espada
amendoou-se até granada:
não poderia meu estupor (leitwort, leitmotiv)
malhar-se até canção?
Olho nos olhos ruivos, rolhos uivos, uilhos lhovos
olhos ruivos crucificados no intróito,
na soleira da causa
Meu coração interdiz a meu cérebro:
acalma, mulato
e agradeça a Deus a luz não ser pedras,
chocando-se contra tudo.
Do livro Primeiressências (2025)

Sammis Reachers (Niterói, 1978) é poeta, escritor, antologista e editor. Autor de 12 livros de poesia, cinco de contos/crônicas e um romance. Organizador de mais de 50 antologias. Professor de Geografia habilitado também em História e Artes, além de bibliotecário.
Respostas de 3
Sammis é sensível a uma poesia (pós) moderna, mas sem a ultra – subjetividade a isentar a racionalidade de que a poesia também se sustenta. Em tempos de mídias digitais, a terra de ninguém se reflete em poetas em campos minados. Isto é, o vazio identitário quer- se justificar em narciso disfarçado de ‘novas formas’ no lugar de um compromisso prévio com a escrita. É quando a racionalidade perde força para guerras de narrativas de de “um mundo plural”. Chamam de ancestralidade discriminatória qualquer construção demarcada, qualquer identidade mais decisiva, reconhecível, permanente, A demanda agora é de novos semideuses das massas que, sendo massas, consomem as novidades do momento. Produto de consumo rápido, mas não há solidão, porque outro surgirá como se o anterior nunca tivesse existido. Nossa era do que não faz falta, não faz diferença, nossa era do que, assim, caminha supersônico.Sammis, porém, insiste em dominar a crise criativa por concentrá-la nos comandos mentais, e não na falta de controle do texto. A maioria dos “pós – modernos” confunde subjetividade, individualidade com deliberação de um tempo acelerado e indiferente a qualquer porção de racionalidade ou do que ela pode proporcionar à escrita. Ainda é possível, todavia, termos referências duradouras, poesia, prosa de ficção, literatos com suas marcas comprometidas com a linguagem, com o manejo sóbrio de temáticas, com estéticas de quem bebe em fontes clássicas, de quem foge da cultura do artefato de circunstância e portanto sobrevirá aos tempos vindouros.
A versatilidade do Sammis é notável ao examinar cada livro; sua inventividade é uma resposta direta, como um soco no estômago dessas invencionices tão vazias e contemporâneas, estufadas de prepotência.
Amigos, é um prazer estar presente em Amaité e contar com a leitura crítica de almas como as de vocês. A Literatura encontra os seus fiéis.