
A decisão de adiantar a ida para Tromso provou-se um erro, a cidade era extremamente cara, o que fez com que durante seus dias se alimentassem exclusivamente de salgadinhos comprados em um supermercado e kebabs gordurosos. Mesmo Hildebrand sentiu-se tentado a pedir para os seguidores uma contribuição para a comida, mas ambos concordaram que esse pedido poderia interferir negativamente nas doações da noite gelada.
O dia marcado finalmente chegou, e depois de deixarem o hostel, decidiram que não pagariam novamente pelo teleférico e caminhariam até o topo da montanha. A hora de caminhada anunciada na placa, com as mochilas, equipamentos e idade, transformou-se em quase duas. Chegaram extenuados e depois de descansarem esperaram a partida da maioria dos turistas. Pouco antes das dez da noite o sol ainda brilhava e não dava sinais de que iria embora. Foi quando Liotta tirou os olhos do celular e pronunciou: “O sol da meia-noite”. Naquela época do ano o sol não se punha em Tromso. A tão esperada noite transcorreria iluminada por luzes mágicas, dourados manchados por azuis e trevas falecidas antes da maturidade.
Hildebrand não sabia se lamentava ou comemorava a descoberta, entretanto, Liotta percebeu que essas luzes estranhas, que já haviam começado a se manifestar, invadiram os olhos dele, provocando brilhos que jamais vira, e que tornavam-no mais atraente do que jamais fora, e que se não fosse pela proximidade do horário em que entrariam no ar, desejaria transformar aquelas luzes em chamas luxuriosas. Reparou no halo amarelado que encobria a cabeça dele, lembrou-se de suas reflexões sobre espelhos, e desejou que sua própria cabeça também fizesse parte desse baile de partículas coloridas.
No horário marcado entraram ao vivo, o número de seguidores havia crescido, eram quase trinta e cinco mil, Liotta operava a câmera e mostrou a linda paisagem da baía de Tromso com o sol molhando de alaranjado o mar e uma estrada que serpenteava entre várias pequenas ilhas. Hildebrand falava de maneira segura e parecia haver aprendido bastante com os erros da primeira experiência. Ambos estavam vestidos com roupas que estampavam a marca do patrocinador, que além disso aparecia em um pequeno banner fincado no chão próximo do local onde dormiriam. Ele sinalizou para que ela mostrasse o sol, enquanto apenas sua voz era ouvida. Os discursos ambiciosos foram deixados de lado, e agora, além das informações sobre a cidade e a região de Tromso, as palavras que mais se ouviam era: beleza, dourados e prazer.
A temperatura era de três graus positivos e prometia baixar até zero durante a madrugada. O vento fazia com que a sensação térmica fosse menor. Liotta, percebendo o desgaste do marido, entregou-lhe o celular e assumiu a apresentação, parecia contente com a interação dos seguidores, e transmitiu esse entusiasmo em sua fala:
“Imaginem a escuridão. Nós somos aqueles que de alguma maneira conseguimos vencê-la. O acesso a essas belezas é a maior prova de nossa vitória. Precisamos nos elevar na direção do sol, refletirmos sobre a eternidade, sobre nossa relação finita com ela. Sobre a poesia que existe em deixar de existir…”
Hildebrand sinalizou com o polegar que o discurso não vinha agradando, e que os seguidores estavam indo embora. Ela silenciou por um instante e prosseguiu:
“… reflitamos então, essa é nossa missão. O frio está aumentando, vamos nos instalar em nosso abrigo, mas não vão embora, continuem conosco e com esse sol que nunca se põe.”
Eles se instalaram em seu ninho, entrelaçaram os corpos e logo experimentaram os efeitos da alta tecnologia de seus equipamentos, apesar de estar mais frio do que da primeira vez, o cobertor especial o mantinha distante, o isolamento do colchonete também não permitia perdas de calor, além de ser mais confortável do que o colchão do hostel em que estavam hospedados. A interação com os seguidores diminuiu, a cada quinze minutos Liotta dizia a temperatura e dava boas-vindas a um seguidor escolhido ao acaso. Perto da meia noite começaram a chegar muitos seguidores asiáticos carregados de pequenas doações e palavras gentis. Hildebrand adormeceu e foi acordado duas horas depois, cumpriu seu turno e então acordou Liotta que seguiu com a transmissão até o final sem querer acordá-lo.
Quando ele despertou ficou surpreso de tudo já haver terminado. Ela havia anunciado que o próximo encontro seria em um lugar surpresa na América do Sul, e que data, horário e local, seriam anunciados em breve, através do canal. Segundo ela, aquela era uma estratégia para manter vivo o interesse dos seguidores. Ele cumprimentou-a pela ideia, e ambos concordaram que se não quisessem continuar comendo apenas kebabs, precisavam sair imediatamente da Noruega. Um trem os levou até Oslo, e lá usaram pela primeira vez as passagens aéreas do patrocinador. O destino escolhido foi Hamburgo, na Alemanha, uma cidade grande, cheia de opções culturais, gastronômicas, e com um grande aeroporto internacional com ligações com o mundo inteiro.
Foi em um quarto de hotel, de onde avistavam os grandes guindastes do porto movendo contêineres, que chegaram a algumas conclusões em relação a última experiência. Os equipamentos funcionavam com grande eficiência e mesmo com zero grau, não sentiram qualquer frio. Hildebrand dormira bastante e pela manhã sentia-se refeito, Liotta permanecera acordada por mais tempo, mas mesmo ela não sentira a exaustão da primeira vez. Esse era um dos pontos positivos, e havia outro, o número de seguidores continuava aumentando e se aproximava de quarenta mil. Mas dentro desse ninho de boas notícias havia algo preocupante, mesmo com um número maior de seguidores, as doações eram pouco mais da metade daquelas da primeira vez.
Tentaram entender o que havia acontecido, a primeira vez havia sido uma novidade, na segunda a coisa começava a perder o interesse e se tornar repetitiva. O fato de possuírem patrocínio poderia desincentivar doações particulares. Talvez aquele frio ainda não fosse suficiente para impressionar pessoas de países com invernos rigorosos. Essas foram todas possibilidades consideradas e provavelmente a verdade estivesse escondida em algum lugar no meio delas. Mas o que cabia a eles agora era ir descobrindo defeitos, tapando frestas, desviando rotas, até encontrar o traçado ideal.
De qualquer forma receberam cerca de 2600 dólares por uma noite de trabalho, o que não deixava de ser excelente. Passearam pela cidade e compraram ingressos para no dia seguinte assistir a um concerto naquela que era considerada a melhor e mais moderna sala de concertos do mundo. A dúvida sobre como se livrariam das memórias gustativas de quase uma semana de kebabs, consumiu meia hora de discussão, e acabaram escolhendo um nada barato rodízio de comida japonesa acompanhado por fartas dose saquê de ameixa.
Quando voltaram para o quarto, Liotta se lembrou do halo quase dourado que enxergara ao redor da cabeça de seu marido em Tromso, e de como aquilo parecera retirar a rocha que ultimamente vinha encobrindo seu vulcão libidinoso. Da janela do quarto, mesmo durante a noite, os guindastes continuavam com suas hastes vigorosas movendo contêineres, uma operação quase sensual, que parecia jamais fatigar as imensas vigas de metal alaranjado. Ela se olhou no espelho e viu que ao redor de seus olhos pairavam luzes desconhecidas, de uma sensualidade grudenta. Olhou para Hildebrand, que bocejava e se preparava para dormir. Ele percebeu suas intenções e pensou em reagir, mas a predadora era mais forte e o pescoço já estava entregue, depois disso a caça normalmente rende-se, caindo no chão. As cortinas permaneceram abertas enquanto os mastros vigorosos de aço, transportavam pesos imensos sem demonstrar cansaço.
Então ela o viu contra os lençóis, uma figura encoberta pelo escuro e que mantinha vivo algum brilho vindo de seus olhos, afora isso aquele homem estava entregue, pronto para ser dominado, mesmo não parecendo muito forte, obedeceria e faria seu melhor para transportar cargas pesadas. Ele a via de baixo para cima, ao lado os guindastes, sobre ele aquela cabeça sedenta a quem precisava obedecer, mas acima dela, o teto do quarto, que mesmo com pouca luz deixava-o perceber que era dividido em quadrados de mesmo tamanho. Aquilo parecia ser a vida gritando algo, um símbolo feito para ser interpretado, mas ele não tinha forças para isso. Apenas realizou a missão que lhe havia sido destinada, e como um urro animalesco anunciou que ela havia chegado ao final.
Ela não pareceu satisfeita e insistiu mais um pouco, mas a bala já havia sido disparada, e era a única que possuía. Ela finalmente o deixou em paz, parcialmente satisfeita, seus olhos brilhavam no escuro, e ela se levantou para assistir aos guindastes alaranjados que continuavam um trabalho que parecia interminável. Afora o porto, a cidade era uma imensa massa de luzes amarelas, fontes de melancolia prontas a encher qualquer coração que a essa hora não estivesse adormecido. Zumbidos solitários de motocicletas também auxiliavam as luzes na missão de diminuir as esperanças de insones. Ela então voltou-se na direção do marido, que quando percebeu seu movimento fechou os olhos fingindo que dormia.
Hildebrand lembrou-se do quadrado, e da busca por seu significado, descoberta as razões e propósitos da figura geométrica, outros significados poderiam vir à tona, inclusive o dele mesmo. Ou então finalmente descobriria que, não, ele não possuía qualquer significado, era um acaso, uma sombra mal projetada em uma parede em instante em que não há testemunhas, uma onda que arrebentou-se em uma praia quando os continentes ainda eram unidos. Um ato sem razões e cujas consequência tem uma importância tão pequena que podem ser estatisticamente desconsideradas. Uma descoberta como essa tiraria de seus ombros um peso imenso, a aceitação de que nada significava algo, e de que todo algo, nada significava, o despiria de desejos, angústias e ansiedades. Ele se transformaria em uma alegre garrafa sendo conduzida por correntezas alheias a suas vontades, mesmo porque ele não as possuía.
Por outro lado, se descobrisse que tudo possuía um sentido, e se conhecesse qual ele é, as maneiras de acessá-lo, e dele usufruir, o peso que carregaria seria muito maior, mas ele possuiria muito mais músculos, e saberia que o mar da vida estava sendo singrado pelo navio que comandaria, e que um porto repleto de encaixes perfeitos o aguardava em alguma parte.
Mas o mundo em que vivia era um meio termo, o sentido dava a entender que existia, mas ninguém nunca, em parte ou época qualquer, conseguiu descobri-lo. E todos os que aceitaram a falta de sentido, sem a respectiva confirmação, apenas marcharam na direção de um abismo, buscando uma redenção que não existia, e que apenas servia para destruí-los. Hildebrand virou-se na cama para que ela não pudesse ver seus lábios, e então sorriu no escuro: a humanidade estava condenada ao meio termo. E o homem contemporâneo, mais especificamente, a pequenas felicidades transitórias, feitas para que alguém, em algum lugar, lucre com elas. Depois disso adormeceu, enquanto Liotta permaneceu acordada por mais tempo.
A melancolia das luzes e da proximidade de um novo dia, não a contaminara. Talvez as investigações filosóficas, que seu marido fizera de olhos fechados, foram contagiosas, ela mergulhava, tentando descobrir como havia parado naquele lugar e amarrado seu destino ao daquela pessoa que nesse instante começava a roncar. Então uma frase se formou e logo foi pronunciada em voz baixa: “Aos acasos, sua devida importância.” Sim, era preciso respeitá-los, mas deveria haver outra força, um leme, que pode mudar rumos, e que pelo menos alguns, conseguem acessar.
Então ficou de pé, olhou-se no espelho nua, ainda uma bela mulher, mas isso não duraria muito, e se esse fosse o único valor que ofereceria à vida, ela começaria a retribuir-lhe de maneira cada vez menos generosa. Só se recebe muito, oferecendo bastante. Abriu a janela e sentiu o frio do qual o aquecimento do quarto a protegia, então duas ideias estranhas vieram à tona, a primeira era que a beleza de uma mulher atua como o aquecimento, a protegendo em parte das intempéries do lado de fora da janela, mas que, aos poucos, o gás vai sendo cortado, e no final, que pode ser muito antes da morte, não há proteção alguma, e ela, que apenas dependeu de uma força sobre a qual não possuía controle, precisará reaprender a viver, isso em todos os sentidos, desde o econômico, passando pelo sentimental, e até naquilo que se refere às opiniões que tem sobre si mesma.
Se a primeira ideia franziu seu cenho, a segunda esboçou sobre os cantos de seus lábios uma risada, que foi mais interna, mas que mesmo assim teve efeito sobre todo seu corpo, relaxando-a e preparando-a para o sono. Será que gostaria de envelhecer passando frio, enrolando-se a cobertores e abraçada com aquele que agora aumentava a intensidade dos roncos? Assim que se deitou o riso aumentou e ela teve de ter cuidado para que não se transformasse em gargalhada e acordasse o marido.
No dia seguinte eles acordaram tarde e se deixaram perder pelas ruas de Hamburgo. O almoço foi o mais italiano possível, uma bisteca florentina com a grossura de três centímetros acompanhada por uma garrafa de vinho tinto. Queria usufruir dos prazeres da carne enquanto a própria não fosse sodomizada pelas chibatadas do frio. Voltaram ao hotel para descansar e pesquisar sobre alguma localidade na América do Sul onde poderiam realizar o experimento da noite gelada. Depois de várias sugestões de nomes de cidades argentinas e chilenas, Liotta foi interrompida pela chegada de uma mensagem. O ambiente de descontração que visitava seu rosto, aquietou-se, agora apenas a seriedade de alguém que lê um documento importante. Hildebrand percebeu a mudança e irritou-se por ela não haver respondido a suas três tentativas de saber do que se tratava.
Ela finalmente disse que se tratava de uma mensagem do patrocinador, e continuou mergulhada no texto que parecia ser longo. Ele teve a certeza de que se tratava de uma desistência “Pedimos desculpas, cortes de custos, e outras palavras protocolares que serviriam para provar que não havia nada de pessoal nessa decisão, mas que no fundo maquiavam um pedido: por favor, não nos odeie, e se odiar, jamais nos processe.” Hildebrand imaginou isso e logo confirmou seu veredicto, mesmo que ela ainda continuasse lendo a mensagem em silêncio. Então, já conformado com a falta da ajuda de custo e da gratuidade das passagens aéreas, começou a pensar na viabilidade do projeto a longo prazo. Se as doações continuassem diminuindo o navio estaria condenado ao fundo do mar. Seus olhos apenas não se encheram de lágrimas porque aquele não seria seu primeiro fracasso, mas um entre muitos. Mergulhou em uma paz silenciosa construída de auto piedade, na qual poderia permanecer por horas, mas logo em seguida foi retirado dali por um estranho sorriso que, indeciso, tentava nascer nos lábios de Liotta.
“Já sei, eles desistiram de tudo, um longo blábláblá jurídico para terminar com “quem sabe no futuro não possamos retomar nossa parceria.”
“Nada disso, está enganado, aliás, é exatamente o contrário.”
Nesse instante, em apenas um segundo, o prédio de auto piedade que nascera dentro de seus olhos foi destruído, em seu lugar brilhou uma chama ardente que costuma molhar o coração dos muito apaixonados. Então Liotta, percebendo que se demorasse mais alguns segundos, seu marido explodiria, e se pôs a descrever o que havia lido. A empresa explicava que acabara de lançar novos equipamentos para alpinistas de grande altitude, eram macacões especiais para temperaturas extremamente baixas, além de luvas, gorros, e botas compatíveis com essas temperaturas, além disso em poucos meses, lançariam também novas versões de cobertores e isolantes térmicos, ainda mais eficientes do que aqueles que haviam fornecido. Eles propõe que o winter couple seja a grande peça publicitária desses lançamentos.
Hildebrand se aproximou dela como fazem cachorrinhos famintos quando o dono chega em casa. Ela segurou sua mão para que ele contivesse os ânimos, e continuou com a explicação. Eles propunham dobrar a ajuda de custos para dois mil euros, até o próximo inverno, quando então encerrariam o contrato. Ele desanimou, mas logo voltou a erguer a cabeça. Além dessa próxima noite gelada na América do Sul, que não entraria no acordo, eles propõe outras três, todas no auge do inverno do hemisfério norte, Tallin, na Estônia, considerada a capital mais fria e onde mais neva na Europa. Ulan Bator, capital da Mongólia, considerada a capital mais fria do mundo, e finalmente Yakutsk, na Sibéria, considerada a cidade mais fria do mundo.
Hildebrand ficou em pé e caminhou pelo quarto como um tigre ferido.
“Querem que façamos tudo isso por dois mil euros por mês, ou seja, doze mil euros até o fim do ano, sendo que noventa por cento desse dinheiro usaremos para viver e em fevereiro estaremos sem nada? A resposta é não, não aceito.”
“Calma, dois mil euros são apenas a ajuda de custo, eles continuam mantendo as passagens e nos pagarão, caso consigamos completar o desafio das três cidades, duzentos mil euros.”
Os olhos de Hildebrand por pouco não arrebentaram suas órbitas, ele deitou-se ao lado dela e pediu que confirmasse a informação.
“Sim, duzentos mil, além de todas as doações de seguidores. Eles dizem que farão bastante publicidade do canal, que teremos de ir a alguns programas de televisão e que daqui a seis meses quando realizarmos nossa tarefa, os seguidores passarão facilmente de um milhão.”
Ele a abraçou e beijou, interrompendo a explicação. Ela ficou nervosa e se desembaraçou dele, porque ainda havia um detalhe importante a revelar:
“Escute. Precisamos levar o desafio até o final, caso contrário receberemos apenas a ajuda de custo e nada mais. E tem mais uma coisa que não está escrita na mensagem. Esse será o fim do canal, porque depois de encararmos a cidade mais fria do mundo, quem se interessará por outros desafios?”
A quantidade de informações e de possibilidades deixou Hildebrand atônito, e a primeira ideia que teve foi desistir do concerto para o qual haviam comprado ingressos para poderem pensar melhor e dar uma resposta. Mas depois, em conjunto, decidiram que não precisavam ter pressa para responder. Só o fariam quando prós e contras fossem considerados, e eles eram muitos.
Durante a tarde brincaram como duas crianças, luta, esconde-esconde, depois se arrumaram e meia hora antes das oito estavam em frente ao maravilhoso prédio da Elbphilarmonie, uma elegante estrutura em tijolos sobre a qual repousava outra, de metal, imitando as ondulações do rio Elba, que ficava ao lado. Encostado ao prédio esculturas em ferro branco que imitavam os guindastes do porto de Hamburgo, com grandes vigas viris apontando para o céu. Quando subia as grandes passarelas rolantes que conduziam ao grande auditório, Hildebrand sentiu algo que havia experimentado não mais do que cinco ou seis vezes em sua vida, era um sentimento estranho, um prazer secreto por estar vivo. A sensação implantou em seu rosto um sorriso silencioso que durou até o instante em que entraram na sala.
A maravilha arquitetural teve a força de encerrar o sorriso, porque a boca precisava falar. Os elogios, compartilhados com Liotta, só cessaram quando ele percebeu as duas lágrimas que desciam por seu rosto, e que ela garantiu tratar-se de “águas da felicidade”. Ele acreditou no que ela disse e, dentro de um silêncio respeitoso, e sem fazer julgamento de valores, percebeu como eles, cada vez mais, se pareciam.
No programa duas peças, a quarta sinfonia de Schumann e o Concerto número 3 para piano e orquestra de Rachmaninoff, o romantismo clássico seguido pelo tardio. Logo nos primeiros acordes o casal percebeu que, de fato, aquela sala possuía a melhor acústica do mundo. Um som vigoroso, como um gole em um conhaque que envelheceu bem, mas que nunca se torna excessivo, a mão íntima da mãe nos limpando o suor do rosto. Então Schumann contou sua quarta aventura sinfônica, uma obra otimista e grandiosa, raridade na aventura artística. As barreiras da vida, presentes na parte inicial, são superadas por uma vontade que é como o semear de uma flor, e que rompe sementes para que nasçam cores, e junto com elas surgem pássaros que trilam suas felicidades transformadas em notas musicais. O caminho pela natureza oferece sempre novas surpresas para o olho humano, que comanda os outros sentidos que, assim como a visão, estarão prontos a se refestelar. O banquete está oferecido, cabe ao homem servir-se enquanto o mundo o envolve com seus brilhos.
Quando a última nota soou, Hildebrand encontrou nos olhos de Liotta as lágrimas que corriam pelos seus. O casal permaneceu durante o intervalo sentado, em silêncio e de mão dadas. Então veio Rachmaninoff, representado pelo pianista uzbeque Yefim Bronfman, o Concerto, ao contrário da Sinfonia de Schumann, não é uma obra monolítica, e sim um esforço monumental para reunir imensas quantidade de sensações e desejos humanos. Rachmaninoff nos conta ali, além de sua vida, a de seu país e a do mundo, as turbulências e felicidades espalhadas por todos os cantos da existência, e elas se sucedem sem muita cerimônia, depressões dão lugar a amores, e esses à felicidades coletivas, que depois se derretem na beleza de três notas dedilhadas com o cuidado daquele que esconde dos outros a descoberta de uma joia valiosa, conhecida como arte. Mas há sempre a volta, a repetição, dores e felicidades condenadas ao retorno, às vezes em grandes quantidades, por vezes misturadas, diluídas, retornando para exercer a função de sementes. No final, tudo se encontra, e a orquestra mundo, se une ao piano indivíduo, harmonizando uma celebração que, se na vida verdadeira é rara, na música amarra àquele conjunto de notas uma palavra que dificilmente costuma acompanhar esforços humanos: eternidade.
Após a última nota, a plateia explodiu em uma enxurrada de aplausos da qual a única pessoa que não compartilhou se chamava Hildebrand. Na sua cabeça ainda ressoavam as notas e as ideias que elas inspiraram, olhava para os músicos como alguém que descobre um desconhecido dentro de casa. O navio de seu intelecto chacoalhava de um lado para outro levando junto o veleiro de suas emoções, e também o iate de seus desejos, muitas embarcações construídas sobre um mesmo casco. Desceram em silêncio a longa passarela rolante, com Hildebrand torcendo para que sua esposa não dissesse qualquer palavra. Água salgada invadia as escotilhas de seu espírito, e muitos rochedos afiados passeavam como tubarões famintos por perto de seu casco. Quando tudo parecia perdido, e a névoa do cotidiano anunciava que novamente devoraria todas as dúvidas, dois metros antes de sair da sala de concerto, ele conseguiu formular sua questão:
Será que aquele magnífico Concerto, não seria a maneira que Rachmaninoff descobriu para resolver o enigma dos quadrados?
Sim, muito provavelmente o enigma se apresentaria sob diversas formas, para uns sombras misteriosas dançando pelo chão do quarto da infância, para outros, lençóis brancos estendidos no varal que aceitam sobre o dorso, o peso do sol. Então cada um, à sua maneira, encontra um jeito de tentar responder, resolver. Poucos conseguem, ninguém completamente. O gosto amargo sempre sobrevive na boca após uma grande realização.
Eis a aventura humana, sempre condenada a interrupções, que destroem sentidos impedindo conclusões. Uma pista amarga para aqueles que, em dia ensolarado, seguem na direção das cores mágicas que se acumulam no horizonte: a estrada está interrompida, termina em um abismo sem fundo, e não há possibilidades de fazer o retorno.
Jantaram em silêncio, mas quando voltaram ao hotel a condenação havia sido parcialmente esquecida e a vida dava seus gritos pedindo cuidados. Foram pesquisar sobre a proposta, as três cidades frias, Tallin no fim do ano chegava a vinte negativos, talvez vinte e três, Ulan Bator, trinta e sete ou quarenta, e Yakutsk, em um inverno normal, cinquenta e dois, podendo chegar perto de sessenta negativos. Mas havia também a aventura da América do Sul, que já haviam anunciado, e que não fazia parte do pacote patrocinado. Cogitaram desistir, mas logo viram que seria uma bobagem, a expedição serviria de treinamento e passado o inverno poderiam permanecer na região e antes do frio extremo, usufruiriam do calor até ficarem enjoados.
Escolheram a cidade argentina de Ushuaia, com temperaturas de inverno em torno dos oito ou dez graus negativos. Essa foi uma decisão fácil que adiou outra, bem mais difícil. Mas que precisava ser tomada logo. Hildebrand carregava um peso sobre os ombros que fazia com que sua voz perdesse a determinação que lhe era característica, entre lábios ele murmurou:
“Cinquenta graus negativos é demais, é melhor dizermos não.”
Liotta, ao contrário, estava agitada e caminhava pelo quarto lamentando que seus limites fossem tão exíguos.
“Você me arrastou para isso, e agora quer jogar tudo fora. São só três noites, depois podemos ir morar em um país quente.”
“Três noites que podem ser as últimas de nossas vidas.”
“Você acha que uma empresa iria querer manchar seus investimentos bilionários em publicidade, se suspeitassem que haveria algum risco? São equipamentos de última tecnologia, não tem gente que usa macacões especiais para entrar no fogo?”
“Não sei… talvez tenha razão… mas você conhece as sequelas do frio extremo, a morte de tecidos, dedos, nariz, orelhas que morrem e caem…”
“Usaremos luvas, balaclavas, toucas, tudo previsto e estudado por especialistas que gastaram centenas de horas em simuladores digitais. Sem riscos. De qualquer forma precisamos decidir e meu voto é sim.”
Foi a vez de Hildebrand levantar-se e caminhar pelo quarto, da janela avistou os grandes guindastes em sua ininterrupta tarefa de mover contêineres.
Aquilo parecia sinalizar algo, mas não sabia o que era. De qualquer forma, qualquer ação, em uma bifurcação, indicava com mais veemência o caminho ativo do que o passivo. Ele olhou para esposa, cujo leve sorriso parecia uma imensa fenda pedindo para que ele caísse dentro, e do alto de sua queda espalhasse um extenso SSSSSIIIIIIIIMMMMMMM, feito de uma duradoura convicção, que apesar de carregar grandes quantidades de medo em seu bojo, continuava sendo a marca indelével de suas vontades.
Ele então também sorriu:
“Sua louca.”
“Isso é um sim?”
“Isso é um não sei. Não sei porque não consigo te dizer não.”
Ela ficou em pé e o abraçou como uma criança que acabara de convencer o pai a comprar sua primeira bicicleta. Ele, assim como os pais que concordam com essa compra, temia por ela e pelo sofrimento que experimentaria caso algo de grave acontecesse. Ficou decidido que aceitariam a oferta. Hildebrand foi obrigado a prometer que não voltaria atrás em sua decisão, e quando o fez, reparou novamente nos guindastes, que pela primeira vez desde que chegaram ao quarto, pareciam desocupados. Um silêncio estranho entrou pela janela e se espalhou, mas logo foi expulso pelo cotidiano, que batendo suas asas, fez com que ambos desviassem pensamentos de assuntos flutuantes e se ocupassem apenas com aquilo que possuía raízes.
Mas então Hildebrand mergulhou em novo silêncio, enquanto Liotta falava sem parar e nem percebia que ele estava ausente. As raízes, que supostamente deveriam indicar solidez, eram, de fato, o atestado de finitude de um ser. Só perecia aquele que, de alguma maneira possuía raízes, os outros, aqueles sem raiz, ou estavam livres do fim por já o haver experimentado, ou então se metamorfoseavam, fundindo-se com outros seres, e dessa forma escapando da finitude. Os guindastes parados haviam chegado ao término de suas tarefas, e um dia também, perderiam suas hastes viris e a capacidade de levantar grandes pesos. O mortal, portanto, também se transformava em outro após seu fim ser decretado. Não havia escapatórias e as poucas que se mostravam, ou tentavam existir, como o combustível que nesse instante alimentava o sorriso de Liotta, não passavam de ilusões.
Ela finalmente percebeu sua ausência e desconfiou:
“Arrependido? Sabia que…”
“De maneira nenhuma, promessa é ouro.”
“Então o ladrão roubou o ouro?”
Hildebrand precisou se esquecer das raízes, dos guindastes e da tentativa musical de Rachmaninoff em emprestar um sentido para a própria vida e a de qualquer outra pessoa. Sobre os cacos afiados de suas dúvidas, desviou passos e, gastando uma energia que precisou emprestar do mundo, sorriu, pediu desculpas pela distração, e mergulhou com um entusiasmo juvenil nos assuntos em que Liotta nadava.
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
