NEBLINA: JANDIRA ZANCHI

  
Ilustração: Pawel Uchorczak     

Andava meio perdido naquela neblina. O pós-pandemia deixara a vida meio deserta, mesmo quando os bares estavam cheios e aconteciam as conversas na calçada  era grande o esforço para se manter vivo, alegre, nutrido de esperança, de calor vago e volume de asas. Não aguentava muito tempo, algumas vezes parecia como antes, sentia a antiga eletricidade, se encantava com a beleza de alguma menina e depois fazia amor com ela, o conhaque de sempre escorrendo ardido no pós-coito, a cumplicidade, as risadas misturadas. Mas, a vida se fora de alguma maneira. Algum ego mau e poderoso engolira uma parte de cada alma. Deixara o invólucro, porém, o doce azedo do medo os corrompera. Não eram irmãos, não, esses jovens de 20, 30 anos, não eram tão irmãos assim.

Talvez fosse alguma coisa errada nele, já ia pelos seus 36, aluno ainda, terminando o doutorado na pública, voltara a dar algumas aulas presenciais naquela faculdade particular, embora também continuasse o esquema digital, enfim, sentia-se bem com aquele arremedo do de sempre, com suas longas elucubrações na teoria, com os mesmos e previsíveis olhares de admiração de uns, com o tédio dos outros. A tese se encaminhava para o fim, se dava ares e sabia que não era assim tão grande coisa, esse epílogo abria no estômago um começo de ulcera (talvez fosse só azia), um inoportuno e intenso senso de realidade o consumia, o céu era só céu, a ciência desnudava com vigor o cosmo e o alheio, tão pequeno… era tudo uma química, sempre soubera, mas viver assim na ausência dela, na vida perfurada pelo medo e pela insegurança, doía.

Tantos, antes, consolava-se, viveram tempos de guerra, de peste, de sobrevida miserável e continuavam e lutavam e se erguiam. Não era só isso, o cultural não abrangia a dor contínua rasgada daqueles dias. Os sobreviventes e, dizia-se sempre, eram principalmente sobreviventes da angústia e do isolamento, armavam uma crença de que a ciência os proveria. Seria mesmo? O que não faltam são perigos, pois, se nem o espaço era contínuo, discreto, lera, fora se informar, discreto seria quântico, não inteiro e movido de um canto a outro. Encafifara com isso, coordenadas diferentes, tempos idem, era isso? Um mundo branco e atônito, muito parecido com as descrições de astral ou purgatório, muito parecido com aquela neblina.

Neblina fria, opaca, sem confidência, lua destronada e humilhada por aquele gelo seco, céu assim, quase além túmulo, deveria configurar apenas em planetas e luas distantes, de sol minúsculo, de silêncios claros e firmes como a eternidade. Suspirou, seus poemas, agora, eram cúmplices dessas madrugadas vazias, injustas, com poucos perdidos e menos ainda corrompidos, todos desajustados da fronteira da noite. Da verdadeira noite. Maiúscula, considerou.

Então seria assim. Só um homem cabisbaixo? Não, esse urbano de fim de era também era clássico, tentou se convencer. Um fraco, sorriu, parece que não aguento a realidade sem um pouco da pompa do romântico, do heroico, do juvenil. Mas, essa noite selava sua compreensão de destino. Viveria para os bares, as conversas fáceis ou enfeitadas, as empreitadas no lírico e nos solventes, porém, os livros, as idades da terra e das sociedades, a perscrutação nas almas e nas lutas (embora as certezas dos calados e injustiçados nunca mais o abandonassem), o caminho colorido pelo humano na cultura, nas normas, nas paixões, nas tempestades, temperado esse cozido (ou cru porque nunca se terminava de conhecer e surpreender) da divulgação científica fariam a pessoa que seria. Um homem previsível, leitor de muitos livros, escritor de um ou de outro, um pouco vago e, atento, surpreso da temporalidade de si e de todas as perguntas.

 

JANDIRA ZANCHI

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *