Das delícias do destino, crônica de Malvina de Castro Rosa

Foto de Juliana Stein

A vida às vezes é uma grande coincidência planejada pelo nosso inconsciente, que opera mais lúcido que muito cidadão brasileiro. Hoje o dia acordou com chuvinha fina típica de inverno, frio e nublado, mas as manchetes e as piadas logo iluminaram o dia de quem sofre dessa delícia de ser pensante em um país que teima em flertar com a mediocridade e a desfaçatez. Em meio a um turbilhão de trabalho e outros tantos afazeres, ri, li, mas confesso que não me aprofundei em merecidas comemorações. Quem diria que um acessório eletrônico de controle de localização e outras saborosas sanções fariam o inverno sorrir?
 
Era o último dia de aula das fofas da minha vida antes das férias e para quem faz home office, isso significa deixar tudo azeitadinho para as próximas semanas seguirem lindas e com a engrenagem capitalista funcionando. Na hora que a fofa menor estava de saída para o colégio, lembrou que era preciso pegar uma lição de casa feita nos primeiros dias do ano, que consistia em fazer uma carta para ela mesma do futuro e colocar em uma garrafa, algo como uma cápsula do tempo. Eu nunca compreendi que um dia seria necessário levar a tal garrafa para o colégio, então lá em fevereiro, quando me foi pedido o vasilhame, dei um que tinha em casa e achei adequada, mas nessa mesma hora o destino me disse: Vai ser gauchê na vida e maternar, guria! Tudo vai dar certo!
 
Eis que no final desse dia luminoso para a democracia nacional, recebo uma ligação da coordenadora pedagógica:
 
— Oi, querida! Queria falar sobre a lição da garrafinha, e acho que preciso te pedir para trocar a garrafa. É que vidro fica complicado deles manusearem durante a exposição que faremos para a comunidade escolar, e também tem a questão da mensagem política que aqui na escola pedimos para os pais evitarem.
 
Eu disse ok. Desliguei o telefone, que estava no viva-voz, e a fofa maior, já adolescente, me perguntou o que tinha de errado com a garrafa. Tive um ataque de riso e expliquei que era de vidro, tava escrito Destilado de esquerda e tinha uma foto do Lula. Veja como a droga lícita é aceita nesse país, ela nem falou nada do destilado.
 
Minha comemoração subconsciente foi censurada! Pensei em explicar para a coordenadora que eu não tinha bebido toda a pinga hoje pela manhã, mas achei que não valia a pena. Já fiz a fama e agora deito na cama. Quem sabe não era isso que meu inconsciente consciente realmente queria… Marcar uma posição? Me pergunto se teria problema em enviar uma garrafa com a foto de Paulo Freire. Ou, quem sabe no dia em que as garrafinhas forem expostas eu devesse ir com um boné escrito Brazil is not the Mãe Joana’s House.

Malvina de Castro Rosa é de Porto Alegre. Escritora, relações públicas e mestra em design estratégico, publicou os livros As loucas aventuras da guria maluca (crônicas, 2013), Paralelos Cruzados (2021), seu primeiro romance, e Crônicas de um fim do mundo antecipado (2023), no qual reúne crônicas do blog semanal que mantém há mais de quatro anos, www.bomdiasociedademachista.blogspot.com. Em 2024, lançou a coletânea de contos Em nós. Atualmente, é editora assistente na Caravana Grupo Editorial no Brasil e editora-chefe da Caburé, na Argentina, além de conselheira da revista Vinca Literária.

Instagram @malvina.rosa

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