Coluna Guido Viaro: O Quadrado/Capítulo 7

Ilustração: Alex Melo

 
A experiência argentina foi cheia de altos e baixos. Um acolhimento caloroso por parte de seguidores que, pela primeira vez os reconheceram, os filmaram e fizeram com que ganhassem mais cinco mil companheiros digitais, a maioria argentinos. A noite gelada foi marcada por grandes dificuldades, o frio de 11 graus negativos tornou tudo muito difícil, para preservarem energia, pouco se comunicaram com os seguidores que, ao longo da noite, foram desaparecendo. Quando o dia amanheceu havia menos de quatrocentas pessoas on line, e isso se refletiu nas doações, que ficaram pouco abaixo de mil dólares. Felizmente eles passaram a receber a ajuda de custo de dois mil euros, e continuavam recebendo passagens aéreas ilimitadas.                                                                                                      
Na metade da noite gelada Liotta esteve a ponto de desistir de tudo, o frio descobria novas maneiras de penetrar através de qualquer pequena fenda, e o resultado era o de uma chibata metálica que permanecia em esforço contínuo para destruir suas peles. Mas ela fechou os olhos, lembrou-se que fora ela mesma que o havia forçado a aceitar o desafio, e prosseguiu até que o sol da manhã diminuiu um pouco o frio. Nada disse ao marido sobre a vontade de abandono, mas se isso havia acontecido com onze graus negativos, como seria com cinquenta? Lembrava-se da promessa dos equipamentos de nova geração que segundo a publicidade: “transformaria temperaturas polares em agradáveis brisas de fins de primavera”. Não sabia até que ponto poderia confiar nisso, então quando, depois de descansarem, e à beira de uma lareira no bar do hotel, Hildebrand a perguntou se ela havia sofrido, ela mentiu.                                                                   
 
“Mais ou menos como da última vez.”                                                         
 
Ele deu um gole em sua xícara de chocolate quente e sorriu:                        
 
“Para mim não, senti bem mais frio, mas nada insuportável.”   
“Acho que nós mulheres estamos mais acostumadas às dores.”                    
 
Então o casal decidiu que a primeira medida a ser tomada seria se afastarem imediatamente do frio, e por um bom tempo se esquecerem dele. Rumaram para o nordeste brasileiro, onde as estações se distinguem apenas pela maior ou menor quantidade de chuvas. Uma temperatura quase constante de trinta e dois graus durante o dia e vinte e três à noite, com variações mínimas. A primeira parada foi Fortaleza, uma grande cidade com belas praias, muitos problemas de violência, e apinhada de turistas estrangeiros, o que fazia com que os preços fossem puxados para cima. Se respirava naquela cidade uma estranha mistura de essências, havia o almíscar sexual representado por uma juventude morena, mal entrada na puberdade e que parecia localizar em qualquer estrangeiro de meia idade e de aparência abaixo da média aceitável, um porto seguro, ou a missão que deveria ser cumprida. A esse odor adicionava-se a vida marinha, que atravessava a praia, invadia avenidas, e se misturava ao cheiro de asfalto e gasolina. Mas as misturas não paravam por aí, havia também o cheiro da deterioração, lixo espalhado pelos cantos, comida vencida, gente suja e desesperada ardendo sob o sol em busca de uma resposta, uma recompensa qualquer que emprestasse significado a seu dia.     
                                              
Esses odores eram amarrados por uma luz clara, com muita vontade de viver e que parecia ser uma das principais fontes de energia dos habitantes que, apesar de carregarem uma tonalidade de alma circunspecta, adicionavam a ela uma alegria de viver que parecia excessiva e sem lastro. Depois de uma semana eles e seus bolsos se cansaram da cidade grande, então iniciaram um périplo pelo interior do estado do Ceará, de um lado as belas praias recheadas por gastadores de euros e dólares, do outro a serra, verde, menos quente, melancólica, que uma vez se cansava de sua cor e se transformava em sertão, seco, duro, homens e mulheres feitos para suportar um sol inclemente que elevava o termômetro até próximo dos quarenta graus.                                                                                                                         
Casas e almas feitas de pau-a-pique, o homem vestido de terra aceitando seu destino como um soldado estoico. Um mundo novo e rico para os que não o conheciam, mas velho e pobre para os que só o conheciam. Mas o calor era o combustível daquele casal que não se importava com acomodações modestas e falta de conforto. O idioma, que a princípio os assustara, aos poucos deixou de ser uma barreira, sorrisos e olhos se encarregavam de traduzir o não dito. Do Ceará foram ao Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, sempre evitando o litoral e suas praias dolarizadas. Descobriram novas palavras, frutas e hábitos, quando o assunto cansava, o sexo era a resposta, depois vinha um silêncio vazio que acompanhava a tarde e só ia embora quando o calor fazia chiar as telhas de barro.     
                                                                                                                       
Nesse longo périplo cruzaram com alguns europeus que tudo fotografavam, e pareciam querer aprisionar em garrafas, a vida que os envolvia, para então, quando voltassem a seus países, consumi-las em goles moderados, ao lado de lareiras que os protegeriam da neve que a janela mostrava cair. Eles evitavam maiores contatos com esses tipos, e sentiam-se mais íntimos dos silenciosos brasileiros feitos de couro e barro. Apesar das cidades se parecerem bastante, o casal nunca deixou de se movimentar, acompanharam hordas de meninos tocando seus pífanos e batendo nas casas em busca de moedas, seguiram procissões religiosas onde santos de barro, pintados em cores berrantes eram chacoalhados por caminhos tortuosos, e ainda assim mantinham expressões serenas, garantindo ao espetáculo uma dignidade que dividia espaço com a expressão histérica de alguns participantes da procissão. Eles também acompanharam outro tipo de cortejo, onde um homem que parecia haver engolido grande dor, e agora ela não mais estava mais estampada em seu rosto, mas sim, sendo processada por suas entranhas, carregava uma caixa branca pouco maior que uma de sapatos. Seus passos lentos eram acompanhados por mais meia dúzia de indivíduos, uma delas vertia dores lacrimosas e com seus gritos pedia para que a injustiça fosse corrigida e seu anjinho pudesse um dia brincar ao redor de sua casa de pau-a-pique.                                                                 
 
Mas os pedidos nunca eram atendidos e no máximo, o que faziam, era atrair braços morenos transformados em consolo. Depois da terceira dessas procissões, Liotta, que costumava misturar suas lágrimas às da mãe do defunto, decidiu que aquilo não lhe fazia bem. Quando os panos brancos e a fila de sofredores se aproximava, o casal passou a desviar direções, contemplar as cores e a paz de um lagarto e a maneira pacífica como os cachorros todos cheios de costelas, espantavam as moscas grandes e cheias de saúde, com um ritmado abanar de rabo.       
                                                      
Mas também havia riqueza naquelas terras, grandes usinas de cana-de-açúcar iluminadas como uma cidade de médio porte, engrenagens bem azeitadas que se pareciam com leões solitários caminhando por praias desertas, impondo suas certezas às areias, mas temendo as vontades de um mar muito maior do que eles. Esse mundo religioso era mistura, havia espada, couro, lágrima e cruz, e também havia cores e os sabores do mundo escondido dentro de frutas de que nunca haviam ouvido falar.
                                      
Ambos, após muitas queimaduras de sol, passaram a adquirir parte daquela cor de gente. Em Liotta, a mistura contrastava com o verde de seus olhos, aumentando-lhe a beleza, e dando a ela o aspecto de uma fortaleza inexpugnável de saúde, que pela quantidade imensa de barreiras, jamais conseguiria ser dominada por uma doença. Os dias eram feitos de mel e tinham os sons daquele idioma suave que a cada manhã tornava-se mais compreensível. Por várias vezes cogitaram mudar-se de vez para lá, vencidos os três desafios gelados. Talvez uma cidade de médio porte com estrutura mínima. Com o dinheiro que receberiam pelo desafio, se transformariam em milionários daqueles humildes recantos. Essa era uma possibilidade. Mas nunca, de fato, passariam despercebidos, para sempre seriam os gringos, diferentes, misteriosos. Os gringos fugidos do frio.                  
 
O périplo prosseguiu, atravessaram toda a Paraíba, depois mergulharam na secura do Piauí, voltaram ao Ceará, onde Liotta elegeu a cidade dentre todas que visitaram, em que gostaria de morar quando o desafio gelado terminasse. Era Limoeiro do Norte, na fronteira com o estado do Rio Grande do Norte. Uma cidade tranquila onde o calor não era excessivo, e a população se locomovia usando bicicletas. Cansados de hotéis, conseguiram alugar uma casa por um mês, custou apenas cem euros, as compras para um mês de alimentação não chegaram a cento e cinquenta, com menos de trezentos euros era possível viver sem luxos ou privações. Com o dinheiro que ganhariam, poderiam literalmente viver o resto de suas vidas por ali. Era evidente que depois de algum tempo seriam corroídos pela espécie mais agressiva de tédio, mas essa já era outra história, um mal ainda não concebido e que apenas flutuava entre almas buscando existir. Mas, quando, e se, nascesse, certamente possuiria o respectivo antídoto.                
 
Um mês, em uma cidade como Limoeiro do Norte, é tempo suficiente para sólidas relações, o casal percebeu isso, mas não conseguia corresponder à altura aos sorrisos, abraços e     convites para jantares. Mas em um determinado momento precisou ceder. O dono do mercado em que faziam as compras tinha uma neta que estudava letras em Fortaleza e dominava razoavelmente o inglês. Ela foi até a residência do casal e convidou-os para um jantar. Hildebrand, enquanto ouvia o convite, tentava inventar uma desculpa, mas naquela cidade não havia muito o que alegar, então ele simplesmente disse que sim.                                                               
 
No horário marcado foram recebidos por uma imensa família que os reverenciava como se fossem soberanos rendendo visita aos mais humildes servos. A jovem traduzia as palavras do avô, um homem feito de sol e barbas brancas, e que guardou para o casal os melhores lugares na mesa. O nome de Hildebrand foi repetido muitas vezes, de diversas maneiras possíveis, a neta ajudou o avô, mas a pronúncia parecia tarefa impossível para ele. Tratou-o simplesmente por Hildo, o que foi aceito sem problemas. Já, Liotta, foi palavra fácil de ser aprendida. José, o anfitrião, pediu desculpas por sua falta de estudos, e ofereceu a Hildo, um gole de uma de suas cachaças. Uma prateleira onde garrafas transparentes engoliam um líquido amarelado acompanhado de mais algum ingrediente, ervas, frutos e até escorpiões e cobras.                                                                                                
 
A luz minguada que iluminava as garrafas, transformava a cena em um trecho de sonho que conseguiu escapar do sono, e as cores que nasciam ali, eram todas inéditas, tons jamais catalogados. A cobra marrom, a qualquer momento, sairia de sua garrafa e começaria a falar, contaria sua vida, perguntaria suas dúvidas e ameaçaria com mordidas aqueles que não as respondessem. Para que isso não acontecesse, Hildo, escolheu a garrafa que lhe pareceu mais inofensiva, sobre o líquido levemente amarelado flutuavam dois frutos da mesma cor parecidos com pêssegos, mas que, segundo a tradutora, se tratavam de sapotis. O velho encheu um pequeno copinho de vidro e fez sinal para que ele virasse a bebida em um gole só. A bebida era violenta e provocou tosse no convidado e risos no anfitrião. O velho apanhou o copinho de sua mão e abriu outra garrafa, dessa vez o fruto era avermelhado, a palavra precisou ser repetida quatro vezes até ser entendida: Ciriguela. O líquido adocicado desceu com mais facilidade, e o velho encheu novamente o copinho. Ele quis que sua esposa provasse, mas o velho logo providenciou outro copo para ela.                                                       
 
Dessa vez ele bebeu devagar, sentindo os açúcares que, como já percebera, eram uma espécie de marca assinada da gastronomia do país. Mas havia muito mais a ser percebido, o gosto ácido da fruta, lutando para existir, a cor da pele do velho, que parecia exemplarmente reproduzida em todos seus descendentes. Sumiam as rugas, mas de resto era a mesma pele, e porque não dizer, principalmente quando se tratava dos homens da família, a mesma pessoa, desafiando aquele clima, aquela falta de perspectivas, aceitando o que lhe era imposto, lutando contra os excessos da vida, para finalmente localizar seu lugar naquele mundo estranho, rodeado por espinhos, cruzes e bicicletas, e que flutuava em montanhas de açúcar. Então o olhar de Hildo fixou-se na cor das garrafas, um mundo que parecia não pertencer a nada que conhecera. Foi aí ele reconheceu seu reflexo naqueles vidros distorcidos. Ele conseguia enxergar as fraquezas daquele mundo porque não pertencia a ele, certamente o seu mundo possuía tantas quanto aquelas, provavelmente muito mais.                              
 
Foi chamado de sua meditação por José, que achou que ele queria beber de mais uma de suas garrafas. O copinho foi enchido com um líquido esverdeado, onde restos de alguma erva mal filtrada flutuavam como pequenos barcos à deriva. Ele cheirou a bebida e virou em um só gole. José riu da careta que o novo amigo fez, e perguntou, através de sua neta, se ele tinha coragem de beber um pouco do líquido onde flutuava a cobra. Diante do sorriso unânime de todos os presentes, não teve como recusar. Não quis encontrar o olhar vidrado da cobra, tapou o nariz e em gole único, engoliu o líquido. A façanha provocou uma explosão de risos em todos os presentes. Hildo tinha os olhos lacrimejantes, e um sorriso que só não era maior, porque parecia que precisava usar parte de suas energias para fazer com que seu estômago não tomasse medidas precipitadas. E apesar de ainda sentir na boca um gosto que lembrava os sumos envelhecidos de um churrasco feito com carne barata, desviou pensamentos e pediu para dar um gole de cerveja.
                                                                                                        
Teresa, a esposa de José, chamou para a mesa, pois o jantar estava servido. Os onze convivas tiveram diante de seus olhos o cadáver partido de um bode, que não fora despido de seus chifres, e cujos olhos estranhos pareciam buscar parceiros para travar encontros. A mais afetada pela cena foi Liotta, que serviu-se apenas de salada e da farofa que acompanhava o prato, e também dos ovos que a empregada fez questão de fritar. Hildo titubeou diante do prato, mas depois de consultar o próprio estômago, escutou que estava tudo bem, então avançou, servindo-se de uma camada gorda de entranhas, que fez descer acompanhada por grandes goles de cerveja gelada.      
                                                                                           
O bode foi sendo esvaziado até sobrar apenas a cabeça, que se não fosse pelos olhos e chifres, também teria suas carnes roídas. Quando a empregada levou embora a grande bandeja de madeira onde repousavam os rejeitos do animal, Liotta experimentou um alívio. Hildo pediu mais cerveja e recusou a sobremesa, um líquido pastoso de cor amarela onde flutuavam pedaços de algum fruto de nome exótico, e certamente, muito açúcar. Então contemplou seus anfitriões, todos compartilhavam o tom moreno de pele e os dentes brancos que exibiam sem cerimônia. As risadas flutuavam pela sala, leves como bolhas de sabão, e assim que uma desaparecia outra tomava seu lugar. Por um instante Hildo pensou em continuar sendo Hildo, em abandonar os desafios e conseguir um emprego no mercado de José, e depois de algum tempo aprender a sorrir como eles.     Os odores dos restos de carne e do doce açucarado se misturavam ao das grandes mangas rosadas que pendiam pela janela, um mundo exuberante e bem humorado, sem inverno, livre da velha cultura europeia e seus odores apodrecidos, um novo mundo cujas mazelas, apesar de evidentes e gritantes, pareciam ser mais fáceis de curar do que as do velho continente. Hildo sorriu para Liotta e balançou a cabeça. Ela entendeu o que ele quis dizer, e abaixou a cabeça, não queria concordar, era precipitado, ainda não conheciam aquela cultura em profundidade.   
                         
José chamou a neta e pediu que ela perguntasse a Hildo como vieram parar ali, e no que trabalhavam. Embalado pelos líquidos misteriosos que havia consumido, e também pela cerveja gelada, cujo copo era sempre mantido cheio, ele desandou a falar. Nada escondeu, a decadência, o encontro de Liotta, a morte de sua filha, os desafios gelados, os patrocinadores e as próximas três aventuras que garantiriam a eles uma confortável aposentadoria.                                                                                     
 
A moça pedia pausas e traduzia trecho após trecho o entusiasmo de Hildo, às vezes parecia constrangida com o que dizia a seu avô. O velho, aos poucos, foi economizando sorrisos, mas continuou de ouvidos abertos, escutando a história de um Hildo que agora sorria mais do que qualquer membro da família. Encerada a narração José estava sério, bocejou e pediu licença para ir dormir. Quando apertou a mão de Hildo tinha dedos moles e um sorriso amarelado, que lembrava o dos europeus.                                           
 
O casal ainda permaneceu algum tempo na casa, mas a alma daquele encontro pareceu haver abandonado aquele corpo. Então Liotta fez sinal e ele obedeceu. Despediram-se e antes de voltarem para casa, Hildo fez questão de tomar mais uma cerveja em um bar que encontraram aberto. Nesse instante percebeu que Hildo não existia mais e voltara a ser Hildebrand. Então se pôs a analisar a mudança de comportamento de José depois de haver escutado sua história. Ele certamente havia detectado podridão no ar, um ranço europeu que por aqui era desconhecido, e por isso mesmo, de fácil percepção. E ele estava coberto de razão, toda sua história, desde a decadência familiar, passando pelo encontro com Liotta, a morte de sua filha, e a maneira como escolheram para sobreviver, tudo isso compunha uma substância escura e mal cheirosa, um dejeto expelido por almas entediadas, e que não conseguiram construir nada de útil com o tempo vago que a civilização lhes proporcionou. 
                                                 
O dever de qualquer consciência sã, quando percebia que esses odores rondavam suas vizinhanças, era se afastar, aquilo não era bom e não conduziria a qualquer bem. José havia agido corretamente, um aperto fraco de mão para que qualquer possível vínculo fosse interrompido, agiria da mesma forma se estivesse em seu lugar. Liotta parecia ansiosa em voltar para casa, e recusou a cerveja que ofereceu. Hildebrand antes de ir embora olhou ao redor, aqueles homens morenos e humildes, sorridentes, divertindo-se com o futebol que passava na televisão ou com o jogo de cartas barulhento, que misturava gritos de desafios a risadas. Invejou-os com todas suas forças. Era fácil tomar uma decisão como a de José, mas, no seu caso, o que poderia decidir?                                                                           
 
Uma opção era continuar mergulhado dentro do tonel de podridões, e além de conviver apenas com pessoas da mesma espécie, fingir que aquela era a condição humana e que nada de diferente daqueles sabores e odores poderia existir. Havia outra opção, mais difícil e trabalhosa, sair de dentro do tonel, lavar corpo e alma, raspar com faca todas as impurezas incrustadas em cantos escondidos, e recomeçar a vida do zero.                                   
 
Ele pagou a cerveja e puxou Liotta, que estava quase adormecida, pela mão, foi nesse instante que percebeu que se optasse pela segunda alternativa precisaria fazer exatamente o mesmo, arrancar à força sua esposa de dentro do tonel, e ajudá-la a limpar-se de todas as impurezas, era claro que ela também o ajudaria, desobstruindo suas esquinas sem acesso, um trabalho árduo, penoso, e sem garantias de sucesso. Peles e almas poderiam estar definitivamente manchadas, e tudo ser em vão.                                  
 
Na manhã seguinte o corpo cobrou a conta dos excessos praticados. O mal estar invadiu Hildebrand como um império que promete durar mais do que todas as formas de governo anteriores. Os antiácidos eram como a polícia tentando se defender contra poderosos exércitos. Quando despejava, sem conseguir alcançar o banheiro, sólidos e líquidos no chão da sala, lembrou-se das podridões, envergonhou-se de haver se transformado em um de seus agentes, como o mosquito que transmite a dengue, ele levava adiante as sobras nefastas de sua Europa, e naquele instante, com os olhos marejados pela descarga de líquidos, e os odores que rapidamente subiam do chão de madeira, não localizou em si forças suficientes para fugir da podridão e optar por um caminho alternativo.Cruzou olhares com Liotta que o fizeram ainda mais envergonhado.                                                                  
 
Ela saiu, esperava que quando voltasse, a casa estivesse limpa e livre de odores. Caminhou até a praça central que como em qualquer cidade como aquela abrigava a principal igreja. As nuvens que cobriam o céu poupavam aos moradores o grosso do suor. Algumas mães passeavam com suas crianças, e um paciente pipoqueiro esperava por aqueles que saiam da igreja, afora isso, o movimento daquele canto perdido do mundo era o dos pássaros que voavam de palmeira em palmeira e pareciam dizer algo aos seus vizinhos. Esse era o mundo em que Liotta estava mergulhada, e que a agradava. A solidão lhe fazia bem. Respirava aquele ar levemente aquecido, sentia o calor sobre sua pele e escutava o ruído distante das motocicletas    .
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De olhos fechados, durante alguns instantes percebeu um silêncio absoluto, aquilo pareceu-lhe alguma forma de sinal. Sim, precisava mergulhar.  
                                                                                                         
Era uma naufraga, aceitava o ritmo e as vontades das correntes, sua vida estava enroscada em alguma borda de rio, mas logo a correnteza a arrancaria dali e a apresentaria à novas paisagens, então, talvez, as águas do rio congelassem e ela permanecesse um longo inverno petrificada em algum canto, para então finalmente descongelar e seguir viagem. Uma viagem que não era sua, e nem ao menos da vida. Essa era uma viagem do acaso. De olhos abertos assistiu ao movimento das nuvens até que a luz fizesse com que lágrimas brotassem. Desde menina, jamais escolhera seus caminhos, de riacho em riacho, depois derramada em lagoas, atravessando dutos que a despejaram em oceanos, para novamente seguir rios, despencar de cachoeiras, dividir-se em múltiplos córregos. Sempre impulsionada por forças que não as suas, aceitando qualquer desejo alheio como o seu, fingindo ser outra, fechando os olhos quando seu verdadeiro retrato enchia o espelho. 
                                                                                                         
Os óculos escuros agora a protegiam do excesso de luzes, mas as lágrimas continuavam descendo, agora impulsionadas por suas escavações. Será que realmente existia? Essa era sua maior dúvida. Ou então não passava de um emaranhado de interesses alheios? Uma engrenagem na linha de montagem do mundo.                                                                                 
 
Sabia que isso não era verdade, e em caso de haver se tornado uma, haveria um culpado. Sim, era a única culpada, pois sabia que, no fundo, todos nascem perguntando, recheados por uma energia que é vontade, feita para nos conduzir onde desejemos, caudas avermelhadas de lambaris que o tempo faz perder as cores e a flexibilidade, mas que ainda podem, se assim desejarmos, mudar rumos e desviar correntezas.                                                    
 
Então ela viu um homem que por alguns instantes abandonou sua bicicleta enquanto pedia informações em uma loja. Aquela era sua chance, pedalar até não conseguir mais, encontrar outra cidade, mudar de nome, prostituir-se, roubar, pedir esmolas, escolher seus prazeres a dedo, e usufruir deles no instante em que as vontades nascem. Depois sair do rio para não se afogar, e então respirar aliviada, enxergando aqueles que são arrastados pela correnteza e que nada podem contra suas forças. Depois do riso irônico pelas mãos espalmadas estendidas na direção do céu, uma alternância entre sol, sono e tédio, a felicidade possui em seu íntimo a semente vermelha da insatisfação, e ela brota, florescendo espécimes que encantam os olhos com suas cores e harmonias.                                                   
 
Mas o rio continua lá, plantado entre relevos, com sua implacável e diuturna correnteza, que depois da luta, sempre termina vitoriosa. Sobre ele outra força imutável, um azul sem fundo, por vezes tingido de escuro e pontilhado por brancos, manchado pelo amarelo do dia ou os prateados suaves da noite, um monumento sem fim ou escapatória. Liotta, sentada no banco de praça, que era a margem do rio, percebia como tudo parecia haver sido muito bem pensado para que não houvesse qualquer possibilidade de fuga. Sob si as águas da correnteza, acima de sua cabeça o céu. Se consumisse todas suas energias poderia nadar até a margem e observar outros sendo conduzido pela vontade das águas, mas além disso, o que mais poderia fazer? Essa era a grande questão.                                                     
 
Com pena do pipoqueiro ela comprou pipocas, escolheu as coloridas em verde e vermelho. Excesso de açúcares misturados a pequenos corpos amolecidos pelo calor. Mesmo assim ela prosseguiu até terminar o pacote, mastigando para que o movimento a ajudasse a resolver suas dúvidas, tentando acender uma fagulha que aqueceria a caldeira da máquina do mundo, para que então pudesse sorver seus vapores, e perceber outros caminhos, novas possibilidades. As últimas pipocas foram atiradas às pombas, que após umas bicadas desistiram da refeição. Mas, ao contrário das pombas, Liotta não havia desistido, havia o céu, o rio, as margens e o que mais? Havia suas pernas para a levar longe, e os pulmões ansiosos desejando aspirar tudo o que não fosse sólido, havia sua imaginação, capaz de conduzi-la aos confins do universo, e um desejo pulsante que parecia tão extenso quanto a linha do horizonte, a soma de todas essas forças não significaria alguma coisa? Não seria suficiente para rasgar o tecido composto pelo rio, suas margens e o infinito céu?                                                   
 
Difícil responder. Só o que lhe restava eram as tentativas. Mas elas eram um novo mundo, mil tentáculos que se dividiam em outros mil, e prosseguiam em multiplicações exponenciais. Como escolher? Ela sorriu cheia de desdém, parecia que a cada vez que um prisioneiro, depois de meses de trabalho, finalmente consegue serrar uma barra de ferro e se evadir, descobre que fugiu de sua cela, mas que o presídio possui muitos muros vigiados dia e noite por guardas armados e policiado por cães de guarda, então percebe que o desafio apenas começou, e a cada nova etapa se tornará muitas vezes maior.                                                                                       
 
A praça se esvazia e as nuvens se afastam, o sol inclemente derruba seus calores sobre a pedra, o gramado indeciso parece sentir sede. Liotta, que possui ainda menos certezas, vagueia pelo centro da cidade, acompanha com os olhos a cor inflamada que mancha o ocre da igreja, depois desiste das luzes e com passos resignados e a cabeça baixa, caminha na direção de casa.  
                                                                                                
O chão estava mais limpo do que nunca, as paredes foram lavadas e as folhas da mangueira que costumavam se acumular no quintal, e eventualmente invadir a casa, foram todas recolhidas. Hildebrand estava barbeado e bem vestido, fizera de tudo para tentar anular a última impressão que havia deixado. Ela sorriu sem dizer nada, mas o sorriso foi caro, custou um esforço que não estava previsto. Ele era a correnteza que a mantinha no rio, à mercê das águas.                                                                        
 
Hildebrand, animado com o sorriso de Liotta anunciou as novidades, havia recebido uma mensagem dos patrocinadores, precisariam adiantar um pouco a partida, havia várias entrevistas agendadas em canais de televisão na França, Inglaterra, Itália e Bélgica. Mas ainda tinham mais de um mês antes da viagem. Então, indeciso sobre a maneira de falar, contava como um fato consumado ou pedia a opinião dela, resolveu amenizar a ordem com um sorriso e um abraço, então pegou-a no colo:                                       
 
“Não acha que tem algo de errado? Eu consigo te carregar, você está muito leve. Amanhã partimos para Natal, uma cidade maior, com muitos restaurantes, precisamos ganhar peso para o desafio, uns dez quilos no mínimo.”  
                                                                                                              
Antes mesmo de ser colocada no chão, Liotta sentiu uma vontade imensa de arrancar-lhe os olhos, atirar-lhe gasolina e acompanhar todo o processo de vê-lo se transformando em um minguado pedaço de carvão. A onda de ódio foi tão poderosa que só não se manifestou pois as opções de vingança se sobrepunham, e acabavam anulando as anteriores. Ela permaneceu em silêncio, e finalmente respondeu a seus entusiasmados sorrisos com um riso amarelado e tímido, uma sobra de ódios diluídos misturados à falta de coragem para tomar uma decisão.                                             
 
Na manhã seguinte devolveram a casa e tomaram o ônibus para Natal. Metade dos ódios derretera durante o sono, mas o vazio deixado havia sido substituído por uma inquietação sobre seu futuro. Liotta se perguntava sobre como seria sua vida após os desafios gelados. Pensou em abrir o jogo e decidir antecipadamente como dividiriam o dinheiro, já que tomaria outro rumo. Mas tanto as possibilidades quanto a falta delas, a assustavam. Se ele perguntasse o que faria da vida, não saberia responder. Não que precisasse dar satisfações, mas isso a assustava, pois da mesma forma não saberia dar essa resposta a si mesma.                                                
 
A cidade de Natal era uma capital de estado, um grande centro urbano com turismo muito desenvolvido, hotéis e restaurantes para todos os bolsos, mas mesmo as opções mais baratas eram muito mais caras do que o mundo que haviam deixado para trás. Parecia que a proximidade com o mar sempre cobrava um pedágio pouco racional. Eles alugaram um pequeno apartamento na periferia da cidade por exatas seis vezes mais do que aquilo que pagavam pela casa de Limoeiro do Norte.                                      
 
Liotta continuava indecisa, o ódio, assim como o amor, provou-se matéria degradável, e derreteu por completo. Mas dessa vez não deu lugar a nada, um vazio engolia seus dias, mas sem transformá-los em madrugadas cinzentas e chuvosas, ela mantinha estampado no rosto um céu azul sem nuvens, onde Hildebrand enxergava refletida a própria imagem. Foram dias lentos, regados a muita comida e banhos de sol. A obrigação de precisar engordar para melhor conseguir suportar o frio extremo, para que algumas pessoas que não a conheciam, se deleitassem com seu sofrimento, continuava latejando sob a carapaça solar de Liotta, mas esse sentimento havia se transformado em um dor nas costas com a qual aprendemos a conviver. A rebelião parecia cada vez mais distante.                                              
 
Após três semanas ela foi surpreendida, uma de suas curvas, que há décadas chamava a atenção dos homens, havia sido atenuada por uma massa gordurosa que, além de aumentar sua cintura, fez nascer uma barriga que nunca possuíra. O detalhe fez com que prestasse atenção no resto do corpo, e o mesmo acontecia em outras regiões, uma invasão lenta e gradual de gordura, que formava ilhotas embaixo dos braços, espalhava-se pelo pescoço, pelo interior das coxas e principalmente ao redor dos quadris. Há pouco tempo aquilo seria combustível para uma violenta explosão, e toda lava seria despejada sobre Hildebrand, mas dessa vez ela apenas sorriu, um sorriso sem alegria, um raio de luz que atravessa as nuvens para depois ser encoberto.                                                                                                     
 
Além de sorrir ela observava o mundo, emitia opiniões, escolhia sabores, contemplava o aumento dos números na balança e a diminuição dos dias que faltavam para voltarem para a Europa. Pela manhã ia à praia sozinha e deixava com que o sol a esquentasse, fazia o exato oposto a que seria submetida em breve. De olhos fechados procurava caminhos, desbravava possibilidades, nada era descartado, mas nunca conseguiu se apaixonar por uma escolha, elas vinham e iam embora sem deixar raízes. Isso a irritava, mas mesmo a irritação não era árvore frondosa, derretia como espuma do mar.                                                                                          
 
Hildebrand, ao contrário, era só entusiasmos, contava os dias para o desafio, verificava previsões de tempo, o aquecimento global poderia ser um grande aliado. O contrato assinado não exigia determinadas temperaturas, apenas dizia que em certas datas, eles deveriam dormir ao relento em três cidades específicas. O número de seguidores havia diminuído um pouco, mas prometia explodir assim que forem ao ar entrevistas que dariam para as televisões europeias. Ele estava ansioso em reencontrar o frio, pois o calor diário do nordeste brasileiro começava a cansá-lo. Sentia falta do cheiro envelhecido da Europa, e também de um espírito que paira em seus ares, e que é de difícil definição, um conformismo com a imutabilidade, tantos séculos de civilização, para olhos perspicazes, não incorreram em mudanças tão significativas, portanto, esse e os próximos, apenas repetirão o velho roteiro, e essa compreensão, para almas como a de Hildebrand, é reconfortante.


Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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