Sua canção de enganar, conto de Perce Polegatto

Imagem: Jeremy Lipking. Azul-claro.



Você se levantou e não pode evitar o dia, lembra? É a mesma rua de calçadas desenhadas por trincados e rachaduras, entre as quais as ervas agredidas insistem, aproveitando-se do que, para elas, podem ser abismos. Não está frio, mas o vento é sempre o primeiro: nunca antes este aqui soprou contra o seu caminho. Já pensou? Também nunca antes este dia, mas quem não é capaz de atinar com tais aborrecidas evidências? Difícil é descobrir onde. É descobrir como. O que engendrou o erro, quando você parecia perto de possuir o mundo por causa de sua coragem. E por causa do amor. Parecia fácil. E o mundo, para cada um, sempre foi só até onde se pode alcançar. Parecia fácil, não? E pensar que você continua, enquanto se repete: “Não é tão difícil.”.
 
Ela está sozinha, porque é manhã, e as colegas provavelmente dormem fora, tendo estendido a noite com aqueles que lhes ofereceram mais. É só um acaso que esteja vestindo essa bata translúcida e lingerie escura, apesar de muito conhecidas e gastas, porque ela não o esperava, nem você deseja mais, além de que ela o trate com amenidades, supondo que guarde um carinho para quando cessar de ser homem, e não conseguir disfarçar que declina outra vez a mostrar-se um menino.
 
Ela sorri menos, não diz por quê. Nem você pergunta. Ela tem por hábito agradá-lo, o que no início se fazia esperado. Mas algo tem se subvertido em relação a tais encontros, em relação a você, que tantas vezes a conheceu, deixou-se conhecer. Por isso ela passou a mostrar-lhe uns olhos inteiros, um rosto de frente, lábios talvez espessos demais para um nariz tão fino, dois incisivos ligeiramente separados, cabelos sempre fáceis de se despentear, gostosos por isso. Ela chega a lhe perguntar – desde quando? – como têm sido seus dias. Você conta algo de que se arrepende em seguida, acaba espantando tudo com um gesto no ar. Não é tão difícil.
 
Da primeira vez que a viu, lembra-se de um avião que passou. Sempre associava, como bem lhe convinha, um evento a um fascínio, que era de fato como se sentiu ao confrontá-la e ao sorriso dela naquele dia – e pregava a si mesmo: “Sim, está escrito nas estrelas. Eu tinha de vir até aqui. E encontrá-la. Estava lá, escrito.”. Hoje, deixa que ela torne a contar alguns de seus sonhos. Afinal, estiveram vocês tantas vezes juntos que já é possível admitir: os que se encontram, como vocês, de alguma maneira, no fundo sempre sabem que sonham. Tem vontade de dizer a ela: “Claro que sim. No ano que vem, você vai se mudar daqui. Vai conseguir aquele apartamento. Um pouco mais de trabalho, não é tão difícil. No ano seguinte, que seja. E encontrará aquele que vai ser seu companheiro, que vai amar você para sempre. Não é tão difícil.”. E pensar – pior ainda – que você raciocina com certa esperança, transferindo um tom de convicção a si mesmo, adiando sua própria felicidade, como também a dela, a um novo futuro.
 
Hoje amanheceu como para outros. Ela também se levantou e não pode evitar viver. E sua história com ela, sua canção e a de que finge gostar, nada disso é de fato atraente, como na verdade nunca houve histórias menos ou mais interessantes. Ocorre que algumas delas soam ameaçadoras, assim nos preocupam, nos movem a observá-las, por vezes a repeti-las. Que lhe importam a Coluna de Trajano, as sagas contadas, gravadas em relevo, se a sua vida é uma única peça, um único bloco onde se insculpem fragmentos com tudo que lhe coube, tudo que lhe cabe viver? E você sabe, como todos, que não pode estar antes nem depois da vida. Só aqui, em meio ao dia, é que tudo pode ser imaginado.
 
De alguma forma, ela se mostra motivada a viver, o que lhe parece misterioso. Você não mais dispõe de outros instintos, como se houvesse sido atacado pela razão. Ainda é possível encontrar o fundo de alguma verdade, desde que ninguém a escreva. A impressão muito intensa de que você e ela serão sempre dois: sinceros sempre, enquanto fingem como brincam. Enquanto brincam como mentem. Enquanto se repetem, um ao outro, tanto você como sua irmã, que não é tão difícil. E continuam tentando, secreta e persistentemente, voltar para casa.


  

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias.
É autor de 5 romances (“Os últimos dias de agosto”, “A seta de Verena”, “Marcas de gentis predadores”,“Projeto esvanecendo-se” e “Teus olhos na escuridão”), 4 volumes de contos (“A canção de pedra”, “A conspiração dos felizes”, “Lisette Maris em seu endereço de inverno” e “Inconsistência dos retratos”) e um de poesia (“Diário contra o destino”).  A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” ( www.percepolegatto.com.br ).

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