
As feras estavam mais famintas do que nunca, e a corrente que as separava da carne humana havia sido encurtada. Pequenos arranhões, que deixavam gotas de sangue visíveis, aumentavam ainda mais a ferocidade e o desespero das bestas. Essa era a sensação do casal, o frio pertencia a uma outra dimensão, realmente insuportável. Quando iniciaram a transmissão o termômetro marcava trinta e sete graus negativos. Eles embrulharam-se da melhor maneira que podiam, atentos para que nenhum milímetro de carne ficasse descoberto sob pena de ser destruído, mas mesmo com toda atenção algo acabava descoberto, um ferimento garantido. E não era só isso, o frio conseguia atravessar os cobertores e além de algum desconforto, enchia a noite de um pânico que consumia grande parte das energias do casal. As mensagens chegavam aos milhares:
< Desistam, isso pode ser muito perigoso.
< Essa transmissão deve ser fake, gravada em estúdio.
< Estamos rezando por vocês.
< Que ridículo, se ainda fossem jovens, mas nem essa desculpa têm.
< Saiam daí enquanto não é tarde.
Com um esforço sobre humano eles conseguiram manter os seguidores atualizados sobre a temperatura e como se sentiam. Hildebrand precisou mentir, pois várias vezes pensou em desistir, principalmente quando no período mais frio da noite, os aparelhos de filmagem começaram a apresentar mal funcionamento, e necessitavam serem reiniciados para voltarem a funcionar. Pensou em saltar do barco alegando que a transmissão havia sido interrompida. Mas não o fez, e por duas vezes precisou tirar as luvas para apertar botões. Liotta estava mais quieta do que nunca, e apenas repetia afirmativamente quando seu marido perguntava se ela se sentia bem. Pouco antes do final da experiência, quando os termômetros marcavam quarenta graus negativos, ela recebeu novamente a visita dos demônios que a fizeram desmoronar no banheiro da estação de televisão. Eles pareciam felizes e não sentiam qualquer frio, mas dessa vez não pareciam querer assustar, tinham um objetivo mais claro. Invadiram-na de todas as maneiras possíveis, para então dançarem em seu interior. Ela sentia-os, ouvia seus gritos, experimentava seus descuidos. Eles tentavam assumir o controle, transformando-a em nada.
Com o fim da experiência gelada parte deles foi embora, mas alguns permaneceram dentro dela, gritando, se exibindo, tropeçando nas próprias caudas, e depois gargalhando por causa das quedas. No horário marcado a van veio buscá-los. Hildebrand despediu-se rapidamente dos seguidores e anunciou a data do próximo desafio. Liotta parecia ágil e ajudou os patrocinadores a recolher o equipamento, mas assim que entraram no veículo, ela disse que ao invés de voltar para o hotel, precisava que a levassem a um hospital.
Depois de alguns exames os médicos decretaram: precisava ficar internada para tratar a pneumonia, que segundo eles, apesar de não ser um caso grave, poderia se tornar. Hildebrand desmoronou, era o causador de todo aquele mal. Deitado no sofá do quarto se penitenciava. Então percebeu que isso consumia as energias minguadas dela, que precisava negar que ele não tivesse culpa. Então passou dois dias calado. Ela parecia recobrar suas forças pouco a pouco, e foi ela quem fez com que ele recomeçasse a falar. Estava bem, e agora, como só faltava um desafio, não iria desistir.
Hildebrand, mais irritado do que nunca, mas fazendo enorme força para que sua raiva não transbordasse, disse que isso estava fora de questão. Aquele havia sido o último desafio. Tinham recebido quase trinta mil dólares em doações dos seguidores, e com mais algumas sobras que possuía, poderiam viver bem em algum país tropical até arrumarem alguma coisa para fazer. Assim como ele, ela permanecia irredutível, não iria botar tudo a perder por um probleminha qualquer. O desafio estava marcado para dali a três semanas, tempo mais do que suficiente para que se reestabelecesse.
Hildebrand também precisara de tratamento, tecidos danificados nas mãos, especialmente em dois dedos, e em um pedaço da testa. O médico disse que seu caso estava no limite da amputação, mas que levara sorte e seus dedos seriam salvos. Mas não era apenas Liotta, ou seus próprios ferimentos, o que fazia que rejeitasse completamente a possibilidade de uma próxima aventura gelada, havia também o sofrimento físico, o medo, e principalmente uma sensação que experimentara pela primeira vez no meio da madrugada. Sentiu que a neve, o frio, ao contrário do que sempre acreditara, eram substâncias sujas, malcheirosas, uma espécie de doença, que em determinada época do ano, se espalha por uma grande extensão do mundo.
Essa era uma ideia estranha, mas desde o princípio, adverti: essa seria uma história estranha. Ele passou a acreditar que, mergulhando no frio, colocava corpo e alma dentro de uma grande latrina de dejetos, que não eram apenas físicos, mas também morais, e que qualquer ganho advindo dessa experiência, pereceria como acontece com esterco de gado abandonado nos pastos. Algo como o exato contrário do quadrado ideal, que matematicamente comporta e organiza em seu bojo toda a realidade. Aqui era diferente, o que existia era um grande caos, dominado pelo acaso, e cuja tendência natural era a destruição. Precisava se distanciar daquelas forças.
Dois dias depois Liotta recebeu alta mas foi fortemente advertida pelo médico de que não realizasse outra experiência como aquela. Guardou para si a recomendação médica e disse a Hildebrand que estava nova em folha. Mesmo assim estava decidido a não prosseguir e queria comunicar imediatamente sobre a desistência. Ela implorou que ele não decidisse nada de cabeça quente e ambos concordaram que a primeira medida a tomar seria sair urgentemente daquele inferno gelado. Depois de várias conexões pousaram em Manila, nas Filipinas, de lá outro voo curto até Bocaray, um paraíso de areias brancas e águas transparentes no sul do arquipélago.
Na manhã seguinte, após descansarem dos voos, acordaram no meio de um céu que só não era mais azul que o mar, às nove da manhã a temperatura já era de 28 graus. Os demônios que ainda se escondiam dentro dos dois, derreteram imediatamente, e aquela manhã foi o momento mais feliz que viveram desde que se conheceram. Água de coco, peixes assados na brasa e muito sol, Hildebrand molhava no calor seus dois dedos feridos pelo frio, e ela mergulhava naquilo que, naqueles instantes, parecia ser o antídoto contra quaisquer males: o sol. As noites eram saborosas, com grandes luas sedentas por água salgada mergulhando no oceano, e espalhando pequenas outras luas por qualquer poça de água, cenário ideal para o encontro de corpos que promoviam, o que fez com que suas almas, apesar de não se encontrarem, nunca estivessem tão próximas.
Os quatro primeiros dias pareceram contidos dentro de duas horas, uma sucessão de prazeres e belezas que se não terminassem logo, talvez os viciasse em felicidade. Foi ela quem primeiro bloqueou a luz de um sol que interiormente brilhava no escuro das estrelas. Disse que quando terminassem o desafio, gostaria de voltar ali, quem sabe morar por algum tempo, ou então explorarem as outras milhares de ilhas do arquipélago. Ele fechou o cenho, mas antes que a discussão se iniciasse, e depois de um longo período de silêncio, concordou. Esqueceu-se dos quadrados e seus contrários, dos pressentimentos, da lógica e suas consequências, não destruiria aquela flor prazenteira que pela primeira vez em sua vida brotava, envolvia sua alma, e prometia durar para sempre.
O tempo voltou a acontecer entre sorrisos e rostos avermelhados pelo sol, entre areia e lua brancas, entre céu e mar azuis, entre ele e ela, cada vez mais próximos. Um tempo veloz, que promovia longos cochilos vespertinos, que aproveitava-se de duradouros banhos de sol, onde as pálpebras não conseguiam deter a luz, e o universo se transformava em uma substância amarela, cálida, que se todos soubessem que se encontra no fundo dos túmulos, haveria filas de homens e mulheres nas portas dos cemitérios, implorando para serem sepultados vivos.
Um tempo que também se espalhava pela comida, caranguejos, camarões, ostras, temperados com pimentas, limões, e que depois de saboreados inflavam cada célula do corpo com um prazer absoluto, que ocupava todos os espaços da consciência. Não deixando nenhum canto livre onde a percepção do tempo pudesse acontecer.
As semanas derreteram sem que ninguém percebesse. Até o telefone tocar e os patrocinadores pedirem a presença do casal em Yakutsk, dois dias antes do evento, como acontecera em Ulan Bator, algumas entrevistas, depois a noite gelada e finalmente estariam livres e com dinheiro no bolso para voltarem para as Filipinas, Brasil, ou qualquer outro lugar onde o frio nunca passaria de uma distante recordação. Na última noite em Boracay jantaram assistindo ao mergulho do sol no oceano, mas quem também parecia estar mergulhando ali era a felicidade. Os olhos silenciosos de ambos torciam para que aquilo fosse um até breve, a esperança, esse estranho tipo de felicidade que não suporta o agora, não permitiu a entrada de tristezas. O silêncio teve a leveza das cores fortes que agora acompanhavam o sol em sua jornada marinha.
O próximo dia e meio foi distribuído entre diversos países, fusos horários, aeroportos e filas. Até que finalmente avistaram da janela do avião, Yakutsk, ou, o que pareceu a ambos, manchas de concreto sem pintura cercados de branco por todos os lados. A medida em que o avião se aproximava, descobriram que a cidade, que não era pequena, cerca de duzentos mil habitantes, além dos prédios feios construídos sobre o permafrost, uma espécie de gelo que não derrete nem no verão, possuía uma grande indústria siderúrgica, cuja imensa chaminé despejava fumaça, que se confundia com a bruma natural da cidade, durante as vinte e quatro horas do dia. O piloto do avião anunciou que a temperatura na cidade era de trinta e oito graus negativos, o que surpreendeu Hildebrand positivamente. Seria uma Ulan Bator, nada mais do que aquilo.
A van percorreu alguns quilômetros antes de deixá-los no hotel, o motorista, um tipo parecido com um esquimó, com um gorro de pele de urso que de tão denso escorria para o banco de trás, respondeu a várias de suas dúvidas, os canos que formavam túneis sobre as ruas, eram as tubulações de água, que se fossem enterradas, congelariam. Toda a tubulação da cidade precisava ficar fora da terra. Os carros não podiam ser desligados, caso contrário os motores não ligariam novamente, então dezenas de carros vazios com escapamentos liberando fumaça, permaneciam estacionados à espera de seus donos. O gelo tomava tudo e os ventos tornavam a sensação térmica ainda mais difícil de suportar. Segundo o motorista a temperatura à noite poderia chegar a quarenta e oito ou cinquenta graus negativos. Dez graus mais frio do que na Mongólia. Hildebrand respirou fundo e alternou em sua mente imagens do Brasil e das Filipinas, sóis e seus reflexos.
Da janela do quarto enxergavam ao longe o avermelhado que subia dos fornos da grande indústria e que era a única tonalidade não esbranquiçada. O gelo envolvia os canos e a fiação, formando esculturas que lembravam os galhos de uma árvore. As poucas pessoas que se arriscavam no frio, saltavam de prédio em prédio para permanecerem o menor tempo possível ao ar livre. Liotta estava ansiosa para que tudo terminasse de uma vez, falava bastante e fazia planos, mas Hildebrand percebeu que ela evitava o quanto podia olhar pela janela.
As entrevistas foram mais do mesmo, as mesmas frases simplórias emagrecidas de significados, o mesmo entusiasmo fingido, mas dessa vez o entrevistador pareceu não compactuar com o roteiro, perguntando se eles não achavam que poderiam incentivar jovens a fazerem o mesmo e correrem riscos desnecessários. Hildebrand demorou a responder e então Liotta tomou a palavra:
“Não, não somos exemplos, nunca realizamos nada de grande na vida, e agora em nosso momento você vem…”
Hildebrand percebeu o destino que a conversa estava tomando e interrompeu:
“Desaconselhamos fortemente qualquer iniciativa parecida com a nossa. Está será nossa última apresentação. Fomos conduzidos até aqui por várias forças, dentre elas, talvez, a mais potente tenha sido o acaso. É preciso sabedoria para perceber que o acaso é como o vinho, deve ser consumido com moderação, e nós já utilizamos nossa cota.”
O apresentador pareceu não entender o significado da resposta e apressou o fim da entrevista. Mas antes de deixarem o estúdio e aproveitando um instante em que Liotta estava distraída tirando fotos com funcionários da estação, o apresentador chamou HIldebrand de lado:
“Não sejam loucos, ainda é tempo de desistirem, a previsão para amanhã é de cinquenta negativos, muita neve e ventos. Ninguém consegue sobreviver.”
Hildebrand não respondeu, apenas agradeceu e apertou a mão do jornalista. Mas aquelas palavras não o abandonaram, principalmente quando, já no quarto do hotel, assistia aos planos de Liotta para quando tudo estivesse terminado. Sorria, respondia, mas estava distante. Usou de suas reservas de energia para que ela não percebesse o estado de espírito em que mergulhara após a advertência do jornalista.
O telefone tocou, eram os organizadores, informaram a previsão do tempo para a noite seguinte, cinquenta e um graus negativos, neve moderada e ventos. Dessa vez a localização exata precisaria ser revelada por questão de segurança do casal, qualquer problema seriam resgatados pelos bombeiros. O funcionário sugeriu um terreno que havia ao lado da entrada do maior cemitério do Yakutsk. Hildebrand, após ouvir a palavra cemitério, emudeceu por trinta segundos, quando voltou a si foi para ouvir o funcionário dizer que em quinze minutos alguém da produção o esperaria na recepção do hotel para que eles assinassem alguns papéis.
O casal esperou por meia hora na recepção, quarenta minutos depois, um homem muito parecido com o motorista esquimó os cumprimentou e abriu uma pasta. Havia um documento que eximia completamente o patrocinador de qualquer responsabilidade legal caso algo de errado acontecesse. E esse errado, bifurcava-se em danos leves, permanentes, invalidez, e morte. Eles se entreolharam, e foi Liotta a primeira a assinar. Então o esquimó sacou mais papéis, dessa vez a apresentação veio acompanhada por um sorriso que mostrou que sua boca era uma caverna solitária onde quatro ou cinco dentes viviam confortavelmente espalhados. O sorriso era uma maneira de fazer com que acreditassem que algo bom lhes estava sendo oferecido. O patrocinador estava ofertando um seguro de vida para ambos, quinze mil euros em caso de dano incapacitante, e trinta em caso de morte, com um bônus de mais vinte mil se precisassem embalsamar corpos e transladá-los para outros países.
Eles assinaram, não tinham tempo para discussão, amanhã tudo estaria definitivamente arranjado, fosse de um jeito ou de outro. O esquimó apertou uma mão frágil e sem convicção, e depois cumprimentou Liotta com um aceno de cabeça. Eles aproveitaram que já estavam ao lado do restaurante e jantaram acompanhados por uma densa garrafa de vinho chinês. “Formalidades”, foi a palavra com que ele abriu a conversa, ela sorriu, brindou, mas também estava distante, passeava pelo Pére Lachaise, até localizar a morada final de Balzac, e a partir dali encontrar a de sua filha. O que diria a ela? O que perguntaria? Sentiu o cheiro de flores que enfeitavam algum túmulo vizinho, foi então que percebeu que, de fato, essas flores adornavam a mesa em que estava. Duas palmas brancas, com ar mortiço, e que começavam a perder o frescor. Aquele pareceu ser o sinal que aguardava para se recolher, seu marido concordou, e os dois, assim que chegaram ao quarto, fecharam a janela que mostrava um mundo que se tornava cada vez mais branco.
A noite foi tensa, e duas horas depois de tentar sem sucesso dormir, Liotta optou por um comprimido, Hildebrand seguiu pelo mesmo caminho e ambos embarcaram em um sono profundo, sem recordações, e que só foi interrompido pelo despertador. Ele abriu as cortinas e seus olhos tiveram de se fechar por causa da luz, que não vinha de nenhum céu azul, mas do reflexo da neve, que caía preguiçosamente aumentando os montes que nasceram durante a noite. O céu era de um cinzento leitoso profundo, uma massa que parecia soldada no alto, e que de lá não sairia tão cedo. Ela olhou para fora e, como percebia que Hildebrand prestava atenção em sua reação, conseguiu sorrir.
Checaram equipamentos, mensagens da produção, e então voltaram para cama, apenas contemplando a neve que caía, o silêncio foi interrompido por Liotta:
“Parece que está diminuindo.”
Ele concordou com a cabeça, mas aquela manhã pesava-lhe como uma montanha. Não queria fazer aquilo, não se importava com o dinheiro, ou com qualquer outro benefício que o desafio pudesse trazer. Mesmo assim sentia que não tinha forças suficientes para nadar contra a maré, só o que podia fazer era torcer para que a correnteza e o acaso os conduzissem a algum lugar aprazível.
Ao contrário do que acontecera nas Filipinas, as horas eram fardos pesados, que se arrastavam com a lentidão com a qual o espírito costuma evoluir. O almoço foi o único hiato entre checagens de equipamentos e observar flocos de neve se acumulando. Pouco antes de partirem, quando já estavam vestidos com seus macacões especiais, Hildebrand pegou duas toalhas de banho e colocou uma nas costas de Liotta, uma proteção extra para os pulmões, então fez o mesmo consigo.
Na hora em que a van chegou a neve havia parado. Atravessaram as três portas de vidro da entrada do hotel, e os cinco metros que os separavam do veículo foram suficientes para demonstrar que a tarefa deles seria muito difícil. O frio parecia capaz de atravessar qualquer proteção. Hildebrand comandou um aquecimento, não pararam de mexer braços pernas, fizeram flexões e abdominais. Em dez minutos estavam em frente ao cemitério, e o local onde passariam a noite havia sido limpo pela produção, apenas alguns flocos tardios manchavam o piso de concreto. Esperaram o máximo que puderam dentro do veículo aquecido, mas as roupas quentes começavam a fazer com que suassem, e esse suor, quando saíssem, iria congelar sobre seus corpos. Abandonaram o conforto e mergulharam no inferno esbranquiçado.
Nos primeiros instantes os corpos aquecidos não sentiram um impacto tão grande, mas, os minutos foram adicionando peso ao fardo que carregavam. Arrumaram o mais rápido que puderam o refúgio, instalaram as câmeras, que também estavam protegidas contra o frio, e se instalaram. O termômetro marcava quarenta e sete graus negativos. Os primeiros minutos no refúgio foram envoltos por um leve otimismo, o sofrimento era grande, mas não chegava ao insuportável, mais algumas horas e estariam livres daquilo para sempre.
Liotta transmitiu esse otimismo aos seguidores que não paravam de enviar mensagens, eram tantas que tornava-se quase impossível lê-las.
<Saiam daí enquanto é tempo, a previsão é de uma tempestade de neve a caminho.
< Adoro vocês, tomara que essa não seja a última aventura.
<Em breve se transformarão em dois grandes picolés gelados, mas a culpa é somente de vocês.
< Que Jesus os proteja, estou orando pelo casal.
Quando a aventura estava próxima de completar uma hora, a neve começou a cair, e o vento arrancou um dos cobertores térmicos que sumiu na escuridão esbranquiçada. Um pouco depois disso, o conteúdo das mensagens começou a ficar parecido:
< O que aconteceu com a Liotta, andou bebendo?
< E essa fala arrastada da mulher, parece que misturou remédios com bebida.
< Atenção, sou médico, a fala arrastada da Liotta é um claro e grave sinal de hipotermia. Encerrem imediatamente a experiência, o risco é enorme.
Então a neve apertou, e em seguida se transformou em uma tempestade, a temperatura baixou para cinquenta e três graus negativos. A câmera externa deixou de funcionar e Hildebrand começou a mergulhar em um universo desconexo, alternando falas sobre sua infância com histórias que descreviam praias e calor. Quando a câmera que filmava o interior do refúgio deixou de funcionar, a produção e também muitos dos seguidores russos acionaram o resgate.
A equipe não demorou a chegar, mas custou a localizá-los, porque o refúgio havia sido completamente encoberto pela neve. Meia hora depois foram localizados e encaminhados ao hospital. Enquanto isso as mensagens dispararam:
< Que beleza, conseguiram o que queriam.
< Nas orações pelo casal.
< Devem estar mortos a essa hora, uma morte imbecil.
< Se aqueçam no hospital e voltem para fazer o que disseram que iam fazer.
< Que mundo triste, vazio e superficial.
<Que tal os patrocinadores decorarem com sua marca o caixão dos dois, hein?
<Nos deem notícias, como eles estão?
<Armação, tudo truque, devem estar aquecidos, lendo nossos comentários e rindo.
< Coitados, acho que com um frio desses…
< Golpe publicitário sendo armado.
< Em breve o hospital deve dizer alguma coisa.
<Entrei agora, o que aconteceu com eles?
<Devem estar rindo de nossa cara.
Apesar da temperatura, algumas pessoas se deslocaram até o hospital, fazendo com que duas dezenas de carros vazios e com o motor ligado enchessem o pequeno estacionamento em frente ao prédio principal. Havia alguns seguidores curiosos e órgãos de imprensa local e de alguns países europeus. Mas ninguém conseguiu qualquer informação, o que não parecia ser um bom sinal. Duas horas depois a quantidade de carros vazios e com o motor ligado nas proximidades do hospital se aproximava de cem. Dois canais de televisão americanos gravavam matérias, filmando os corredores e entrevistando outros jornalistas.
A direção finalmente prometeu um boletim médico para as seis horas da manhã, dali a exatas duas horas. A polícia foi chamada e proibiu a entrada de mais gente, que após terem suas entradas negadas, permaneciam em seus carros aquecidos e com os motores ligados.
A produção, que possuía acesso à transmissão feita pelo casal, usou-a para entrar ao vivo, e uma repórter, em inglês, informava aos quase dois milhões de seguidores que naquele instante estavam on line, que ninguém tinha noícias, mas que todos estavam esperançosos por um final feliz. Outros repórteres faziam o mesmo e, em vários idiomas, informavam que por enquanto nada sabiam, e que seria preciso esperar até as seis horas da manhã pelo comunicado oficial do hospital. Os jornalistas, em seus celulares, se comunicavam com as sedes das televisões, informando que essas curtas entradas deveriam ser cobertas por imagens desse e de outros desafios, além de uma curta biografia do casal.
Quando um severo homem de meia idade, com traços esquimós e grandes bochechas rosadas, se aproximou de um microfone, para ler a nota do hospital, o clima era quase de festa, cafés e biscoitos eram compartilhados entre pessoas de várias nacionalidades, técnicos emprestavam cabos a outros, e um jornalista alemão, em segredo, havia aberto uma garrafa de uísque e a distribuía em pequenos copos brancos usados para beber água. Pelo tom de voz e cenho fechado do russo que iria ler o comunicado, todos imediatamente se aquietaram e esconderam temporariamente seus sorrisos.
O texto era menos formal do que aconteceria no ocidente em situação parecida, em poucas palavras, dizia que um homem, Hildebrand, e uma mulher Liotta, haviam dado entrada às 23 horas com quadros severos de hipotermia. Apesar de todos os esforços a mulher entrou em óbito pouco depois…
A leitura foi interrompida por suspiros de tristeza e por dezenas de vozes ansiosas, que buscavam a localização das câmeras e se certificavam que o barulho não interrompia o que iriam dizer. O russo precisou elevar o tom de voz para que continuasse sendo ouvido… o homem sobreviveu e se encontra em estado estável, apesar das sequelas causadas por queimaduras de frio. A notícia se espalhou pelo mundo inteiro, gerando discussões sobre o limite das redes sociais, e outros assuntos correlatos. Quando souberam da morte de Liotta as doações aumentaram muito, e quando finalmente a transmissão foi encerrada, se aproximavam de cem mil dólares.
O tempo dentro de hospitais obedece a uma lógica particular, às vezes acelera, às vezes é lento, mas é ainda mais peculiar o avanço do tempo para pacientes que foram sedados, como Hildebrand. Ele simplesmente se aproximava do zero, era quase como se não existisse, seu estado de semi-consciência fazia com que toda a realidade flutuasse dentro de uma substància branca que era composta pelas paredes do quarto, pelas máscaras dos médicos e pelas ataduras que lhe envolviam o rosto e os braços.
Foram três dias que não existiram. No quarto começou a perceber traços da velha realidade dentro da qual sempre vivera. No quinto dia o tempo estava de volta, quase do mesmo jeito com o qual, desde criança, aprendera a lidar. E foi então que lhe contaram tudo, a morte de Liotta, e depois que esvaziou suas lágrimas e achava que havia gasto sua cota de sofrimentos por pelo menos duas vidas inteiras, lhe contaram sobre suas sequelas. Perdera três dedos da mão direita, sobraram-lhe apenas o polegar e o dedo minguinho, o indicador da mão esquerda, além de um pedaço de seu lábio inferior, a metade superior de sua orelha direita, a parte inferior de sua narina direita, e trechos de tecido na testa e na nuca.
Depois de informar de maneira mecânica todos os danos causados pelo frio, o médico fez uma pausa, que mesmo no estado de ânimo em que se encontrava, pareceu a Hildebrand uma técnica de algum protocolo padrão, e informou-o que, com excessão dos dedos, todo o resto poderia ser melhorado consideravelmente com cirurgias plásticas. Quando todos deixaram o quarto e Hildebrand se viu sozinho, percebeu estar em uma encruzilhada, de um lado a autopiedade, confortável e quentinha, do outro mais frio, sentir-se um super-homem e demonstrar aos outros a força que possuía, inspirar, gerar exemplos. Ambas as escolhas lhe pareceram repugnantes, mas resolveu que não iria mais chorar. Pelo menos pelas próximas horas desviou os pensamentos de Liotta. Ao contrário dele, ela já não mais sofria.
Decidiu que pelo menos, por enquanto, adiaria as cirurgias plásticas, e assim que reunisse condições mínimas, queria deixar aquele hospital, aquele país. Não desejava, pelo menos temporariamente, usufruir de calores tropicais, isso o lembraria Liotta a cada instante. O mais lógico seria retornar à velha Europa, à Paris, mais especificamente. Levaria consigo o corpo de Liotta que decidiu enterrar próximo ao de sua filha no Pére Lachaise.
Dois dias depois os médicos retiraram-lhe as ataduras, as surpresas foram positivas, ele esperava haver se transformado em um monstro e, de fato, os danos eram menores do que imaginava, principalmente no rosto. O difícil era a situação de sua mão direita, que parecia-se agora com as garras de um caranguejo, além do dedo perdido na mão esquerda. Adaptações que talvez consumissem anos, talvez conseguisse alguma prótese parcial, o certo é que aquele seria um novo mundo, uma vida que nascia a partir daquele dia.
Uma semana após dar entrada no hospital recebia alta, e precisou enfrentar um batalhão de jornalistas digno de um grande chefe de Estado. Foi filmado e fotografado em todos os ângulos possíveis, suas mãos foram expostas e misturadas às dores que sentiu pela perda da esposa, dessa soma saiu uma figura amargurada, mas que, segundo as matérias televisivas e jornalísticas, não abandonara seus sonhos, mesmo não conseguindo, por enquanto, descrevê-los.
Hildebrand recebeu uma bolada que era um pouco superior a trezentos mil euros, dinheiro suficiente para viver confortavelmente na Europa por um longo período. Dois dias depois embarcou para Paris levando o corpo de sua esposa. A recepção na França, por parte da imprensa, foi bem mais modesta. Parecia que o assunto começava a perder a data de validade. Mesmo assim concedeu algumas entrevistas, e alternou seu tempo com os trâmites para o enterro de Liotta. Como não tinha onde ficar em Paris, optou pelo velho hotel Chopin, que mesmo que lhe trouxesse recordações que tornavam difícil a deglutição, ali havia sido a origem de uma rara felicidade da qual experimentara o gosto, sentira o cheiro, e que agora, permanecia sendo sua maior fonte de energias. Mesmo assim fez questão de não repetir o quarto, escolheu uma opção barata, com cama de solteiro e um tapete razoavelmente marcado por queimaduras de cigarro.
No cemitério, reconheceu o mesmo homem que lhe vendera por um preço dourado, o túmulo da filha da Liotta, a conversa pareceu não despertar interesse no funcionário até o instante em que ele disse que desejava enterrar sua esposa. Hildebrand percebeu o suspiro do homem, e que o instante de silêncio que se seguiu, era uma maneira de escolher melhor as palavras que serviam a seu propósito individual. Os pêsames foram aceitos com um movimento de cabeça que indicava ao funcionário que ele desejava saltar formalidades e passar a assuntos práticos. O homem entendeu, e sem pedir licença saiu da sala e foi para outro ambiente, voltou de lá alguns minutos depois carregando uma pasta. Então ele sorriu, tinha dentes estragado, uma cor que ia do amarelo escuro ao roxo, e um hálito que pedia alguma distância.
“Os ossos do século 19… é hora de irem embora… é claro, a não ser que você seja um de nossos moradores ilustres, como será o vizinho de sua esposa. Temos uma oportunidade única, um jazigo que acabou de ser esvaziado, a apenas cem metros do túmulo de Fréderic Chopin.”
Hildebrand aceitou a oferta, ainda mais cara do que o outro túmulo, e prometeu para si mesmo que aquele seria o último túmulo que compraria naquele cemitério. Na saída encontrou um menino de origem magrebina que vendia um mapa que mostrava onde estavam enterradas as pessoas famosas. Percebeu que havia tantas celebridades ali que qualquer lugar se localizava a pelo menos cem metros de um desses túmulos. Por um minuto odiou o vendedor de morte e seus dentes podres, mas então o ódio arrefeceu quando o menino que vendera o mapa correu para devolver o troco que ele havia esquecido de pegar.
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
