
Tenho apenas uma fotografia do ano em que vivi em França. Eu e a minha prima Céline, ambas de vestido azul-turquesa, na festa do nosso quinto aniversário. Nascemos na mesma sexta-feira 13 de 1980, ela em Besançon, pouco depois da meia-noite, e eu em Braga, às três da manhã. Ela filha de pai incógnito, eu de pai ausente.
No Verão de 1979, o meu pai viu a minha mãe na pista de dança de uma discoteca. Conceberam-me poucos dias depois no banco de trás de um Citroën Visa. No fim do Verão, o meu pai voltou para França e a minha mãe ficou em Portugal, a tricotar casaquinhos de bebé. Mas o francês regressou nas férias seguintes e continuou a vir, mesmo depois de eu nascer, até que decidiu levar-nos com ele.
Saí da aldeia dos meus avós, com quatro anos, para comprar um par de sapatos de verniz vermelho em Braga. Foi o que me disse a mãe, era já ali. Fomos no carro desse francês que mal conhecia e cheirava a cigarros. Ele pôs uma cassete de músicas francesas. Era como se o cantor tivesse comichão na garganta, e eu perguntei se não tínhamos outras cassetes. Estranhei não ir aos sapatos com a avó, de autocarro. Era com ela que costumava ir às compras e tinha sido com ela que vira os sapatos de verniz expostos em cima de uma caixinha branca numa das tendas da feira.
Mas desde que o meu pai surgira por altura do Natal para nos visitar, as coisas faziam-se de forma diferente. Eu já não podia entrar quando me apetecesse no quarto da minha mãe, que era também o meu até ele ter aparecido. Repreendiam-me por tudo, desde lamber a manteiga do pão a não lavar as mãos depois de ir com o avô dar de comer à cabra. No próprio dia em que o meu pai chegara, mostraram-me uma fotografia de uma bebé gorda ao seu colo na cozinha dos meus avós e perguntaram-me, “lembras-te?”, e eu disse, “lembro-me”, mas não era verdade.
Não sei quando foi que revelaram que seguíamos para a terra do meu pai. Nem sei se chorei, se fiz escândalo por causa dos sapatos de verniz vermelho. Sei que me falaram da minha prima, que iria conhecer. Pelo caminho, vi aviões e vacas e disse vezes sem conta, “olha vacas”. A única vaca que tinha visto até então, um animal castanho com o traseiro enlameado e moscas em redor dos olhos, era a do moleiro, a quem a avó comprava a farinha.
Demorou muito, mas chegámos a França por uma estrada medonha, que dava para a Suíça, e por onde passavam os camiões com as suas buzinas de fábrica e os carros dos trabalhadores fronteiriços, sempre com pressa. A estrada separava a zona comercial de uma aldeia de casas grandes, campos de narcisos amarelos e vacas malhadas e limpinhas com sinos ao pescoço. Numa dessas casas viviam os meus avôs franceses (mamie e papi), a tia Véronique e a minha prima Céline. Passei a partilhar um quarto com Céline. A mãe partilhava outro, com o meu pai.
Tive saudades de Portugal, de acordar cedo para dar de comer aos animais, do cheiro azedo do pão que levedava na masseira, e de poder andar suja até à hora de ir dormir. Tinha saudades dos avós.
O papi passava os dias no sofá a fazer palavras cruzadas. Na hora da casse-croûte, vinha para a cozinha e abria uma garrafa de vinho e a mamie apresentava-lhe o saucisson, o comté e a baguete, e por mais que eu, diante do meu leite com chocolate e as minhas bolachas, o olhasse intensamente, ele não me oferecia uma rodela de saucisson. Com o avô português assávamos tortulhos que apanhávamos no monte e eu provava primeiro, um pedacinho de cada um. O avô gostava que eu fosse a cobaia, para o caso dos cogumelos serem venenosos. A sua navalha tornava todas as pequenas aparas de comida mais apetitosas. Fossem elas lascas de bacalhau salgado, ou pedaços de maçã.
A mamie usava vestidos floridos e todas as manhãs punha bigoudis no cabelo loiro platinado. Tinha a pele macia e sem rugas. Era mais bonita e mais paciente que a minha avó portuguesa, essa perseguia-me de chinelo em riste, mas deixava-me à solta e cantava-me canções malcriadas.
Em Portugal passava os dias com os avós, a mãe saía cedo para a fábrica e só voltava ao fim da tarde, mas em França ela nem falava a língua, nem tinha emprego. O meu pai e a tia Véronique todos os dias de madrugada atravessavam a fronteira para trabalhar na Suíça, e eu e a mãe ficávamos em casa com a Céline, o papi e a mamie.
Uma vez por semana, nós, as crianças, acompanhávamos a mãe e a mamie ao supermercado. Íamos a pé. Atravessávamos a aldeia e depois a estrada principal, onde os carros passavam a tremer. Chegávamos à zona dos supermercados, enormes armazéns, com tudo o que se pudesse desejar, estupidamente maiores que a mercearia da nossa aldeia em Portugal.
Comecei a ter um sonho recorrente – no supermercado todas as coisas eram gratuitas. Sôfregas, eu e a minha prima enchíamos o carrinho. Eu procurava doces, lápis, livros e brinquedos, mas a Céline escolhia coisas ridículas, arroz e bolachas de água e sal. Irritava-me e dizia-lhe que parasse, que se sentasse quieta num canto, e me deixasse focar-me na tarefa de encher o carrinho de coisas boas. Quando me fartava e voltava a olhar para ela, a minha prima tinha-se evaporado. A minha mãe e a mamie também. Acometia-me de pânico, palmilhava os corredores enormes, todos iguais, saía do supermercado e via-as do outro lado da estrada, os carros e os camiões passavam uns atrás dos outros, e elas afastavam-se sem que eu conseguisse alcançá-las. Acordava ansiosa, chamava pela minha mãe, mas ela não vinha porque o meu pai não deixava, e então abraçava-me à minha prima. Os supermercados cansavam-me. Se no início tinham sido uma novidade emocionante, logo se tornaram um pesadelo.
Aprendi a falar francês em poucos meses, a tia Véronique fazia-me dizer “cuillère” e impressionava-se com a minha pronúncia exímia. A Céline não sabia dizer “colher”. E se a minha mãe insistisse, ela chorava e aninhava-se no colo da mamie, que dizia “oh, la pauvre” e dava-lhe bolachas recheadas de chocolate. Céline era em tudo igual a mim, menos no feitio. Na verdade, era mais redonda e mais bonita do que eu, com o cabelo clarinho quase loiro. Mas os adultos insistiam que éramos como gémeas.
Quando fizemos anos, a minha tia cortou-me o cabelo à francesa, pelas orelhas e com franja, para que ficássemos ainda mais idênticas. Recebemos lápis e livros de colorir. Eu preferia os livros da mamie, não a bíblia, que ela lia todos os dias depois de arrumar a cozinha e levava consigo para as reuniões dos jeovás, mas os outros livrinhos empilhados na bancada ao pé do rádio, com desenhos de leões e cobras e pessoas no jardim do Éden a fazer piqueniques. “Réveillez-vous”, chamavam-se. Duas ou três vezes, ela deixou-me folheá-los sob a supervisão da minha mãe, e contou-me histórias de dilúvios, gafanhotos e mares que se abriam em dois. Falou-me de um Deus bom, a quem devíamos temer, “craindre”, era a palavra que usava, mas eu não temia Deus, não temia ninguém, talvez o meu pai, um bocadinho, temia que ele me roubasse a mãe e me deixasse sozinha num corredor de supermercado.
Um dia roubei um dos livros da mamie e tranquei-nos, a mim e à minha prima, no nosso quarto para que pudéssemos pintar neles sem sermos apanhadas. Depois de vários rabiscos, lavei-os no bidé para encobrir o nosso pecado. As folhas empaparam e acumularam-se no ralo e eu já não conseguia fechar a torneira, a água alastrou-se ensopando a alcatifa até aos quartos. Causei uma grande comoção.
“Por que não te portas como a tua prima?” – perguntava a minha mãe, e o meu pai também, mas em francês. E eu pintava as nossas caras de batom, desenhava no papel de parede, cantava as canções malcriadas da minha avó. “Pauvre Céline”, dizia a mamie quando ela entrava na cozinha a choramingar, porque eu lhe puxara o cabelo, ou insistira que me seguisse nas minhas aventuras. Apesar de tudo, apesar das saudades que tinha dos meus avós portugueses, e dos ciúmes do homem que detinha agora quase toda a atenção da minha mãe, acho que gostava da França, gostava de viver com alguém da minha idade, de passar os dias com a minha gémea mansa.
Com o outono veio a desgraça.
Começaríamos a escola nesse ano, e lá fomos comprar material escolar ao Intermarché. À vinda, Céline quis segurar a mão da minha mãe. E eu devia dar a mão à mamie. Como não era coisa que eu fosse permitir, foi a mamie com as compras e cada uma de nós deu a mão à minha mãe. Céline ficou do lado da estrada.
Poderia tentar descrever o que se passou a seguir de forma vívida, criar algum suspense, ilustrar a aflição das mulheres e o meu desespero infantil. Como? Não saberia fazê-lo. Não me lembro de nada disso, não houve gritos, nem choros. Houve um chiar de pneus, um estrondo, a minha prima projetada no ar como uma almofada e depois estirada no asfalto. Ficou noite e eu sentei-me na berma com a minha mãe, à espera. Estava cansada e tinha frio. A minha prima, inconsciente, acabou por partir na ambulância com a mamie, e nós voltámos para casa.
Foram semanas, ou meses, de coma. A escola começou sem ela e ninguém apreciava a forma exímia como eu pronunciava “cuillère”. Todo esse tempo, se a tia Véronique estivesse em casa, a mãe e eu escondiamo-nos no quarto, e a mamie trazia-nos comida num tabuleiro. A tia Véronique não suportava ver-me. Por vezes ouvia-se um choro surdo. Os adultos falavam em cochichos.
Até que o telefone tocou. Ouvimos um urro de bicho.
Estenderam Céline numa caixa, na sala da mamie. O meu pai pegou em mim ao colo para que a visse pela última vez. Estava bonita, tinha os lábios cor-de-rosa. Os meus pais e eu mudámo-nos para outra aldeia, não muito longe da casa da mamie.
Acabei por regressar para Portugal, com a mãe, antes do meu sexto aniversário. O meu pai visitou-nos no Verão seguinte e eu ainda me lembrava dele e da sua língua. Depois casou-se em França com outra mulher, teve dois filhos e nunca mais voltou.
Não vivi a infância assombrada pela minha prima Céline, só fomos amigas por um ano. E embora estas memórias me pareçam exatas, não posso garantir que o sejam. O que sabia eu da morte, aos cinco anos? E o sonho? Tive-o antes da morte da Céline ou depois? E os lábios cor-de-rosa? As cartas que troquei com a mamie, os “Réveillez-vous” que ela me enviou ao longo dos anos, e o pouco que fui ouvindo da minha mãe ajudaram a manter estas memórias, talvez até as tenham moldado e recriado. A imagem que guardo da tia Véronique, por exemplo, mais baixa e mais loira que a minha mãe, com olhos sorridentes e espertos, será verdadeira? Ou é uma imagem que a aproxima à Céline da fotografia?
Mas sempre que me deparo com essa fotografia, eu e Céline no nosso quinto aniversário, que por alguma razão acabou no meu álbum de criança, pergunto-me por que nunca tive uns sapatos de verniz vermelho.

Sandra Castiço é escritora e coordenadora de VFX. Nasceu em Braga em 1983. Pirilampos, publicado pela editora Urutau em 2025, é o seu primeiro livro de contos.