
Ilustração: René Magritte (1898-1967)
Na caverna de Platão
Distante dali, preso em uma caverna, que não se pode localizar em nenhum mapa, uma espécie de troglodita, pestilento e grotesco, expressando-se numa linguagem confusa, se dirigia a seus pares exaltados. Não se sabe ao certo se era por deficiência cognitiva, ou pura ignorância, mas ele insistia na objetificação das coisas, dando-lhes números ao invés de nomes, como se fazia no tempo em que o mundo era recente.
Luxúria
Numa mesa, dois amigos petiscam e bebem enquanto aguardam o repasto principal. Trocam olhares curiosos e cochicham quando um casal, ao se dirigir à saída, passa por eles. Seguro de si, um deles vira o pescoço, no que é acompanhado pelo outro. Maravilham-se com o que veem. Dava até pra ver a baba do diabo escorrendo pelo canto da boca de um deles. Segundos depois, alertados pelo garçom, que lhes servia mais uma rodada, recompõem-se e retornam à posição anterior. Que tal? Indaga o que viu primeiro. O segundo, só balança a cabeça, à maneira dos lagartos.
Gula
Ignorou as saladas. Direto às carnes exóticas. Javali, avestruz, rãs, rabada de jacaré, faisão. Quase se engasga com o porco-espinho. Engoliu sem mastigar. Em seguida, canelone, ravióli, pene, talharim. Com o nhoque de batata ainda no esôfago, pudim de leite, pavês, mil docinhos. Por último, a torta de maçã, o cafezinho na saída. Não deu. Uma voz dizia que não herdaria o reino dos céus. Acordou da gastroplastia. Ao se dar conta, chorou. Com a dieta inibidora, olho maior que a barriga nunca mais.
Aracnídeo
Na noite em que Jane Mary, por quem morria de paixão, ao invés de dar-lhe um beijo, disse que primeiro ele tinha que tratar das espinhas, Pedro, um adolescente viciado em história em quadrinhos, sonhou que se transformara no Homem-Aranha e, debaixo de um luar de prata, com a amada nos braços, passeava sobre os arranha-céus de uma grande metrópole. Quando acordou, ao se olhar no espelho, viu à sua frente uma aranha gigante e peçonhenta. Assustou-se tanto que subiu nas paredes e ficou andando entre elas de um lado para o outro. Desorientado, até hoje tenta localizar a porta de saída.
Ninfas
Dormia quando me surgiram três ninfas. A primeira saiu direto do travesseiro e espalhou plumas para tudo quanto é lado. Aparentava ter pouco mais de dezoito anos, mas como não havia um pelo sequer sobre o seu sexo, ainda que isso aumentasse meu desejo, me contive. A outra, que entrou pelo buraco da fechadura da porta, tinha pernas roliças, o corpo formoso e as carnes firmes, constatei com um breve olhar. Como diziam os gregos, nada lhe faltava. Tanto em espírito como em aspecto. Com ela, não tive dúvida. Possuímo-nos um ao outro, eu com o meu aço afiado. Somente depois que a penetrei é que percebi que se tratava de uma aborígene da ilha de Nova Guiné. A terceira, que entrou por debaixo da porta, já chegou morta e só tive o trabalho de colocá-la dentro do armário. Voltei pra cama e passei a orar. Rezei tantas ave-marias que perdia conta. Com a consciência tranquila e a convicção de que encomendara bem aquela alma, me preparei para dormir novamente. Não consegui. Algo me dizia para retornar ao armário. Foi o que fiz. Surpreendentemente, quando abri a porta, a terceira ninfa ressonava. Toquei-a com a ponta dos dedos para sentir a temperatura do corpo. Estava quente. Nem bem eu afastei a mão, ela acordou, se ergueu e pulou sobre mim. Caímos os dois sobre a cama. Não perdi tempo. Subjuguei-a com a ponta de minha espada acerada dos dois lados. E quando eu já me encaminhava para o clímax, o despertador tocou.

J(oão) L(uiz) Rocha do Nascimento (Oeiras-Pi, 16.05.59). Escritor (poeta e contista), professor de ensino superior e magistrado. Mestre e doutor em Direito Público. Colaborações em diversas coletâneas. Cinco livros de contos publicados: Um clarão dentro da noite (Scortecci, 2019); Os pés descalços de Ava Gardner (Scortecci, 2020); Morangos silvestres e outros contos eróticos (Penalux, 2022); Na caverna de Platão e outros contos breves (Penalux, 2023); Nunca seremos felizes (Patuá, 2024). Um de poesia: Ontologia do ser (Litteralux. 2024). Um de ensaio: Como e por que me fiz escritor (Lamparina, 2024). No prelo: O livro de João em 101 versículos (Kotter Editorial, 2025) e Fruta temporã (Litteralux, 2025). Os contos publicados foram retirados do livro Na caverna de Platão e outros contos breves.