O rato rói a roda, ensaio de Cassionei Petry




A memória nos prega peças. Quando lemos um livro, por exemplo, achamos que algo aconteceu de tal forma numa determinada cena e, anos depois, numa releitura, está diferente do que lembramos. Aconteceu comigo em relação ao romance Os ratos, de Dyonélio Machado (1895-1985), publicado em 1935, que mereceu recentemente uma reedição pela editora Todavia (a edição que tenho em mãos é antiga, de 1974, da extinta editora Bels, quase se desmanchando!). Pensava que o leiteiro havia deixado um bilhete embaixo da panela de leite avisando ao protagonista, Naziazeno Barbosa, que cortaria o fornecimento se a conta não fosse paga. Na verdade, o que lemos nas primeiras linhas é uma discussão entre os dois, testemunhada pela vizinhança: “Por trás das cercas, mudos, com a mulher e um que outro filho espantado já de pé àquela hora, ouvem”.
 
Na minha memória ruim, Naziazeno estava desempregado. Outro engano. Para minha defesa, devo ter lido o romance na minha adolescência, provavelmente no Ensino Médio, na biblioteca escolar. Por que nunca o reli? Não sei. Nunca é tarde, no entanto. Temos aqui um funcionário público de baixo escalão, portanto com o salário bem baixo. Com o aviso do leiteiro ecoando na sua mente, “Lhe dou mais um dia”, nosso herói precisa conseguir o dinheiro necessário, mais precisamente 53 mil-réis. Pedir emprestado para seu chefe na repartição pública talvez? “Já uma vez emprestou-lhe vinte, com toda a boa-vontade, logo após sua nomeação para o cargo”. 
 
Pois as horas vão passando, 8, 9, 10 da manhã, na Porto Alegre dos anos 30, cujas ruas Naziazeno percorre num indo e vindo entre a repartição e o centro da cidade. O que ele menos faz, diga-se, é trabalhar. Ele não consegue, apenas planeja, falar com o diretor. Pensa também na possibilidade de apostar: “Naziazeno, quanta ‘esperança’ já depositara no betting”. Consegue um pequeno valor com um amigo. Acaba, entretanto, perdendo na roleta (o que nos faz pensar em O jogador, de Dostoiévski), assim como não consegue acertar os números do jogo do bicho.
 
Davi Arrigucci Júnior, em texto reproduzido na edição da Todavia, e publicado na coletânea de ensaios O guardador de segredos (Companhia das Letras), amplia a metáfora dos ratos para toda a narrativa, e não apenas no desfecho: “metáfora animalesca, que dá concretude ao drama moral, ao mesmo tempo que se alastra numa verdadeira cadeia metonímica — os indícios de rato que se multiplicam por toda parte, nos olhares esquivos, nas ações entrecortadas, nos gestos miúdos, nos aspectos do corpo, na cor das vestimentas —, até se configurar como um símbolo complexo e aterrador da verdadeira condição do homem acuado”. 
 
Mas justamente a parte mais lembrada do romance é a cena final em que os ratos são citados, aparecem na mente do protagonista, que está naquele momento de vigília, depois de ficar horas sem dormir direito, uma interminável noite (“Quantas horas já está aí, nessa cama, enquanto os outros dormem… dormem…? Talvez umas cinco. Cinco horas?!..”), o sono não vem por causa dos pensamentos intrusivos, não sabe, na verdade, se está sonhando ou acordado. Naziazeno imagina os ratos roendo o dinheiro (que ele finalmente havia conseguido através de agiotas), as notas que haviam sido deixadas junto ao recipiente de leite, na cozinha, à qual o leiteiro tem acesso. Ouve ruídos (“Naziazeno distingue mais uns ruidozinhos, um como que crepitar de mandibulazinhas de insetos…”), imagina, chega a visualizar os ratos devorando o pagamento do credor (“Os ratos vão roer — já roeram! — todo o dinheiro!… Ele vê os ratos em cima da mesa, tirando de cada lado do dinheiro — da presa! —  roendo-o, arrastando-o para longe dali, para a toca, às migalhas!…”). Até que o barulho do leite sendo derramado o alivia, pode dormir um pouco, pelo menos por enquanto, pois outro dia chega, outras dívidas ainda terão que ser pagas…
 
É a roda da vida e Os ratos traz justamente essa circularidade, o eterno retorno nietzschiano, o simbolismo do ouroboros, o cachorro querendo morder o próprio rabo, a pedra de Sísifo que rola do pé ao cume e desce de novo, eternamente. Solucionamos os problemas cotidianos, mas eles retornam. Trabalhamos por um parco salário no fim do mês, que logo acaba, porém tem o próximo, que termina, depois e mais outros e mais outro…



Cassionei Niches Petry é professor, escritor e crítico literário. Seu último livro publicado é o romance “Desvarios entre quatro paredes”, Editora Bestiário. Mantém o blog “Uma biblioteca na cabeça”: cassionei.blogspot.com

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