5 poemas de Lucas dos Passos



Joana

 

mesmo que eu quisesse (e, acreditem,

um dia eu quis), não poderia

ser só joão ou contentar-me

com a impura ana.

 

ana traficava entorpecentes

no peito e mantinha a britânica

cabeça lúcida. joão,

franzino, media a espessura

das vidas pela sua ausência.

 

artista de um poema sem vírgulas,

ela fingia um verso frouxo,

e ele via o horizonte pelo

seu avesso, seu oco: insosso.

 

certo dia, os dois se meteram

numa fresta de minha estante e

geraram, sem que eu percebesse,

errante, simétrica, joana.

 

(In: Menos teu nome, 2016)

 

 

Malone morre

 

Tudo algum dia vai estar bem morto.

E depois? Depois nada. O que veio antes –

se foi quarto de hospício ou de hospital,

centro espírita, igreja – não importa:

 

o tempo sempre esmaga tudo (dizem

os tolos que no fim ele até cura)

quando passa, imponente, pelas ruas

da memória, ou por concreta avenida;

 

o passado só volta demolido

como um monte de cacos empilhados

com um contorno algo inverossímil;

 

e a história recalcitra recalcada.

Vida e livro só deixam a falida

crônica de uma morte anunciada.

 

(In: Menos teu nome, 2016)

 

 

Enxaqueca

 

Você deve entender, meu amor, que a

enxaqueca é uma dor constante que age

 

como que corroendo os ossos da alma;

não se distrai nem se alivia: ama,

 

como a dor em silêncio, o leito escuro,

mas em focos de luz se refestela,

na cabeça pesada, como agulhas

 

que se fazem lâminas de tortura

física e metafórica, pois se elas

passeiam sobre os olhos, resolutas,

 

roubam não só o espírito de um dia

útil, que então se perde em letargia,

 

como deixam na mente a massa turva

que, de tudo, subtrai nossa leitura.

 

(In: Mais nada, 2021)

 

 

a morte à meia luz

 

a morte à meia luz

sentida contradiz

(reclusa até o fim

do assunto no capuz);

 

me nega tudo e, assim,

não assume que ficou,

na noite que passou,

de bruços no capim;

 

deitou foice e nariz

na grama fria e nem

virou e nem gemeu –

 

a morte enfim se deu.

mas não sei bem a quem,

súbito então me diz.

 

(In: Mais nada, 2021)

 

 

carnaval

 

o dia pedia – e eu não recusei

desci de novo às ruas, dessa vez

de escada ou elevador, não lembro.

moto-contínuo empesteei a calçada

com meu melhor perfume francês.

irônica, caruda, liberada

abanava conselhos, cortava olhares

com a coragem soberba dos bêbados

ou estupidez de adolescente

deixei que me levasse o toque do pandeiro

e decididamente dei bandeira

travestida, linda, de pierrot

histérica e erótica pierrette

debaixo do sol que a noite anoitece.

 

(In: Mais nada, 2021)

 

Ilustrações: Luis Dourdil

 

 

Lucas dos Passos, natural de Vila Velha e radicado em Vitória (ES), publicou os livros de poemas Menos teu nome (Cousa, 2016) e Mais nada (Patuá, 2021). Dedicado ao estudo dos ritmos da poesia brasileira contemporânea, desenvolve pesquisas sobre o tema no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), onde atua, como professor de Língua Latina e Literatura, desde 2012.

Contato: lucasdospassos@hotmail.com

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