3 poemas de “A forma fugaz das mãos” de Fábio Pessanha

Ilustração: René Margritte

são muitas as variações para se dizer

a mesma coisa.

a casa, o pasto, a glória, o físico

compasso em que dois corpos deram adeus

ao mesmo espaço. isso nunca me aconteceu

antes, a voz

diz toda plácida seus próprios

estômagos, mesmo sem saber dos

nudes enviados em segredo para o

sagrado enredo

das profanações. muito já

se disse e sempre se repetem os fatos,

ainda que não caiba mais ninguém na ironia

dos passos. não

mais adianta correr, é sempre

a morte na praia do nado. mas

fazer o quê? viver é essa microfonia

que cega das

frases a voz, e a gente sempre

se repete para as ânsias do mundo.

 

**

 

invento a pergunta mais impossível

a fim de me apoderar dos verões

nos corpos suados. como um leão

que se apega às presas e ama com

sangue nos dentes, percebo a violência

no escuro das ruas. entre as calçadas

exerço a ilusão de querer de volta

os restos de pele dispersos nas

camas onde deitei. ergue-se um

muro feito desde os nossos passados

membros, cabeça, o dorso imerso no

cultivo de mãos que seguram em vão

o percurso de um salto dado às cegas

os pés desenham o descompasso. cria-se

a pergunta fundamental, inscrita

no desfecho da voz que esquece seu

itinerário. os caminhos se cruzam

naquele que se permite chegar

ao próprio silêncio e nele ficar.

invento uma pergunta que me faça

querer a plena incoerência entre

bocas narizes pernas aprendizes.

 

 

quero ouvir o escuro dos

seus olhos e dizer tudo

aquilo que me escapou

deitar na malha puída

do seu ventre e beber todos

os vícios. quero poder

deixar as mãos onde meu

corpo falha e devorar

o brusco peso das chuvas

reconciliar as horas

com os sonhos não vividos

quem sabe agarrar as pedras

lançadas contra o meu crânio

quando apedrejado numa

tarde de inverno. desejo

acordar no dia mais

longo do verão a fim

de correr amontoado

de cadarços, inventar

tempestades em seus dentes

e bem mais tarde saltar

por sobre o sorriso da

boca vermelha como o

pôr do sol de alguma praia

 

 

Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em livros e periódicos sobre sua pesquisa a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. Ministrou presencialmente cursos, rodas de leituras poéticas e oficinas de poesia em diversos lugares, tais como: Faculdade de Letras da UFRJ, Biblioteca Parque de Niterói, COART / UERJ, Atelier Casa 4 de Arte e Filosofia. Durante a pandemia tem ministrado oficinas online de poesia. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna “palavra: alucinógeno” (https://viciovelho.com/palavra-alucinogeno), na revista Vício Velho, com publicações sobre o poema e suas performances dialogantes. Tem poemas publicados em diversas revistas eletrônicas.  

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