Coluna Guido Viaro: O inventário dos espelhos

Ilustração: Pierre Allx


“São pedaços de morte e vida entrelaçados como no tricô.” O velho disse isso olhando-se no espelho e depois foi deitar no sofá da sala. Não demorou muito para que a imagem de seu ronco refletisse, a boca abria-se procurando ar, o silêncio era interrompido por um grito animalesco. Depois de alguns minutos ele era acordado pelo próprio barulho que fazia. Punha o chapéu e ia tratar dos assuntos da fazenda. As crianças aproveitavam a sala para fazerem as lições de casa, o espelho as distraía, caretas, aparições bruscas para assustar os outros, elegiam com as imagens refletidas qual era a mais bela das meninas.   
                                            
A mulher deprimida usava o espelho em silêncio, quando todos dormiam, apagava as luzes e tentava encontrar seu rosto dentro das sombras.      
                                                                                                                            
As manhãs refletidas tinham o brilho dos castelos de Corot, os olhos vindos da noite guardavam uma inocência que não distinguia os homens de suas imagens. A crosta dourada dos pães era repartida entre mãos feitas de carne e ossos e outras de luz.    
                                                                     
Mas havia fraturas expostas. A pele familiar fora rasgada pela morte da mãe e depressão da filha. O filho não herdara a energia do pai, ajudava na fazenda e culpava-se pela distância que mantinha de seus três filhos, que quando vinham visitá-lo, divertiam-se com as primas de idades parecidas. O patriarca, secretamente, culpava-se por não haver sido rígido o suficiente, ou talvez, tê-lo sido em demasia. As duas árvores que plantara cresciam sem vigor, galhos frágeis que não pareciam suficientes para sustentar os frutos que geraram. Aos olhos do avô as crianças careciam de limites, eram argila bruta, que pela inépcia dos pais, começava a solidificar sem construir formas nem belas nem úteis.   
         
Após o jantar, o velho gostava de jogar paciência, a filha retirava a toalha e o pai espalhava as cartas na grande prancha de madeira escura. Enquanto formava as sequências que começavam no Ás e terminavam no Rei, ele deixava pensamentos flutuarem, e descobria equivalências entre materiais muito distintos. Encontrava amores odiosos e vários pares de opostos, mas conseguia perceber semelhanças entre as recordações de seus desejos sexuais e o gosto pelo jogo de baralho, também descobriu parentesco entre a tábua da mesa onde espalhava as cartas e o caixão de sua mãe. Assim como, a presença ou ausência de uma determinada carta, indicava as possibilidades da próxima, percebeu que cada pessoa, objeto ou sentimento, arrastava consigo uma corrente que o atava a outro, e que por mais diferente que fosse, complementava sua imagem. Promoveu um encontro entre um sapo verde e uma grande taça de sorvete de morango, permitiu que um vento sorridente secasse todas as lágrimas antes que pudessem escorrer, atravessou uma viela imaginativa com tráfico intenso de caminhões de olhos azuis carregados com gorilas feitos de bambu. Durante sessenta anos escondeu-se embaixo dos cobertores de um casal, de nariz e olhos atentos percebia como músculos e curvas eram gradualmente substituídos por ossos pontudos e cheiros azedos. Descobriu o minguar dos desejos e o respectivo e proporcional aumento da quantidade de veias amarelas ao redor da íris. Dentro das pupilas encontrou almas que envelhecem, e depois, reconheceu-se: consciência deteriorada que evita pisar as fendas que aos outros aconselha como caminho seguro.     
                                                                                                                    
A filha, mulher que perdeu seus açúcares, olha para as cartas esparramadas sobre a mesa e para as cadeiras vazias, o silêncio refletia as tonalidades cinza e cobre, dois passos ocos sobre madeiras crivadas de memória antes de recolher o baralho, mesmo com as janelas fechadas a impressão era de que as cartas seriam a qualquer momento varridas pelo vento. Ao cruzar com o espelho, por um instante tem a impressão de enxergar o pai, é com o coração ainda gelado que reconhece a própria figura. A sólida cadeira estofada serve de alívio para o corpo, a imagem refletida é intempérie, desvia olhares, encontra bibelôs pendurados, papel de parede descascado, garrafas de cristal cheias de líquidos coloridos, um relógio que desde sua infância marca o mesmo horário. Junta as cartas, oito de copas, três de paus, poderia existir uma lógica que explicasse as leis do baralho e desse sentido a cada carta e a posição que ocupava em todas as partidas. No alto da parede encontra o retrato desbotado de seu pai quando criança, o sorriso de grande pureza começava a ser corroído pelas imperfeições do papel, ao lado, uma fotografia ainda colorida do casamento de sua filha mais velha. Um suspiro, os dedos tocam as teclas de um piano que não existe. O som seco de madeira batendo em madeira alerta para uma janela aberta, antes de fechá-la percebe como o mato invadiu os canteiros de flores e as cercas caiadas estavam com cor de barro. “As propriedades também envelhecem”, assoprou essas palavras contra o muro do silêncio, mas elas não sobreviveram. A cadeira de balanço trouxe-lhe o movimento de que precisava, dali assistiu à brisa balançando o retrato de seu irmão suicida. Havia se esquecido de como ele se parecia com o pai. Os gritos de culpa brilharam dentro de uma escuridão incômoda, “inútil”, “fracassado”, depois relaxaram seus músculos das mãos. As cartas esparramaram-se pelo chão.  
                                  
O acaso encarregou-se de formular uma sequência de números e naipes. Seria esse o códice secreto que mantém unidos os pedaços do mundo, ou que revela a maneira secreta como se emendam as ilusões? Abandonou seu pai e irmão espalhados em naipes.   
                                     
O grande espelho estático oferecia-lhe todas as temeridades, inclusive as prazenteiras, era o lago profundo chamando a criança que não sabe nadar. As bolsas sob os olhos e os cabelos cada dia mais acinzentados pediam pelo risco, nunca experimentado, aquele era o momento mágico descrito nos contos de fada e depois, ao longo da vida, sempre contado de maneira entusiasta pelas amigas, que lhe garantiam que “aquilo era viver”, coisa que ela sempre fora deixando para trás, e guardando alguns arrependimentos. Agora chegara sua vez, pelo menos por uma vez na vida experimentaria a fricção entre o mundo e sua própria vida. Ela percebeu a importância do momento, fechou os olhos e só os abriu quando eles transbordavam de lágrimas.
                                                     
Renunciaria ao prêmio que a vida lhe oferecia. Escolheu a certeza da rotina e das longas noites de sono. Foi deitar-se em seu quarto, que a qualquer hora do dia permanecia escuro.       
                                                              
A sala vazia era vítima e testemunha, o sol condenava o ambiente a suas cores, e todas as tardes fazia com que uma bandeja de prata desafiasse o espelho a um jogo de reflexos tão perecível quanto a felicidade. Depois, o silêncio mastigava qualquer movimento. Antes da chegada da noite, o contorno dos móveis ou os desenhos do tapete perdiam certezas e poderiam tanto existir quanto estarem sendo sonhados.
                                                                                                                                           
O espelho espera, com a paciência de um oceano, plácido como olhos sem vida, pela volta do movimento, que uma das gerações adormecidas pelo sono, pela morte ou pelo não nascimento, possa despertar, para depois refletir.



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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