![]() |
Ilustração: Gertrude Abercrombie |
Já era dia, mas ela nada ouvia à sua volta. Não era hora de levantar. Sabia que não devia mais levantar. Tudo muda sempre, ela também deveria mudar. Ponto final. “Tudo passa, tudo sempre passará/ A vida vem em ondas como o mar/ Num indo e vindo infinito…” Os versos cantados há décadas cabiam bem nesse momento.
Também cabia a frase que o filósofo Heráclito concluiu há mais de vinte séculos sobre o homem não se banhar duas vezes no mesmo rio; “porque não é o mesmo homem, e não é o mesmo rio”. O poeta Camões há mais de quatro séculos escreveu: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades… Todo o mundo é composto de mudança”.
Quem era ela para não aceitar a mudança? “Tudo muda, exceto a própria mudança”, também dizia Heráclito. Não iria mais levantar. Os dias passam, juntam-se as semanas, as estações e os anos em um fluxo constante e independente da nossa vontade. O mundo está sempre mudando e, com ele, as nossas necessidades. E ela não precisava mais levantar.
Se tudo muda sempre, não adiantava resistir a mais essa mudança. Sabia que não deveria viver mais. Por mais que ansiasse encarar mais um novo dia com suas promessas, pressentia que, a partir daquele momento, não levantaria mais. E o motivo não dependia dela. Só precisava aceitar. Estoicamente aceitar.
Não estava desistindo da vida, era apenas resignação pelo seu destino. Toda a sua vida esperou pelo momento de morrer. Não precisava temer o desconhecido. Os filósofos sempre disseram que viver era um exercício de aprender a morrer. Tudo o que existe nesse planeta morre. Morre naturalmente, sem aprender a fazê-lo, e até sem aceitar a morte.
Mas ela não. Ela aceitaria. Precisava aceitar. Precisava esquecer os momentos vividos e seguir os passos de todos os que se foram. Era preciso realizar o seu destino. Era preciso inexplicavelmente morrer para renascer. Desligou-se desses pensamentos e procurou se concentrar.
Olhou em volta pela última vez e se despediu da paisagem amarelada de outono, sua estação preferida. Fechou os olhos lentamente e desejou que o tempo parasse por alguns instantes para que sentisse um pouco mais a irradiação do sol morno que entrava pelas frestas. Esperava ser envolvida totalmente pela claridade fértil que a acompanhou durante toda a vida.
A luz que tomava seu corpo começou suave e delicada. Relaxou totalmente no acalanto daqueles raios. Sentia-se ungida para o que estava por vir. Por algum tempo, buscou no silêncio as notas do seu canto. Sua própria vida seria a composição perfeita: letras, palavras, imagens, tudo agora parecia ter sentido. Das suas memórias foi nascendo a melodia que a embalaria nos últimos instantes.
Sentia um calor lhe rasgando por dentro, sabia então que não eram apenas os raios do sol. Desejou gritar, mas restava apenas um sopro de vida. Com a respiração ofegante, começou a entoar um canto sofrido de despedida que, aos poucos, foi se transformando em cântico de louvor à vida. Não queria decifrar a mortalidade, cantava o mistério de viver, as alegrias, os sonhos, os versos, paisagens, cores, amores… Mais que tudo, celebrava a esperança do renascimento.
Não tinha mais vontade de abrir os olhos, esqueceu a dor nos ossos e se concentrou mais ainda no seu canto. Já se habituava às labaredas que lhe lambiam o corpo. Nunca se sentira tão viva. Do seu ninho em chamas, chorava de alegria. Tinha certeza de que, após a última centelha, renasceria das próprias cinzas. Tudo muda e seu corpo não mais existia. A Fênix chegara finalmente ao fim do seu ciclo.
E seu canto foi:
“Sou única no milagre de ser.
Símbolo da regeneração,
rememoro a vida e reinvento-me no calor do fogo,
em meio à morte aparente.
Coabitam em mim as cinzas de dias passados
e o fogo presente,
que me alimentam para uma nova vida.
Sinto-me recriada no calor da luta diária.
Criatura breve, transmutada no infinito nascer-morrer.
A cada dia, novas dores e a certeza de que nada sei.
Tudo reaparece e eu tenho que viver a plenitude do hoje,
sem hesitação.
Da cinza cotidiana,
surgem essas palavras que chegam silenciosas
e lavradas em brasa.
Entre mim e o mundo,
o renascer mágico e oculto que me faz
ser nova e inteira todos os dias
em que agonizo na dor e renasço no amor.
Tal como o mito, levanto-me discreta e lúcida.
Eis aqui minhas letras eternas.
Abro minhas asas para o infinito
e voo mais uma vez.”
Solange Firmino é graduada em Português/Literatura. Tenho 5 livros de poesia publicados: Fragmentos da insônia, Editora Benfazeja (2016); Alguns haicais e mínimos poemas, Prêmio literário Fundação Cultural do Estado do Pará (2016); Das estações, Gramma Livraria e Editora (2017); Geometria do abismo, Gramma Livraria e Editora (2017); Diante das marés, Caravana Grupo Editorial; (2021).
Respostas de 4
Muito lindo! Citações precisas ao traço delas (narrativa e personagem), o mundo além de nos mudar nos muda, muda nossos gritos de certezas de outrora.
Ótima escrita. Belas reflexões. Abraços.
Excelente! Com todos os motivos de reflexão sobre a vida e sobre a morte. Tem o teu toque poético mesmo quando a narrativa nos envolve.
Um beijo.
Excelente! Com todos os motivos de reflexão sobre a vida e sobre a morte. Tem o teu toque poético mesmo quando a narrativa nos envolve.
Um beijo.