
Imagem via google: estádio HeLvídio Nunes, Picos(PI).
Lembro a bola subindo num movimento de rotação, fazendo lentamente uma curvatura acima da barreira, mudando a trajetória e se meter no desejado arco em L da trave, antes de se alojar no fundo do gol. O goleiro assistia imobilizado ao espetáculo. Somente Fogoió sabia fazer aquilo, ele e outros grandes craques da seleção brasileira do passado. Eu tinha lido que Didi, nas eliminatórias da copa do mundo de 1958, na Suécia, num jogo contra o Peru, tinha eternizado esse lance de bola parada, e os cronistas da época chamaram de “folha seca”. Ficou gravado no inconsciente da nossa mente de menino aquele lance do gol. Era uma tarde de domingo no estádio Helvídio Nunes, num jogo em que Picos tinha batido o time de Oeiras mais uma vez.
Durante a semana, fomos para a beira do rio (Guaribas), para treinos diários, tentar reproduzir aquele chute de bola parada, mas não acertávamos, nem mesmo Zé Bosta que tinha um chute delicado de mulher. “Tem que ser no peito do pé”, dizia Francisco. “Do lado do pé, burro!”, gritava Notre Dame. Até que o Zezito, chateado, chutou a bola para o meio do rio. Como não sabíamos nadar, ficamos só acompanhando a “dente-de-leite” ser levada pela correnteza, que amputou nosso final de tarde por uns dias. O Zezito tinha fugido, com medo da gente dar uns brogues na cabeça dele.
As vitórias do time do SEP (sociedade esportiva de picos), em meados dos anos setenta, estimulavam a torcida picoense a lotar o Helvídio Nunes. A cidade recebia euforicamente os times e torcedores em grande número das cidades vizinhas, para os jogos amistosos. Floriano, Oeiras, Valença, Água Branca, Inhuma, Araripina e outros times que não lembro. O SEP vestia camisa amarela e calção verde, era apelidado pelos adversários de “abóbora”. A região de Picos se desenvolvia nessa época influenciada economicamente pela localização, um ponto de convergência da transamazônica em construção. E no futebol, produzia muitos craques amadores, longe dos olhos dos grandes clubes de Teresina, River, Tiradentes, Flamengo – que contratavam a peso jogadores dos outros estados.
E no SEP, o craque Fogoió, camisa dez, tinha a aparência do Ademir da Guia, o grande jogador do Palmeiras e da seleção brasileira. Foi nessa época em que ele arranjou com políticos locais o emprego de professor de educação física. Boêmio, logo comprou uma moto Honda “cinquentinha”, as primeiras que chegaram na cidade, onde a bicicleta Monark era o meio trivial de transporte de rua.
No colégio estadual Marcos Parente, Fogoió, cabelo “balula”, tinha modos vulgares e certo desinteresse pela cultura escolar talvez o esquivasse dos outros professores, professoras. Durante o recreio, era assediado pelas alunas, até mesmo a Mônica que se encontrava comigo na fila do intragável “pau de índio”, largava a caneca para se juntar as outras em euforia. Na educação física, apesar de leigo, sabia harmonizar técnica ao estilo individual de cada jogador, mesmo lidando com crianças e adolescentes. Talvez faltasse um pouco de didática para abastecer os sonhos dos meninos. Em campo, trilando o apito, orientava nosso time do sexto ano, cada um personalizava a bola no pé. No passe curto ou longo, o técnico vislumbrava o futuro futebolístico incerto daqueles meninos. O Francisco tinha mais de um metro e sessenta de altura, (as meninas chamavam-no, na surdina, de “o rola”), o Zé Costa (Zé Bosta) oportunista na área, brincava de fazer gol, e o Notre Dame (tinha o pescoço enfiado nos ombros), bom cabeceador. Eu jogava na zaga, não inspirava confiança, e fui trocado de posição, goleiro do time. Até que não decepcionei. “Quando cresceres, vais para o lugar do Emerson Leão da seleção brasileira”, brincava.
Quando não tinha visitantes, a pelada no Helvídio Nunes era com os times da casa. O Vasco contava com amadores improvisados, a metade dos jogadores eram convocados ali mesmo, antes de entrarem em campo. Vestiam a camisa e, tecnicamente, conheciam a regra da pelada: do pescoço para baixo é tudo canela. O clube era mantido pelo empresário Chico de Júlia, político picoense que fermentava a esquerda do MDB, marcado de morte pela turma truculenta da ARENA, escapou de várias emboscadas. Mas aí é outra história.
O rival maior do SEP era o time do Monte Castelo, de oficiais e soldados do Exército de Picos, o 2º BEC. Jovens da região que se alistavam, a maioria filhos de agricultores da roça, mostravam habilidade com a bola e logo ganhavam a posição no time se juntando aos jogadores oficiais veteranos, os potiguares, severos líderes no esquema tático do time. O estádio de amarelo silenciava, de respeito e medo, à entrada do Monte Castelo (camisa azul-claro, calção branco) em campo. A força do Monte Castelo estava no fôlego dos jogadores e na disciplina tática, treinavam muito. Na falta de um craque, de um ídolo, eles se moviam pela técnica, entrosados, a linguagem rimada em equipe. Era bonito ver a superioridade em campo dos rapazes do Exército. Não foi à toa que um astuto picoense, analista de futebol, enquanto assistia ao Brasil x Holanda pela copa do mundo de 1974, disse que a tática do “carrossel holandês” comandada pelo craque Johan Cruijff, era cópia perfeita do que o Monte Castelo fazia em campo.
Em um jogo estranho, o SEP ganhou uma, após sofridas derrotas. De goleada, quatro a zero. Após o jogo, os castelhanos subiram no caminhão do BEC para casa. Estavam irreconhecíveis. Sacudidos pelas curvas e buracos na estrada, do centro de Picos até o quartel do 2º BC, a certeza de que seriam punidos, denunciados ao comandante por jogarem embriagados. O fato: um dos jogadores, que era soldado, havia noivado naquela fatídica manhã de domingo, dia de jogo, e o futuro sogro, um comerciante local, tinha oferecido na sua fazenda, comida e bebida alcóolica para os jogadores. E no jogo à tarde, eles enxergaram duas bolas rolando em campo.
Um dia entrou em campo, puxando a fila do time do SEP, um rapaz magrelo, cabelos encaracolados, o calção folgado na altura da barriga. Tomaram suas posições, ele ao centro do gramado, pisou a bola e esperou o trinar do apito para o início do jogo. Na torcida, ninguém perguntou nada, um silêncio submisso, mas todos perceberam o espírito eminente e audacioso daquele jogador estranho. Bola rolou no gramado e assistimos entusiasmados à riqueza dos recursos táticos do jogador – Sivuca. Após a estreia, todo mundo queria conhecer o craque, e não se falava em outra coisa nos bares, na praça, nos meios futebolísticos senão dos lances geniais do novato. Quem era ele? De onde teria vindo?
A história de Sivuca seria um capítulo a mais, se não fosse a história tão curta de um craque de futebol, se não fosse maconheiro e tivesse se entregado à droga.
Jogou só umas três partidas, três domingos que ficaram marcados por um mestre da bola. Algum torcedor que presenciou aqueles jogos jamais há de esquecer do “futebol arte” daqueles dias, da intimidade com que Sivuca tratava a bola. Fez em três jogos o que bons jogadores fariam em toda a carreira.
Da fama para a desgraça. De usuário da Cannabis para traficante. Dos aplausos da plateia para o silencio num canto da cela. Sivuca apanhou bastante dos miseráveis policias do dops em Teresina, entregou a turma do tráfico e foi jogado nas ruas como indigente. Última vez que o vi, faz tempos, ele estava na praça da Bandeira aqui em Teresina, lavando carros, ninguém mais se lembrava dele.
O time de Picos teve um sobressalto nos anos noventa, já como profissional, a “geração Leonardo”. A irreverência dessa geração foi descrita pelos cronistas que acompanhou o SEP com empolgação. E como disse Nelson Rodrigues, sem ser dele a frase, “O futebol é o ópio do povo”.

FWilson Fernandes é professor da rede municipal de Teresina. Nasceu em Picos-PI, 1962, reside em Teresina há quarenta anos. É autor do livro de poesias “Privacidade” (Prêmio Fundação Monsenhor Chaves, 2004) e de contos “A história de Zé Viúvo e outros contos” (Litteralux, 2024). No prelo, os de poesia : “Sem pressa para viver” e “Semivogal”.
Uma resposta
Gostei de ler. Tem 3 coisas de que eu gosto: qualidade literária, futebol e humor.