Coluna Guido Viaro: Grand Tour/Capítulo 1

Ilustração: Leonora Carrington


A realidade é muito mais ampla do que aparenta, ela curva-se, esconde-se, aparece e some, mas, simultaneamente, apesar do tamanho e das formas que pode assumir, e talvez, até em razão dessas qualidades, ela é menos concreta do que aparenta. Tudo o que existe pode, de fato, não existir, e esses acontecimentos podem ou não serem simultâneos. Portanto, o homem verdadeiramente realista, é aquele que, sobretudo, desconfia de qualquer realidade.  
     
Aprendi a desconfiar no dia em que caí do alto de uma macieira. Antes disso a essência de cada ente ou objeto, correspondia para mim, mais ou menos à sua aparência externa. É claro que mesmo antes da queda sabia que as pessoas são como icebergs, escondendo a maior parte do que são sob uma superfície que distorce imagens e dificulta compreensões, mas essa noção flutuava em águas rasas. O que me interessava era o pedaço de gelo visível, principalmente se nele conseguisse enxergar meu reflexo. Era apenas ele que importava, representava a prova mais sólida de que algo, ou tudo, existiam.      
                                                                       
Era através de meus próprios traços que o universo inteiro conseguia firmar seus alicerces e justificar o absurdo intrínseco a tudo aquilo que existe.  Enquanto minha boca e nariz, minha testa e orelhas, permanecessem visíveis no espelho, permaneceriam suportáveis as dúvidas sobre existir ou desaparecer para sempre. E mesmo que tudo fosse estupidamente provisório e incompleto, a vida fluía, da mesma forma que flui alguém deitado de barriga para cima nas águas de um rio, e que contempla a mudança dos céus, a indecisão das nuvens, desenhando formas que podem significar muitas coisas, inclusive nada.    
                                       
Mas desde muita tenra idade, percebi em mim, James, uma inadequação. Ao mesmo tempo em que flutuava contemplando as nuvens, sentia vontade de tocar o fundo do rio com os pés, e também de abandonar o curso escavado pela água na terra, e desbravar o que havia além daquilo que parecia estabelecer um limite para aquilo que deveria conhecer. Em razão disso, chateava-me sobremaneira as obrigações sociais a que um rapaz de minha idade e condição social estava sujeito. Aborrecia-me até mesmo aquilo que meus contemporâneos nominavam como diversão. As moças, ao mesmo tempo que me atraíam com seus corpos, conseguiam me repelir com umas poucas palavras pronunciadas, sentia que suas carnes eram as favoritas dessa máquina invisível que me punia com uma angústia difícil de ser combatida, e por assim ser, o gênero feminino, principalmente as representantes dele em idade reprodutiva, tinham seus espíritos massacrados, e se transformavam em caricaturas sociais, fantoches prontos para interpretarem o papel de seres humanos.
                                                                                                                
Pouco me sobrava, e nos momentos em que as obrigações sociais e profissionais me davam folga, recorria a longos passeios a pé pela natureza. Contemplava com interesse aquilo que parecia conseguir escapar das amarras que me oprimiam, o vento movendo o topo das grandes árvores, os arbustos, absolutos em sua imobilidade, mas servindo de moradia a uma miríade de insetos, os ruídos estranhos vindos de dentro da mata, e os séculos impressos nas cascas dos grandes troncos. Enchia meu coração de paz para só então me perguntar, se aquele mundo natural que me circundava, não possuiria ele também uma maneira cifrada de oprimir a seus próprios habitantes, opressão que jamais feriria minha pele, pois por mais que tentasse, eu jamais pertenceria àquele mundo.       
                                            
No dia seguinte precisava retornar a minhas obrigações profissionais, ajudava meu pai em um de seus muitos negócios, uma tecelagem que empregava entre mulheres e crianças, trezentos e cinquenta pares de braços. O novo século, apenas nascido, prometia o que todos os outros que vieram antes dele também prometeram, um mundo resplandecente, onde a moderna tecnologia atenuaria as dores humanas, criando novos espaços até então inexistentes para o prazer, e as descobertas espirituais. O século 19 seria uma era em que cada vez mais, o homem teria tempo e energia para refletir sobre seu próprio destino. Talvez pelo menos uma parte da população, pois por mais que os teares mecânicos, as descaroçadoras automáticas, e as máquinas a vapor facilitassem e aumentassem a velocidade com que o trabalho era realizado, os turnos em uma indústria nunca eram menores do que doze horas, podendo se estender até a 16 horas diárias.  
                                                     
Se quiséssemos, de fato, uma sociedade em que a criatividade fosse uma tônica, a descoberta um permanente desejo, e onde o prazer não se transformasse em vício, seria preciso modernizar não apenas as ferramentas de trabalho, mas avançar na direção das almas, tornando-as mais reluzentes e interessantes, curiosas e coloridas formas de percepção e descoberta. Mas eu não sentia que corriam em minhas veias o sangue de um reformador social, ou de qualquer outra ordem. O que experimentava era uma enorme confusão, os hormônios me puxavam em uma direção, as obrigações em outra, havia também interesses diversos gritando por suas fatias, e toda essa mistura fervilhava em um caldo duvidoso, que quando evaporava enchia meus olhos de uma substância, que conforme o observador poderia ser definida como vazio, ou então juventude. 
                                                          
E já que abordamos esse assunto, um dos aprendizados que tive com a queda da macieira foi justamente esse, a realidade é relativa ao observador, e pode vestir roupas completamente diferentes conforme os olhos que a observam. Mas deixemos isso mais para frente, não posso descrever as consequências da queda, sem descrevê-la, e até para isso ainda é cedo. Primeiro é preciso contar sobre as forças que me levaram a estar no local em que estava quando avistei a macieira, e como surgiu o desejo de escalá-la, assim que a vi.
                                                                  
Posso afirmar sem medo de errar que, em meu vigésimo primeiro aniversário, apesar da saúde, dinheiro e família que possuía, não me considerava um homem feliz. Meus dias eram como uma panela de água prestes a ferver, as bolhas se levantavam do fundo para logo desaparecerem, nada permanecia, e a lógica me indicava que em breve toda a água evaporaria e eu me transformaria em uma massa de ferro distorcida pelo calor. Isso talvez acontecesse porque meus olhos estavam fixos nas bolhas, e não conseguiam enxergar nenhuma possibilidade de integração com tudo o que havia ao redor. Observava o tempo como alguém que vê gotas escorrerem, e sem se dar conta, julga que cada uma delas representa alguma espécie de perda, portanto, a cada instante, a realidade perdia sabores e a vida possibilidades. 

As bolhas que estouravam eram expectativas desfeitas, e naqueles dias, olhava para o futuro que resplandecia como noite escura sobre uma floresta, só o que me parecia concreto era aquilo que explodia sua impermanência diante de meus olhos. Eu existia, e precisava confirmar isso com algum reflexo, mas as explosões não permitiam imagens, quando muito reconhecia pedaços de mim espelhados em lava furtiva, o que enchia meus dias de um pessimismo carregado com a força e o entusiasmo da juventude. 
                                                                                     
O mundo não perdera as cores, fato que deve ocorrer quando a melancolia ataca em idade mais tardia. Ao contrário, elas, as cores, eram excessivas, latejavam, transbordavam, inundavam meus sentidos fazendo com que tudo o que havia dentro de mim fosse arrastado por uma correnteza descoordenada. A confusão se espalhava por todos meus departamentos, mas, ao contrário do que costuma acontecer com os jovens, dela não conseguia extrair nenhum prazer. A incerteza costuma se traduzir em brilhos, que inundam os olhos daqueles que completaram vinte anos, mas em meu caso, ela se manifestava como sombras pesadas, que mesmo depois de extintas, manchavam minha pele com as mesmas cores acinzentadas.

Esse era, portanto, meu panorama espiritual naqueles dias, mas assim como tempestades chegam sem avisar transformando luzes e paz em uma balbúrdia comandada pelas forças da natureza, o contrário também acontece, no meio do temporal, sem aviso, abrem-se grandes espaços entre as nuvens, e o sol, que se acreditava extinto para sempre, revela com seus raios e luzes, que nunca saíra do lugar, e que a cobertura de nuvens, era menos profunda e duradoura do que se fazia acreditar. 
                                                                                                                           
Logo pela manhã meu pai me convocou para uma reunião no salão de recepções de nossa mansão. Assim que cheguei o vi acompanhado por dois homens que não poderiam ser mais diferentes entre si. Um deles era alto e forte, não era jovem, mas a idade real era difícil de adivinhar, tinha o rosto queimado de sol e o cabelo ralo, cortado curto, começava a embranquecer. Uma cicatriz que começava na lateral do pescoço avançava sobre a maçã do rosto e só terminava próxima ao olho esquerdo. Quem a contemplava acabava se distraindo, a curiosidade sobre sua origem fazia com que se prestasse menos atenção em outras partes daquele rosto que não deixavam de ser interessantes, principalmente os olhos. Tinham uma cor indefinível localizada entre o amarelo e o cinza, eram encobertos por uma densa camada de pálpebras que parecia feita para olhos com o dobro do tamanho. Sobre eles havia duas sobrancelhas cujos pelos multicolores pareciam tão vigorosos, que se esticados, poderiam serrar metal. O homem grande permaneceu de pé como um carvalho imponente, e me cumprimentou com um discreto aceno de cabeça.  
                        
Sentado no sofá estava seu antípoda, um homem pequeno com longos cabelos esbranquiçados, estava elegantemente trajado com um paletó de veludo vermelho com ombreiras, que apesar de vistosas, não conseguiam disfarçar a falta de vontades de seus ombros escorregadios. O nariz proeminente suportava duas lentes fundas, que praticamente impediam a descoberta da localização exata de seus olhos. Suas mãos eram finas e frágeis com dedos longos, que pareciam ser o termômetro da ansiedade que habitava aquele corpo. Moviam-se sem parar, e quem visse aquelas mãos desesperadas isoladamente, julgaria que pertenciam a um pianista cujo instrumento havia sido subtraído. O homenzinho me foi apresentado, chamava-se Waterfall, ele ficou em pé e apertou minha mão, senti a fragilidade de seu aperto e a suavidade da pele de sua palma. Em seguida o homem grande aproximou-se e senti a diferença no aperto, uma mão que envolvia a minha por completo e que mesmo parecendo controlar a força que possuía, fez com que meus ossos e tendões sentissem a marca de seu aperto de mão. Chamava-se Cunningham.

Ainda não tinha certeza sobre a razão daquele encontro, mas uma suspeita começava a ganhar corpo. Decidi que não permitiria que o gelado que nascia na base de minha espinha ganhasse corpo, eles poderiam não passar de novos administradores para as indústrias têxteis da família. O sorriso e o silêncio de meu pai, entretanto, fizeram com que a sensação de frio subisse pela coluna vertebral e se instalasse em meu estômago. Alguns instantes de silêncio construíram uma agonia curta que foi aliviada por uma frase: 
                                                                                
“Eles serão seus guias no Grand Tour.” 
                                                                           
Imediatamente minhas pernas bambearam, e tive de me sentar para não desmaiar. Há anos esperava por esse instante, e já acreditava que devido à expansão dos negócios da família, não haveria espaço para uma aventura assim tão demorada. Para os que não conhecem, o Grand Tour é uma tradição que já remonta há mais de um século, os jovens ingleses de famílias abastadas costumam, normalmente acompanhados por preceptores, viajar pela Europa, uma longa viagem de descoberta e aprendizado, histórico, mas principalmente artístico.   O percurso clássico começa com a travessia do Canal da Mancha até Calais, depois Paris, algumas cidades antigas da França, Suíça, e finalmente Itália, onde se costuma passar a maior parte do tempo, visitando museus, palácios e convivendo com grandes mestres da literatura, e principalmente da pintura e escultura. Na Itália a maior parte do tempo costuma ser passada em Roma e Veneza. Alguns viajantes estendem seu trajeto até a Grécia, mas a maioria não vai além da Itália. No caminho de volta Alemanha e Holanda servem de sobremesa cultural. As viagens são longas e variam entre seis meses a até três ou quatro anos, os viajantes costumam voltar carregados de quadros, esculturas e livros raros, que além de decorar suas propriedades, servirão para demonstrar às outras famílias do mesmo extrato social, as riquezas culturais adquiridas por seus herdeiros.

Para mim o Grand Tour representava uma segunda chance, de recomeçar ainda jovem uma vida que trovoava, dando ares de que uma pesada e tormentosa tempestade desabaria a qualquer instante, e cobriria com sombras as cores que a juventude tentava manter intactas. A viagem teria o poder de soprar nuvens, de realçar os tons espalhados pela natureza, e as chuvas, quando viessem, serviriam apenas para aumentar a intensidade das cores, que refletiriam umas nas outras e também dentro de mim. Sei que isso pode soar ingênuo, e que talvez a viagem possa ser encoberta pelo manto do tédio, fazendo com que deseje minha velha rotina, mas tenho vinte e um anos e se não me permitir sonhar agora…  
                           
Aproximei-me de meus guias e os abracei um de cada vez, notei constrangimentos em ambos, principalmente no grandalhão Cunningham, que sorriu amarelado assim que o larguei. Depois compreendi que aquilo para eles não possuía a mesma importância que para mim, era apenas uma maneira de ganhar dinheiro. Senti-me um pouco ridículo, sem no entanto, me arrepender de meu ato de carinho. A partida ficou acertada para dali a uma semana, tempo suficiente para os preparativos. A ideia era atravessar de barco o Canal da Mancha, e já em Calais, adquirir uma carruagem e cavalos que serviriam para toda a viagem. Na véspera da partida recebi a visita de Waterfall, conversamos por longas horas sobre música, pintura e literatura. Ele quis saber qual era, entre as variadas expressões artísticas, aquela que mais me atraía. Não precisei refletir muito para responder, gostava muito de pintura, escultura e teatro, mas era a poesia a expressão que mais me comovia. Ele sorriu e disse que percebeu isso assim que me viu.  
                                     
“A poesia nasceu como uma louvação aos deuses, depois passou a ser o canto coletivo das sociedades primitivas, e hoje em dia é a voz do indivíduo, um indivíduo que transforma em versos, rimados ou não, suas dúvidas existenciais, que podem estar vestidas em roupas de gala ou em andrajos, mas que à sua maneira, perguntam a tudo aquilo que é maior do que nós mesmos, sobre nossa condição, cuja incerteza tem o tamanho da certeza de que o sol raiará. A poesia comemora nossa mortalidade, extrai sua potência do peso dos anos sobre os passos do homem, sobre a dúvida noturna coroada por lágrima…” 
                                                            
Waterfall prosseguiu seu discurso, que me pareceu belo e profundo, mas perdi o fio da meada e me distraí com suas expressões faciais, que pareciam não combinar com aquilo que dizia. Havia algo de mesquinho na maneira como movia os lábios, fechava os olhos, ou coçava o nariz. Talvez esse não fosse o adjetivo correto, mas me parecia que nele o conhecimento e o raciocínio, existiam para que fossem demonstrados aos outros, e que suas funções primeiras, as descobertas para as quais serviriam de ferramenta, para ele não tinham tanta importância assim. O velho erro filosófico de privilegiar os meios em detrimento dos fins. Como um poeta que, em busca da rima perfeita, acaba destruindo o significado de um verso, que por sua vez transforma o poema em uma máquina de relinchar sons sem harmonia. Mas talvez fosse eu quem estivesse cometendo outro erro filosófico clássico, o de julgar um livro pela aparência de sua capa. Ele mal abrira a boca e eu já o havia condenado sem direito a julgamento. Tão importante quanto desconfiar das pessoas é nelas acreditar.

“…o poeta é, portanto, não um peixe nadando tranquilo no leito do rio, mas aquele que é capturado pela rede do pescador, e se debate, percebendo que está fora de seu meio natural, e que seu tempo é exíguo, um peixe em cujos olhos estanhados não se refletem as paisagens aquáticas de um mundo com a mesma velocidade de sua alma, mas sim as nuvens do céu sendo varridas por um mistério oculto, que as faz se comportarem como touros selvagens sendo empurrados na mesma direção por uma imensurável potência coletiva.”
                                                 
Ele encerrou seu discurso com um tapinha em meu ombro e logo passamos a discutir aspectos práticos da viagem. Continuei reparando em seus modos, tiques, e linguagem corporal. Havia nele algo de feminino, talvez o melhor termo fosse efeminado, um homem tentando passar-se por mulher, mas que por não conseguir, tempera cada uma de suas frases com um amargor ácido, e distorce parte do conteúdo de tudo o que afirma. Mesmo assim essa força não parece suficiente para impedir que sua imensa cultura espalhe suas raízes, fazendo florescer alguns raciocínios interessantes que se originaram a partir delas.

Cunningham entrou carregando um grande baú, eram livros que Waterfall gostaria que eu lesse para que, segundo ele: “os alicerces fossem construídos em rocha sólida…” Havia ali um pouco de tudo, Aristóteles, Platão, Lucrécio, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes, Dante, Spinoza, Gibbon, além de uma infinidade de livros contendo reproduções de obras de arte, e também muitos mapas de várias partes da Europa. Segundo Waterfall: “aquela deveria ser minha piscina, onde me refrescaria do calor e encontraria diversão, mas também minha sobrevivência, pois era com essa água que iria me hidratar. Tudo o que iríamos conhecer estava inapelavelmente amarrado às ideias contidas naqueles livros, e seria a partir da percepção dessas conexões que eu construiria a originalidade de meu raciocínio, o mais elevado objetivo de meu Grand Tour.”   
                                                     
Depois que eles foram embora permaneci por muito tempo folheando os livros e tentando extrair de cada um deles alguma frase que combinasse com o que meu preceptor havia dito. O dia foi embora e as velas acesas manchavam as páginas de um amarelado que parecia me distanciar ainda mais daquelas leituras, sabia que aqueles livros tinham sido escritos por pessoas muito diferentes entre si, de diversas nacionalidades, que viveram em muitas épocas, mesmo assim tentei encontrar pontos em comum, o tipo de pedra com a qual construiria meus alicerces. Só o que consegui foi adentrar a uma zona nebulosa onde a confusão mental logo se transformou em melancolia, fazendo com que meu entusiasmo da véspera murchasse como a flor que há três dias teve seu caule cortado.   
                    
Foi quando me ocorreu que talvez todo aquele conhecimento, e principalmente, a integração entre os conhecimentos, fosse algo muito além de minhas capacidades, e que talvez essa longa e custosa viagem não passasse de um imenso desperdício de tempo e recursos. Uma mentira feita para encantar mais os que ficam, do que os que se aventuram pela Europa, e que acabam sendo mais contaminados pelo tédio, do que pelo desejo de descoberta. Antes de adormecer juntei partes dessas ideias sombrias, e a soma delas acabou construindo uma frase: “Parece que, por mais frutífero que se apresente um caminho, há sempre uma força invisível e imutável capaz de diminuir brilhos e reduzir encantos, uma máquina de produzir suspiros, e que nos faz encontrarmos flores secas dentro de livros esquecidos.”

Então percebi que por mais incipiente que fosse minha conclusão, ela havia sido um raciocínio que eu iniciara e concluíra, e se não possuía a solidez necessária para um bom alicerce, pelo menos o sorriso que habitava meu rosto antes de adormecer, parecia sólido como pedra. Quando acordei sabia que jamais me esqueceria do dia que apenas começava. Parecia que meu corpo também havia percebido isso e nutrira cada uma de minhas células com a carga máxima possível de energia. As dúvidas e tristezas da véspera desapareceram, as preocupações com coerências e conquistas perderam a importância e só o que existia era a felicidade do instante flutuando em um mar de juventude, A carruagem que nos levaria até o porto de Dover, trouxe Cunningham e Waterfall. Embarcamos minha bagagem, viajamos o dia inteiro, Waterfall explicava o itinerário dos próximos meses e as riquezas culturais e históricas que conheceríamos. Cunningham permaneceu calado a maior parte do trajeto.

Eu carregava comigo algum dinheiro, mas a maior parte dos fundos suficientes para financiar a viagem estavam com Waterfall, eram cartas de crédito que iriam sendo trocadas aos poucos. Havia também algumas moedas de ouro que poderiam ser entregues, em nome da segurança do grupo, em caso de assalto. A primeira noite dormimos em uma hospedaria ao lado do porto de Dover, onde logo cedo embarcaríamos para Calais. Dispensamos a carruagem e quando estávamos providenciando os quartos, algo estranho aconteceu, Cunningham disse que não dormiria ali, preferia cochilar em alguma cadeira no porto. Depois de muito insistirmos percebemos sua intolerância e ele caminhou até o porto onde nos encontraria no dia seguinte.   
                                                                                           
Escolhemos dois quartos e antes de entrar no meu, Waterfall disse que meu pai já o havia advertido, Cunningham era um bom cocheiro e podíamos contar com ele para tudo, mas para aceitar fazer a viagem, ele deixara claro que preferia sempre dormir na carruagem. Não gostava de pensões, pousadas, ou hotéis. 
                         
Quando chegamos ao porto ele já nos esperava, não parecia haver acordado recentemente, talvez nem tivesse dormido, mas isso aparentemente não fazia falta. Compramos as passagens e em poucos minutos navegávamos na direção do continente. Meus pulmões se encheram com os odores de um mar encoberto por gaivotas barulhentas, e que parecia, por seu vigor e por aquilo que encobria, uma máquina de produzir vida. Viajei para o fundo, tentando entender aquilo que é muito diferente do que sou, imaginei o que representava para aquelas vidas submarinas os cascos dos navios singrando diuturnamente aquelas águas, então voltei meus olhos para cima, um azul inquebrantável que parecia forte o suficiente para jamais escurecer, aquele era outro oceano, e eu mesmo uma outra forma de peixe que olha para cima sem compreender, e que mal desconfia, que suas poucas e magras suposições, estão tão distantes da realidade quanto o moribundo do útero materno.

Meu raciocínio foi interrompido pela mão esguia de Waterfall pesando sobre meu ombro, e inquirindo sobre por onde passeavam os pensamentos de um jovem cujos olhos estavam tão distantes. Sem que tivesse tempo para responder, ele iniciou um desfile de conhecimento geográfico e histórico sobre aquela parte da Europa. As informações eram derramadas como as águas de uma cachoeira, e qualquer desejo de minha parte em interrompê-lo, mesmo que fosse para perguntar sobre algo que acabara de dizer, era rechaçado com expressões que beiravam à grosseria. Mesmo assim sabia que ele estava sendo pago para agir daquele modo, possuía sim muita informação e talvez temesse, o que não era incomum acontecer em percursos longos como esse, que a relação aluno e professor se transformasse em uma amizade que faz com que um deles não ensine e o outro não aprenda.

A costa da França rasgou a unanimidade cinzenta das águas, sobre sólidos paredões de calcário e terra, tentativas de vegetação desafiavam as leis da gravidade, impondo galhos indecisos que perfuravam a pedra em busca de vida, e ali se estabeleciam, com dignidade, cobertos por folhas, vivendo como se não existissem outras plantas semeadas em terra firme, e com espaço suficiente para espalharem raízes. A medida em que o navio se aproximava, a paisagem revelava outras partes de sua realidade, sobre as falésias apontavam-se os primeiros cumes construídos pelo homem, os mais pontudos eram igrejas, mas havia prédios em pedra, casas em tijolo, espaços livres, ruas e o porto. Aquela era Calais. Ainda mais próximo pude perceber que a cidade era habitada, vi pessoas de longe, pequenas silhuetas, que sob o céu azul e o sol forte, deveriam também formar suas pequenas sombras.

Com o navio perto de aportar, consegui identificar o primeiro rosto, era um jovem de uns quinze anos, que do porto contemplava a chegada de meu navio. Ainda levaria alguns minutos para o desembarque, e Waterfall estava entretido pedindo a Cunningham para colocar nossas bagagens próximo da saída, então tive tempo para, partindo do céu, mergulhar até o fundo do mar, e depois, subir, escalando as falésias, as árvores tortas lutando pela vida, conhecer as cidades, as silhuetas, os homens, até finalmente mergulhar dentro dos olhos daquele jovem que me olhava e então, finalmente, voltar a ser eu mesmo. Um exercício prazeroso de descoberta que pretendo executar mais vezes, mas que foi interrompido pelo movimento dos passageiros do navio ansiosos pelo desembarque. 
                                           
Assim que o navio foi ancorado tentei ajudar Cunningham com parte das bagagens, mas ele, de maneira pouco amistosa disse que essa era sua obrigação. Meus pés finalmente pisaram as terras arenosas de Calais. Tentei localizar o jovem que avistara do navio, talvez sua expressão perplexa tivesse se modificado e se transformado em ansiedade, igual a outras centenas de pessoas que se espremiam sobre o cais do porto para abordar os passageiros que desembarcavam. Não o encontrei, mas li naquele rosto um desejo juvenil pelo novo, uma vontade de mergulhar em águas desconhecidas. Um desejo que pareceu muito maior do que o meu.

Juntamos nossas bagagens em um canto e enquanto Waterfall descansava sobre o baú de livros, Cunningham tentava localizar entre as centenas de negociantes, aquele que poderia vender-lhes uma carruagem confortável e dois cavalos. As ofertas variavam de tapetes orientais a animais silvestres, passando por ópio, prostitutas e viagens para os quatro cantos da Europa. Havia também muitos negociantes de armas e outros que se diziam especialistas na segurança de viajantes. Eram todos muito insistentes e em um inglês simples conseguiam dizer tudo que era necessário. Cunningham se separou de nós pois havia um lugar mais adiante onde ficavam estacionadas as carruagens para aluguel e venda. Fui cercado por um grupo de vendedores que começaram a me puxar em diferentes direções, um deles colocou um papagaio sobre meu ombro, o outro pendurou um punhal em meu cinto. Todos falavam rudimentos de inglês, mas nenhum deles conseguia entender o significado da palavra não. Enquanto isso Waterfall, como se estivesse em uma silenciosa biblioteca em Londres, lia um livro alheio a toda confusão.  
                 
De repente um homem estranho, com poucas palavras e alguns empurrões conseguiu expulsar os vendedores que me assediavam, o papagaio bateu asas até o ombro de seu dono e o punhal foi retirado por ele e jogado no chão. Era um homem que falava bem o inglês apesar do forte sotaque árabe, era alto, magro e usava um turbante e um colete colorido, tatuagens e cicatrizes se alternavam em seu peito e braços. O rosto muito queimado de sol, possuía olhos pretos que flutuavam em uma substância amarela, a boca era quase inteiramente dourada, os espaços sem dentes de ouro permaneciam vagos. Acima da boca havia um estranho bigode, negro como o nada, avançava pelas bochechas formando uma espécie de sorriso que parecia ser o exato oposto do que dizia o resto de sua figura.

Mesmo com minha pequena experiência de vida eu sabia que naquele homem não deveria depositar uma gota de confiança. Desviei meus olhos dele mas não pude deixar de ouvir suas palavras. Seu nome era Mohamed, e dizia ser um especialista em segurança, conhecia todos os perigos da Europa, ladrões, assassinos, soldados desgarrados em busca de ganhos fáceis, mulheres usadas como iscas e muitas outras artimanhas que eu não poderia nem imaginar. Interrompi-o, percebi que ele poderia continuar vendendo seu produto por longos minutos. Ele então ficou sério e fez seu preço, por 50 moedas de ouro garantiria nossa segurança durante toda a viagem.

Disse que já tínhamos nossa segurança e que agradecia mas não iria precisar de seus serviços. Ele segurou em meu braço e disse que então lhe desse cinco moedas de ouro para que nada de mal acontecesse conosco durante o percurso. Olhou fundo em meus olhos e tive certeza de aquilo era uma ameaça. Também tive certeza de que em todos meus vinte e um anos nunca havia passado por uma experiência como essa, e que ela talvez fosse apenas a primeira de muitas. Definitivamente a viagem havia começado, e eu gradualmente estava me transformando em outro.

Nesse instante Cunningham chegou, havia comprado a carruagem e os cavalos, e devolveu a Waterfall o dinheiro que havia sobrado. Mohamed manteve seus estranhos olhos no dinheiro e nos seguiu até o local onde estava a carruagem. Os cavalos negros eram grandes e fortes e a carruagem parecia confortável, acomodamos as bagagens e nos preparamos para partir. Pedi a Cunningham que desse duas moedas de ouro para o estranho homem que nos seguira. Ele me perguntou porque deveria dar, e contei rapidamente a história, disse-lhe que nesses casos seria melhor a prudência, ele pareceu concordar mas não quis pegar o dinheiro. Desceu da carruagem e golpeou Mohamed com um tapa tão forte que o barulho do estalo fez com que os cavalos se assustassem. O embusteiro rodopiou nos ares antes de cair de cara o solo arenoso. Cunningham subiu na carruagem e os cavalos nos fizeram avançar com rapidez. Alguns segundos depois ouvi um grito em tom ameaçador em um idioma que não consegui entender.



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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