POEMAS EM TEMPOS DE PANDEMIA : conto de “A SOLIDÃO DOS ANJOS” de Marco Aurélio Cremasco

 

 

 

A prosa de Marco Aurélio Cremasco revela uma literatura contemporânea, com multiplicidade de vozes e heterodoxia na forma. Ora usa travessão e marcas de elocução verbal, ora os ignora. O escritor também flerta com a poesia reiteradamente. Assim, o leitor segue por um terreno movediço, obrigando-se a um movimento lento, atento.

N’A solidão dos anjos, as passagens líricas não aliviam o peso do drama que seus personagens carregam. Frustra-se o leitor que espera encontrar refrigério ou respostas para as suas inquietações. Cremasco o conduzirá por sendas tortuosas, as quais, ao final, revelarão que a solidão é a condição do ser humano. Habitam as páginas a atriz decadente, o escritor frustrado, o velho, o suicida, a sobrevivente sequelada de AVC e outros personagens desajustados, colhidos em seu cotidiano. Mas Cremasco vai além de Clarice Lispector, para quem “todo adulto é triste e solitário”. A sua solidão transcende o homem e atravessa a eternidade: “Deus, ao fazer surgir a luz, procurou vencer a própria solidão”. E, a ao criar o homem à sua imagem e semelhança, também o condenou a essa condição.

Os contos de Cremasco são um universo. Partem do gênesis bíblico e mitológico, alcançam uma desencantada sociedade contemporânea e chegam a um futuro distópico. Povoam esse universo figuras mitológicas e históricas, personagens bíblicas e literárias, escritores e anônimos. Sem pudor, o escritor transporta Romeu, Othelo, Hamlet e outros personagens shakespearianos para uma moderna república corrupta. Também recria Capitu, que questiona em seu diário o destino que lhe deu Bentinho, e promove o improvável encontro das mulheres de Tolstói, Kafka e James Joyce. Tal qual Dante Alighieri, conduz o seu poeta às profundezas do inferno, levando junto o seu leitor. E no limite da blasfêmia, seu Prometeu/Lúcifer dá ao homem “o reino das palavras, a partir das quais tudo é possível”. N’A solidão dos anjos, Cremasco comprova que sim.

Oscar Nakasato
______________________________________________
Conheça um conto do livro:


POEMAS EM TEMPOS DE PANDEMIA
Colocou a velha poltrona junto à janela. Reclinou-a e buscou o céu, escondido entre edifícios. Alucinou-se. Transportou-se à varanda simples de uma casa, circundada por um jardim com uma ou duas roseiras. Sentiu aroma de pastagem que se estendia até um rio. Mesa, bule de café, bolinhos de chuva e antiga máquina de escrever, convidando-lhe. Datilografou palavras aleatórias: rosa, canela, universo, cratera, sedução e sabe-se lá o que mais. Para cada palavra, um capítulo. À medida que a trama transcorria, um baú se abria, revelando-se em frases, delineando personagens. Os mesmos, ora amadurecendo ora rejuvenescendo, deliciando-se. Finalmente viu-se com o romance Poemas em tempos de pandemia. Respirou com vagar e sentiu o azul do céu refletido, úmido, no castanho do olhar. Nesses dias em que a pandemia cobra vidas e não poesia, que alma habita você? — ponderou. Palavras lançadas ao vento, redemoinhos, tormentas atormentam a mente inibida, lançando-a em zona proibida, onde tudo é permitido, encantado. A angústia se faz desejo. A timidez aos poucos se rebela, indo além do lume de uma vela, pois tamanha emoção se revela em vulcão prestes a explodir. E esse baú em seu coração? — perguntou-se. — O que guarda? A carícia das estrelas na face? A leveza da palavra a ser revelada ou o tempo para desabrochar a paixão que insiste em não existir? Cavalgue, então, no dorso de um lobo solitário, desse que uiva um blues entristecido. Acaricie os pelos macios desse bicho doido varrido e sussurre fome em seus ouvidos. Pode ser que encontre o conforto da esperança nos dentes de sua poesia. Mas a noite não traz segredo ou mistério no seu acolhimento. A noite traz encantamento. Deixe-a penetrar na pele. Abandone-se no rito lunar enquanto sonha, pois se você quis ser o vinho, roubei as videiras de Dioniso para fazê-la leve e embriagante. Você quis ser a lua, desafiei a beleza de Lilith para torná-la livre e inebriante. Você quis uma estrela, trouxe-lhe o cinturão de Órion para alindar seus cabelos. Cansada, escolhe viver. Resigno-me e ofereço um momento fugaz em noite repleta de magia. A febre toma o corpo a ponto de ouvir — Marinheiro do luar, por que me provocas assim? Vai, toma seu barco, reme à lua, enquanto fico no meu jardim. Aqui, aprendo com a natureza a singularidade das coisas, a contemplação da vida, a inquietude de evoluir. Seu tempo é outro, o meu vale ouro. Deixe-me vê-lo partir, o encanto foi renovado. Vai, vai, marinheiro no luar. Não bastam as pétalas que roubou de meu olhar? Olhos febris procuram luz. Amanhece, o sol aparece e desnuda a vida para inúmeras perguntas. — Qual a fúria que resta de fagulha em seu fogo? Qual a gota que resta de orvalho na flor? Essa flor que lhe nasce a cada manhã na face. Qual o delírio que resiste ao brilho de um sonho? Digam-me — ele se desespera na solidão viral — antes que as manhãs despertem girassóis. Antes que a imensidão do mar desabe, estou ciente de minha finitude. A eternidade não me pertence, pois sou um marinheiro exausto de navegar. Eu que, diante do velho barco, faço o mar. Esse mar em todo lugar. Esse mar na maravilha da palavra amar. Na febre que me consome, vejo a gata borralheira e o gato de botas. Qualquer conto de fadas surge no vazio da incerteza, onde o coração se abre ao delírio, como também reluz o brilho da gota de chuva no cílio da flor. Longe da metáfora, perto da lágrima na sincronia de um sentimento confuso, breve, distante, proibido, escrito em verso livre não dito, em que tudo pode acontecer ou tudo não vai além de poesia nesses tempos de pandemia. Então, dormiremos bem, pois somos inventores do relógio, jamais senhores da paixão.

 (A solidão dos anjos, Confraria do Vento, 2021)


Nascido em Guaraci, Paraná, Marco Aurélio Cremasco é um dos fundadores da revista de literatura Babel. É autor de seis livros de poesia, além dos romances Santo Reis da Luz Divina (Editora Record, 2004), vencedor do I Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti em 2005 e de Guayrá (Confraria do Vento); As Coisas de João Flores (Editora Patuá); e contos Histórias Prováveis (Editora Record, 2007) e o livro de crônicas Onde se amarra a terra vermelha (Nave Editora, 2018) finalista do Prêmio Jabuti 2018.

Cremasco é professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp e autor de vários livros voltados para a área.

Respostas de 2

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *