
Ilustração: Edvard Munch. O beijo. 1897.
Mais, não podíamos pagar. E bem poderia valer um aluguel menos razoável: modesta mas aconchegante, convidativa, cômodos pequenos, última da vila. Cabendo justamente às nossas necessidades, nossa mobília.
Vizinhos simpatizaram logo conosco. Talvez faltasse à vila um casal de pouco tempo, sem filhos. Eles próprios nos cobravam novos moradores, oferecendo-se tios, padrinhos, avós. O primeiro sinal de boas-vindas, trouxe-nos uma senhora da casa em frente: um vaso de barro, planta delicada, de folhas retraídas, um verde muito claro e vivo, como só se observa nas manhãs de bom tempo e estando os olhos de janelas abertas. Pediu que a molhássemos diariamente, detalhou pequenos cuidados, previu seu desenvolvimento de acordo com a adaptação ao nosso mundo – sua umidade, sua luz e sua sombra.
De outra casa, saía o morador mais velho, aposentado de olhos miúdos, simpático e feito a dar-se com todos. Cadeira na calçada, acompanhava o futebol improvisado das crianças. Perguntei-lhe sobre a placa à entrada da vila, sobrenome em logotipo, número de cinco casas.
“Foi ele quem reformou a rede de esgoto aqui do quarteirão. Tenho fé que vai ser reeleito. Esse sim! Homem íntegro, trabalhador, amigo do povo!”
Disse-me também, pela terceira vez, que o pessoal da vila nunca se desentendera, que eram todos uma só família.
Nossa prestativa vizinha da frente vinha ver-nos todos os dias. Acrescentava curiosidades sobre a plantinha, que se desenvolvia rapidamente, elogiava os bons tratos. A casa dela era escurecida de plantas. Prometeu-nos fertilizante especial, inseticida forte, terra tratada. No sábado, pegou-me em casa. Logo que se retirou, minha companheira puxou-me a um canto.
“Cuidado com o que diz quando ela pergunta sobre nós. Todos aqui pensam que somos casados.”
Nesse dia, voltei mais tarde. Já havia escurecido. Soprava uma brisa de certa forma ameaçadora, como se prenunciasse ventos mais intratáveis.
Subi o degrau do portão. Nem me dera conta de como a planta havia crescido: enredava-se no suporte, escurecia nossa pequena varanda, ramos buscando a porta da sala. As folhas largas, de nervuras rígidas, assumiam tons de violeta e vinho, do que a dedicada vizinha não nos prevenira. Notei também uma trilha de formigas que até então não se havia mostrado nessa parede, à altura de minha cabeça. Considerei, como tantas vezes fizera, que as formigas, por mais que se sacrifiquem em seu afã interminável, veem sempre menos dimensões do que supomos, com isso nunca suspeitando de que podemos, a qualquer momento e à nossa maneira, esmagá-las, desde que não mais nos interesse observar seu trabalho.
Mesmo depois de jantarmos, minha companheira se retraía, nervosa. Cada cigarro alimentava sua ansiedade. Nossa conversa estendeu-se até noite alta. Há muito, não mais se ouvia o som das crianças, seus gritos de alegria ou de raiva, seus gemidos de dor. Nem o zumbido simultâneo das TVs, os chamados, os talheres. Só o vento prosseguia em sua fuga.
Fiz outro café, que tomamos na cozinha. Perdemos a longitude das horas. Adivinhávamos, de um para o outro, que não conseguiríamos dormir. Também não nos chegava a convicção de que nossos vizinhos estariam, àquela hora, imersos em sonhos tranquilos – de minha parte, isso sempre abria margem a algum furtivo pesadelo. Lá fora, os ramos batiam à porta, ajudados por um desvio do vento.
Minha namorada fixava olhos distantes. Parecia estar com frio. Mas não fazia frio. Fiquei olhando a respiração de seus seios sob a camisola curta. Mãos trêmulas, pernas e pés esgotando possibilidades, posições. Por fim, ergueu-se, mãos na cabeça, dedos violentando os cabelos.
“Não posso mais.”
Parei à sua frente, segurando-a pelos ombros.
“Você vê, tanto quanto eu, eu sei. Temos que sair daqui o mais rápido possível, enquanto ainda… Enquanto nós podemos… Antes que nós…”
Propus que deixássemos o que mais fosse, fizéssemos as malas do que ainda nos parecesse essencial ou mágico, partíssemos antes do amanhecer, aproveitando a cidade de lua, o vento incomunicável, o sono coletivo dos justos. Ela me abraçou esboçando um pranto emocionado, que felizmente dominou a tempo. Senti seu corpo mais quente, costas e nádegas relaxadas, como voltando a si. E a mim. Sorria, outra vez plena. Outra vez encantada, outra vez menina.

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias.
É autor de 5 romances (“Os últimos dias de agosto”, “A seta de Verena”, “Marcas de gentis predadores”,“Projeto esvanecendo-se” e “Teus olhos na escuridão”), 4 volumes de contos (“A canção de pedra”, “A conspiração dos felizes”, “Lisette Maris em seu endereço de inverno” e “Inconsistência dos retratos”) e um de poesia (“Diário contra o destino”). A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” ( www.percepolegatto.com.br ) .
Uma resposta
Adorei a leitura do texto. Achei super interessante; uma leitura, que, lemos e a vontade de não parar de ler.