Coluna Guido Viaro: Grand Tour/Capítulo 4

Ilustração: Max Ernst


Os dois meses que passamos em Paris se transformaram em uma   recordação distante, mas que, agora, passados mais de dois anos, ainda se misturam com as águas estupidamente azuis da costa amalfitana que tenho diante de meus olhos. As vielas mal iluminadas que começam a ser demolidas para que uma cidade mais arejada brote em seu lugar, ruelas que quase sempre não cheiram bem, agora, misturam-se com esse mar que é quase céu. Cheiro e imagens se fundem, e se conseguisse nesse instante voltar a Paris, talvez sentisse lá o odor marinho. Mas o que vejo aqui é esse cheiro de esgoto seco, e ouço o marulhar dos cansados prédios medievais desenterrando suas pedras de dentro do azul feito de ondas. Misturo as estátuas em mármore que formam moldura ao oceano, e que antes de completarem o quadro ainda permitem que margaridas tragam seu amarelos para a cena, misturo elas a outra mistura: a mais bela moça que jamais vi, descia de uma carruagem na Avenida Champs-Élysée, coberta por uma sombrinha, vestido volumoso em cor de cereja pálida, assim que pisou o chão, por descuido, enfiou um dos pés em um monte úmido de esterco de cavalo.     
                                                     
Os detritos engoliram-lhe o sapato e molharam até a barra de seu vestido. Ela franziu o cenho, e creio que isso apenas sublinhou a beleza que já possuía, mostrando como ela, a beleza, não era algo fixo, cravado em telas sem movimento, mas sim parte da vida, que se move, e por isso derrete. A cena inteira não durou mais do que dois segundos, e logo o movimento de minha carruagem a colocou fora de meu campo de visão. Agora ela renasce aqui, na mesa de meu café, de onde vejo estátuas de mármore, margaridas e o azul feito mar. Talvez quem fez a moça renascer tenha sido um pescador, que acabou de entrar no café com um arpão onde estava atravessado um ouriço do mar. Ele, com um sorriso estampado no rosto bronzeado, retira o ouriço e o coloca na mesa vizinha a minha. Então naquele dialeto feito de vogais e sons agressivos, parece iniciar uma negociação de venda com o dono do estabelecimento.    
                                                                                     
Há alguma beleza naquele ser ainda mexendo seus espinhos, mas mortalmente atravessado pelo arpão, ela escorre pelas gotas de água salgada molhando a mesa de madeira escura, e que se misturam com um líquido que vem de dentro do animal. Há ainda o som, os gestos, a pele, os rasgos azulados que aparecem para onde quer que olhe, a beleza puxou os fios da meada e olhando-se no espelho, desejou conhecer a própria origem, então descobriu que a moça que pisou no esterco era uma de suas antepassadas. E então, indecisa entre procurar por ancestrais mais distantes, ou descobrir as consequências futuras de sua existência, é arrastada para o presente quando o dono do café pega nas mãos o ouriço ferido de morte, e segurando em seus espinhos, o levanta, deixando a mostra suas partes pudicas, por onde uma torrente visguenta de cor indefinida, mistura suas estranhas tonalidades com o sempre presente azul insuportável vindo do mar, e que agora começava a ser copiado também pelo céu.      
                              
O dono do café entrega ao pescador duas notas avermelhadas e leva o animal para a cozinha. Gotas de seus restos ainda permanecem sobre a mesa, e nem são percebidos pelo próximo freguês. O azul unanime perde suas forças e, na altura do horizonte, é invadido por laranjeiras carregadas, que parecem orgulhosas de seus frutos feitos de luz, nascidos para manchar fronteiras. Dentro de minha xícara de café enxergo o reflexo da mais bela moça que jamais vi, então sinto o gosto da bebida, que parece levemente contaminado pelo sabor do esterco de cavalo em que ela pisou. Transfiro sua figura para perto das laranjeiras, que agora espalharam sua cor, expulsando de lá o azul, bolas de fogo feitas do efêmero, e que nesse instante de maturidade cantam suas notas mais melódicas.  
                                    
A moça colhe uma laranja, e então se volta em minha direção. Nossos olhares se cruzam, e antes de me perder nos dois poços violeta com que me mira, reparo que a barra de seu vestido ainda tem uma mancha de esterco. E assim como aconteceu com o azul, engolido pelo alaranjado, ele é também dissolvido por dentes escuros que diminuem as certezas de existir de tudo aquilo que anteriormente, iluminado pelo sol, brilhava orgulhoso por distinguir-se do nada. Seus olhos me arrastam enquanto tudo ao redor desaparece, sinto o gosto do açúcar no fundo da xícara de café. O esterco sumiu, junto com os olhos violeta, a dona do vestido manchado, e o dia.
                                                                                       
Deixo uma moeda sobre a mesa, mas logo me arrependo, prefiro pagar no balcão, pois lá existe um espelho onde conseguirei me certificar de que não acompanhei aqueles que se foram. 
                                                                                                       
Sem que me atentasse, uma lua cheia, vinda de não sei onde, maculava a escuridão com seu otimismo embranquecido. Assisti ao espetáculo procurando conferir se o ente que flutuava no mar era, de fato, reflexo do astro, ou uma figura com independência, nascida de outros pais. Não cheguei a veredictos.  
                             
Encontrei um banco onde consegui ter paz para admirar a mancha branca, que parecia alheia a tudo, até a si mesma. Contemplei-a por uma boa hora, a obra parecia tão bem acabada que esqueci da moldura que a envolvia, as estátuas em mármore e o pequeno campo de margaridas que agora repousava seus amarelos, retirados parcialmente do descanso pleno pela luz prateada que vinha do céu. A mancha esbranquiçada era uma afirmação completa, a ela nenhuma palavra poderia ser adicionada, nenhuma sombra extraída, molduras eram inúteis. 
                       
Caminhei para casa buscando evitar qualquer conclusão, fui acompanhado por um brilho branco que não apenas iluminava meu caminho, mas parecia haver sido transferido para dentro de mim. Uma força estranha que se movia com a certeza de ondas nervosas, e espalhava espumas por onde passava. A paz era violenta. Fato que acabava relativizando todo o resto. As conclusões afiguravam-se como precipícios escuros, mas as ondas que quebravam-se sobre mim, e que pareciam ser uma força oposta aos precipícios, faziam de tudo para que eu desaparecesse dentro de um buraco cheio de certezas. Percebi que o caminho era evitar quaisquer justificativas, explicações, e apenas prosseguir suportando a força do mar.                                                                                                                                    
Depois de caminhar bastante, e quando me aproximava de nosso hotel, decidi que ainda não era hora de dormir. O mar havia acalmado e os precipícios desaparecido, não havia mais riscos de conclusões e o céu claro e estrelado prometia que de lá não cairiam dogmas. Então naqueles instantes de paz, eu apenas fui. Ou melhor, estou sendo. Tão distante das memórias quanto dos desejos, mergulhado em um tempo que são todos, que sem nada excluir, desiste de um ponto de vista único, pois sou tanto o velho prestes a fechar os olhos, quanto o recém-nascido que acabou de abri-los pela primeira vez. Vasculho os mais inusitados cantos do universo com olhos alheios, pois sou eles, e não há deus acima ou outro ser que esteja abaixo de mim.                                                                         
Sou todos, mas possuo apenas um corpo, e essa é a grande questão humana. Na batalha que se inicia com o nascimento, a infância aceita os muitos dentro de um, mas assim que ela vai embora, os membros começam a enrijecer, e o corpo expulsa olhos e desejos alheios. O homem vai sendo amarrado dentro de sua morada, que cada vez mais confunde-se com seu próprio ser. A consciência também amalgama-se a essa substância rígida, que engloba todos os aspectos do existir. O tempo encarrega-se de ajustar discrepâncias, diminuindo olhares oblíquos e outros reflexos não previstos, e prepara o homem para ser apenas um corpo completo, perfeitamente ajustado a sua consciência.
                                                          
O homem que luta para permanecer muitos será coberto de glórias. E essa é a única conclusão a que me permito chegar. Mesmo que sua batalha seja condenada ao fracasso. O fracasso amplia caminhos e bifurca-se em um número maior de estradas do que o sucesso. E essa segunda conclusão é a prova de meu fracasso, pois garanti que queria mais do que tudo me afastar delas. E se o fracasso, no fundo, oferece mais possibilidades que o sucesso, que normalmente o condena a caminhar por uma estrada única, não seria ele o verdadeiro sucesso? 
                                
O homem precisa saber se equilibrar sobre a lâmina afiada da dúvida, e deve fazer isso olhando para um horizonte sem referências, feito de nuvens que se movem impulsionadas pela força do acaso. Sinto o cheiro salgado vindo do oceano, sou cada peixe que nada desprovido de dúvidas, mas também os peixes que imagino, e que se perguntam o que existe e como funciona o mundo difuso que sabem que existe além dos limites de seu mundo aquoso. Sou a curiosidade e o medo, cascos de barcos e navios, redes e varas de pesca, como responder sobre o desaparecimento de seus semelhantes, quais as intenções daqueles que não habitam a mesma dimensão? Então me transformo no suspiro originado pelo mistério que continua aceso como brasa de vulcão. Um grito engolido, o mesmo de Michelangelo, quando após concluir seu David, alegra-se com o feito, para então, perceber que poderia ter ido ainda mais longe, percorrido outras estradas que se ofereciam, e que provavelmente consumiriam o resto de seus anos, e nem assim conseguiria concluir a estátua, mas eram caminhos novos, possíveis e grandiosos, e que foram desperdiçados, para que a estátua pudesse finalmente ser concluída. Não há grande artista que não tenha sua boca manchada pelo mais purulento amargor.   
                                                                                                                                      
Aprendi a ler essa tristeza nos olhos dos paisagistas da praça São Marcos em Veneza. Depois de extinto o fogo, sobravam tocos de carvão levantando fumaça escura, assopros pesados que decantavam suas ardências dentro das íris dos artistas. Nunca contentes, sempre incompletos. Elegendo suas melhores virtudes e comparando-as com as de seus companheiros de desafio, orgulhando-se de vantagens e desprezando deficiências, esquecendo-se de que há infinidades e possibilidades abertas, para então extrair tudo o que não é claro, e apenas repetir o que dá certo. Mas dentre esses muitos copiadores, havia alguns que desejavam ventilar o carvão que dormia dentro de seus olhos, e eventualmente, após muitas tentativas, uma brasa avermelhada renascia, e se fosse alimentada com cuidado, poderia incendiar Veneza inteira.  
                                                                              
Veneza foi poupada de grandes incêndios, mesmo assim alguns daqueles pintores realizaram obras vivas, como o ouriço-do-mar movendo seus espinhos sobre a mesa do café, e sendo mais vivo por alguns instantes do que quando vivia tranquilamente no fundo do mar. Nesse já longo período dessa viagem de aprendizado, percebi que a arte existe para representar a vida, e se torna grande à medida em que há ali muita vida representada. A paisagem não precisa retratar pessoas, plantas, ou animais, para demonstrar que dali brota vida. Paredes, rochas, um céu sem pássaros e um horizonte deserto podem ou não conter vida. A tela é o suporte sobre onde o pintor espalha suas tintas, mas a paisagem pode ser o suporte onde a alma do pintor espalha parte de si. Entrega ao mundo um de seus dedos, para que outros saibam o que são dedos. 
                                                                               
Encontro no chão mais uma das muitas mulheres rachadas ao meio por Cunningham, isso sempre indica proximidade com nosso local de morada. Sob a carruagem sem cavalos encontro outro desse entalhes destruídos, e ouço o ronco monumental desse homem misterioso. Antes de dormir anoto em um caderno algumas de minhas ideias, coisas que vi, outras das quais suspeito. Alivio-me de certas angústias fazendo com que a fila ande, novas inquietações me contaminem e acabem atravessando a fronteira que separa a vigília do sono. Sonho com mundos inteiramente esculpidos em mármore, ou então que a vida toda, em todas suas incontáveis manifestações, está contida dentro de um imenso palácio renascentista, decorado não por quadros, esculturas, tapeçarias ou móveis refinados, mas sim por pedaços vivos de homens, peixes e líquens. Há tanta glória espalhada pelo mundo, mas possuímos apenas dois braços para colhê-las. Outra demonstração da incompletude humana, enchemos nossos braços com belezas, mas à medida em que avançamos, descobrimos novas belezas ainda mais fulgurantes, então abandonamos as primeiras e não conseguimos suportar o peso daquilo que nos encantou. Quando chegamos ao destino final estamos de mãos vazias e peito oco. As glórias talvez não existam para serem possuídas por indivíduos, elas podem, no máximo, serem contempladas, aspiramos o ar que as circunda e isso já nos é suficiente. Qualquer tentativa de aprisionamento acaba arrancando a substância que mantém viva a glória, e o que sobra para o homem é o peso morto daquilo que apenas aparenta estar vivo.    
                                                                                                   
Deitado em minha cama enxergo o mar escurecido e a lua, que agora, desse ponto de vista, parece apenas a lua refletida nas águas do oceano. Percebo que aquela pessoa de meia hora atrás já não mais existe, sou outro, e carrego em meus braços novas preciosidades. Um sopro adocicado pelo verão que se aproxima balança as cortinas de minha janela. Um convite. Aceito. A cidade dorme e apenas uma casa está acesa e dela se levanta um filete de fumaça. Talvez uma padaria. Acompanho com os olhos o caminho difuso da fumaça que se perde entre as nuvens noturnas A vida parece nunca deixar de acontecer, são apenas nossos olhos que no escuro, não enxergam suas manifestações. Desejaria mais braços e olhos, outros narizes e orelhas, uma pele que pudesse sentir todos os afagos do mundo, um paladar que nesse e em qualquer outro instante, experimentasse o pão que ainda está sendo assado. Desejaria lágrimas grossas como lagoas, lágrimas que choveriam sobre mundos, apagando incêndios e inundando vidas. Sou uma máquina de desejar, e como não há, de fato, tempo, o sintoma dessa minha condição, é que sou jovem no instante em que percebo aquilo que sou.
                        
Aos poucos a brisa assopra nuvens que se agrupam e são rasgadas por um relâmpago silencioso, ao longe, o horizonte, cansado de ser paz, dá vasão a mais vida caída do céu. Os odores mudam, e a brisa que invade meu quarto é feita de jasmim e mar. Meus desejos diminuem, pois a satisfação que sinto se mistura ao sono, o mundo parece adocicado e se estendesse minhas mãos na direção do horizonte, tenho a sensação de que elas ficariam grudadas na paisagem que enxergo. Sinto calores pelo rosto, que avançam na direção do peito. Em uma última olhada pela janela percebo as grossas gotas que começaram a cair. Elas pertencem a um mundo que já não é o meu. E quando acordar pela manhã, e o chão ainda estiver úmido, eu pertencerei a um mundo que já não será mais o delas. 
       
Sou mudança, e tudo que mora em mim também o é. Portanto nada do que digo ou penso possui raízes fundas. Sou também a tempestade que me arranca do chão, e a poça d’água que sobrará de seu furor, sou ainda a terra paciente que sorve tudo o que não se movimenta. Sou as luzes e suas sombras.  
                          
Não quero, é difícil, ser tanto é tão pesado, sobretudo porque a eternidade precisa entrar em mim através de buracos estreitos, os sentidos são minha única ferramenta de compreensão, e mesmo a imaginação possui limites. Mas ser também implica em não ser, e essa força minúscula que está ao meu alcance, é a resultante desse embate. Somos todos filhos da eternidade e do nada, e de cada um de nossos genitores herdamos características genéticas, e sempre nos rebelamos contra aquele lado que para nossa feitura contribuiu com a menor parte. Mas essa rebelião é como uma onda que se quebra na praia e depois é arrastada novamente para dentro do mar, então nossa revolta atinge também nossa camada majoritária. Somos contra tudo o que existe, em razão de sua existência, e contra tudo aquilo que não existe, porque falta ali o existir.
                                                                  
As águas azuis do Lago Maggiore existiram, e existem novamente porque uma memória vem à tona. Aquilo que não mais é, compete com o que foi e vive em memória, mas a mistura é ainda mais complexa, pois existem também as águas do Lago Maggiore que foram e sumiram, que não pertencem a qualquer memória, mas que talvez se escondam dentro de uma memória do universo, que de nada se esquece. Como pingos de água manchando a superfície de um rio, como essa cena corriqueira, sem testemunhas, acontecendo, volta-me o instante em que olhava para as pás circulares que movia nosso barco que acabava de deixar o ancoradouro em Locarno. Um fascínio hipnótico transformou-me naquela roda com pás, que impulsionada pelo motor a vapor, movia o barco. O círculo é a maior e a mais eficiente das armadilhas, e ele pode assumir várias formas e servir a muitos propósitos.
                                                                                                                         
Fui liberto de minha prisão pela ansiosa mão de Waterfall, que tocou meu ombro interessada em meus ouvidos, a palestra sobre como o Império Romano estabelece-se naquela região da Europa durou uma hora, e enquanto o escutava procurava desviar os olhos de sua figura em busca das maravilhosas paisagens que cercavam o lago. Percebi que isso o incomodava, e ele sempre voltava a se posicionar de maneira que tudo que enxergasse fosse sua figura encurvada e amarela. Finalmente cedi, deixei que descarregasse a montanha de informações, e fingi que minhas orelhas tudo devoravam, mas eu estava longe. Com o canto dos olhos captava retalhos azuis das águas, e com eles me nutria, viajava longe, imaginava se em algum lugar do planeta existiria um lugar ideal. Onde não apenas a beleza, ou as oportunidades abundassem, mas um lugar onde me sentisse pleno, um local onde o meio-ambiente se transformasse no substrato de meu bem-estar, e onde tudo o que gosto e desejo estivesse lá. Então não pude deixar de sorrir quando mentalmente pronunciei uma frase que soou bastante piegas: “Um lugar onde morasse a felicidade”.
                                                                                                                    
Waterfall continuava despejando sobre mim a torrente romana da qual eventualmente pescava algumas palavras “Tertuliano, Aníbal, Guerras Púnicas”. Mantive minha coluna ereta, e a cabeça na direção do infatigável palestrante, mesmo assim viajava, agora me perguntava se esse desejo por algum hipotético lugar paradisíaco, não seria apenas minha vontade de ser feliz se manifestando? E afinal de contas, se isso fosse verdade, que mal teria? Depois de bastante refletir cheguei à conclusão de que havia sim um mal nesse desejo. Pois eu ambicionava algo que desconhecia. O que era, afinal, a felicidade? Não tinha certeza se era isso que desejava para mim, pois a imagem mais próxima que conseguia construir de um mundo feliz, era um ambiente mergulhado em uma paz duradoura que imobiliza tanto desejos quanto inquietações. E a última coisa que queria era deixar de perguntar sobre aquilo que desconhecia. 
                                                                      
Então esbocei um sorriso que pareceu despertar curiosidade em Waterfall, mas ele prosseguiu com sua palestra sem me perguntar sobre o que havia de engraçado naquilo que narrava. O sorriso se originara de uma decisão que acabara de tomar, e que pareceu extrair um imenso peso de meus ombros: pelo menos enquanto raiassem em mim as chamas da juventude, procuraria me afastar da busca pela felicidade. Quando finalmente meus passos perdessem segurança, e meus cabelos aceitassem as cores de uma lua prateada, nesses dias longínquos eu então poderia me entregar a essa e a outras fraquezas. Essa constatação sobre a velhice fez com que sorrisse novamente, um estado de alegria, talvez a porta de entrada da felicidade. Dessa vez Waterfall irritou-se e me perguntou o que havia de engraçado naquilo que dizia. Tive de ser rápido; “Rio das bobagens que outros professores me disseram sobre o Império Romano e que agora vejo que são inverdades.” Ele pareceu engolir minha desculpa, e percebi que teve de fazer força para conter um sorriso de satisfação. 
                                                                                       
A embarcação passou próximo de três pequenas ilhas para finalmente atracar no pequeno porto de Stresa. O dia se aproximava do fim, e vigorosos tons de alaranjado se misturavam às aguas azuis do lago Maggiore, a mistura de cores era rasgada pela presença das três pequenas ilhas, nas quais pelo menos em uma delas consegui distinguir belas construções que me chamaram a atenção. Waterfall apressou-me, amanhã teríamos todo o tempo do mundo para visitar as Ilhas Borromeu. Instalamo-nos em um hotel onde esperaríamos por Cunningham por pelo menos três dias, já que ele havia tomado outro caminho em Locarno por causa da carruagem, e nos encontraria em Stresa.  
                                                                             
Após o jantar Waterfall me perguntou se gostaria de ouvir sua palestra sobre as Ilhas Borromeu, ou preferia descansar e ouvi-la pela manhã. Disse que estava cansado e ouviria antes de partirmos pela manhã. Menti. Não estava cansado, na verdade sentia-me mais forte do que nunca, bem disposto, sem sono e com muita vontade de explorar a pequena cidade, que logo de cara foi eleita por mim como o lugar mais silencioso que jamais conhecera. O único ruído era o da marola das águas do lago, mesmo a brisa que soprava parecia não deixar qualquer rastro sonoro. O vilarejo era rodeado por montanhas que, de acordo com um arroubo poético que me invadiu naquele instante “pareciam proteger Stresa da eternidade”, pois depois delas havia o céu mais estrelado que já conheci. Afora isso era eu, manchando com os ruídos de meus sapatos as pedras rústicas do calçamento, eu, essa frágil consciência curiosa, que assim como as perecíveis chamas responsáveis pela iluminação pública, desafiávamos a escuridão e o esquecimento.  
                                                                                                                           
Subi até um ponto onde conseguia enxergar toda a cidade, o lago e as montanhas. Respirei o ar puro e mergulhei no oceano de estrelas que pareciam tão jovens quanto eu. Deitei-me na relva para que meu campo de visão fosse coberto inteiramente por elas. Nesse instante uma sensação estranha me envolveu, não demorei a identificá-la: era uma onda de felicidade. Lembrei-me de meu pacto, e minha primeira ação foi um sorriso. Aquilo já havia ficado para trás, eu usufruí da felicidade até que sua última gota pingou sobre mim. Então ela finalmente foi embora, e pareceu haver levado consigo parte do brilho que vinha do céu.  
                     
Sou tão volúvel que nada brotará em minhas terras. Um condenado à aridez, frágil presa para forças superiores às minhas. Depois de alguns instantes de silêncios mentais, um novo arroubo, dessa vez filosófico “vivemos para o prazer, essa é a mais estabelecida das leis humanas”. Da mesma forma que havia acontecido com o arroubo poético, senti-me frustrado com minha conclusão filosófica, talvez possuísse um vigor juvenil, mas era frágil, viscosa, feita para grudar em mentes desavisadas. De qualquer maneira a juventude que em mim habitava continuava sendo a advogada que me eximia das culpas mais grosseiras. 
                                 
Mas esse perpétuo Habeas Corpus estava com os dias contados, e logo precisaria responder, entre outros, pelo crime de ser o exato contrário de meus desejos. Percebi que nada no mundo, ou na vida, eram dignos de confiança, e eu como fazia parte deles, também não merecia esse crédito. A noite me pareceu pálida, e as estrelas luzes fugazes prontas para serem assopradas. O silêncio pingou dentro de mim, e logo meus nervos sentiram-se molhados. Caminhei na direção do hotel, mas sabia que se tentasse dormir imediatamente, o que me esperava seria uma noite em claro.
                                                                                                          
Sentei-me à beira do cais encarando os contornos escuros das Ilhas Borromeo, que pareciam ansiosas pela luz que revelaria suas maravilhas. Mas por enquanto elas apenas sonhavam com novas manhãs repletas de elogios. Acima delas pairavam os contornos acinzentados da neve em seu repouso eterno, manchas inúteis, e que um dia, apesar de serem eternas para meus olhos, também seriam lambidas pela língua sedenta do tempo. Também essas águas escuras que agora sussurravam suas verdades simbólicas, secariam, arrastando consigo todas as vidas que delas dependem. O inevitável vinha carregado do trágico e do pacífico. 
                  
Reduzi a velocidade de meu raciocínio, uma estranha sensação estava por toda parte. Senti-me observado por muitos olhos. Mas não me importei, eles parecem que sempre estiveram ali. São a vida. Mas eles deram origem a outra vida. Um raciocínio luminoso que serpenteava no escuro como um riacho que, além de refletir o luar, existe dentro do mais puro silêncio.  
                                                                   
Possuo dois olhos, e eles são minhas ferramentas de percepção da realidade. Se quiser percebê-la de maneira mais ampla, precisarei de mais olhos. Tenho de fazer com que brotem em meu rosto, sobre meu peito e em minhas costas, posso também cultivá-los longe de meu corpo, olhos capazes de perceber mundos evidentes, e por isso mesmo, ocultos. Preciso de novos olhos, essa talvez seja a mais importante conclusão a que me conduziu esse Grand Tour. Mas não basta possuí-los, é preciso integrá-los. Tomemos um objeto, uma cadeira por exemplo, uma miríade de olhos pode espalhar pelo universo, pontos de vista distintos sobre ela, mas essa tantas imagens de nada servirão se não ajudarem na compreensão do fenômeno cadeira. Olhos são, portanto, ferramentas da consciência, mas ela, a consciência, ao contrário do que possa parecer, não possui uma localização fixa. Está em muitos e em nenhum lugar, atravessa vastidões sem que nada nela seja consumido. Ela também não sofre as corrosões do tempo, pois assim que ele pousa sobre sua pele, e finca seus tentáculos, ela se desfaz do pedaço que foi comprometido, transformando-se em outra maneira de ser consciente. 
                          
Portanto, os olhos, se desejarem ser úteis, devem acompanhar a dinâmica da consciência, devem ser fluidos, inesperados, olhos-poema, feitos para refletir e desaparecer.
                                                                                                                                   
E agora fecho os meus, que minhas percepções descubram luzes escondidas além do horizonte, que encontrem em outros mundos, símbolos raiando dentro de retinas de pessoas que se reconhecem sem jamais haver se visto antes. Que eclodam de dentro de anônimas bolhas de ar que vem à tona no meio do oceano, mas que também sejam o suspiro daquele que perdeu as esperanças, e a mão leprosa que percorre as feridas do corpo, que seja todo o não contido dentro de cada sim, e que também seja espelho e suas muitas imagens sem verdade.  
                            
Então suspiro, expulso o ar que sopra em meu rosto, imagino que nesse instante escuro muitos olhos vagam ao meu redor, todos curiosos, buscando em mim aquilo que duvidam sobre si mesmos. Aceito-os, entrego-me, sou aquilo que desejarem, esvazio-me de qualquer conteúdo transformando-me em nada, naquilo que jamais foi imaginado, mas, simultaneamente, sou o universo inteiro, e também tudo aquilo que possa vir a existir. Então, agora, sou em quem observo, espalho meus pontos de vista e encaro o único ser em todo o universo, que não sou eu, é um objeto curioso, um olho. Tão escuro quanto o nada, e que parece pronto para absorver tudo aquilo que dele ousar se aproximar. Coragem, sei que esse é seu momento.                                                                                                                                   
Aos poucos meus muitos olhos são arrancados, a força que vem do olho escuro parece ser sinônima de inevitável, meu campo de visão vai gradualmente diminuindo até que só o que enxergo seja o escuro do olho que parece controlar todas as forças. Mas então algo estranho acontece, enxergo minha imagem refletida em sua retina invisível, e assim como ele, sou um olho escuro, que além de ser sugado em sua direção, arrasto-o na minha. O inevitável choque acontece.  
                
Abro meus olhos e ainda estou à beira do Lago Maggiore, nesse instante sou a única consciência desperta em Stresa, uma consciência que trabalha por todas as outras imaginando como se deu, dá, ou dará, o nascimento do nosso e de muitos outros universos que ainda poderão existir. As montanhas que me cercam pesam sobre meus ombros, mas não me desespero com o fardo, preciso aceitar que meus ossos são temporários, e que eu, do jeito que me conheço, sou apenas uma circunstância, um ponto de vista que se modificará, até um dia se transformar no oposto do que sou. 
                                                                                                             
Está tarde, e preciso voltar para o hotel, mas antes disso faço um último experimento mental, imagino a vida enxergada através de olhos muito diferentes dos meus, velhos, mulheres, crianças, pessoas dos quatro cantos do mundo e de todas as classes sociais. Pessoas sem esperanças ou então transbordando delas, entediadas, ou encantadas com cada novo dia, homens estranhos como flores na escuridão, ou evidentes como a luz que acompanha o sol. Mulheres cujas almas são depósitos abandonados, e outras, que são máquinas de transformar vidas. Pessoas comuns de todos os tamanhos, algumas orgulhosas de assim ser, e outras que procuram esconder atrás de alguma glória perecível, sua normalidade atávica. 
              
Nesse instante sou todos, os que comemoram, os que morrem, e aqueles que dormem, sinto frio, calor, e me protejo da chuva, tenho a força da juventude e o cuidado do idoso que caminha sobre pedras irregulares. Sou o recém-nascido descobrindo formas e experimentando o tato, sou todos, os que lamentam, os que esperam, os ansiosos e os preguiçosos, sou o jovem poeta tentando arrancar da lua cheia verdades só suas, e também o poeta envelhecido, que reclama com seus versos sobre um mundo que desejou, mas nunca conheceu.
                                        
Abro nossos muitos olhos e, simultaneamente, absorvo cada um desses mundos individuais, todos perfeitamente certeiros de si, flechas voando na direção de um único alvo. Assimilo a miríade em que me transformei e derramo oceanos de lágrimas em solidariedade a todos aqueles que não sou eu. Compreendo dores e desculpo invejas, nada me é estranho porque tudo o que vejo é humano. Aceito olhares mesquinhos sem buscar por justiça, ela é inútil. Enxergo o mal sendo perpetrado e meu coração se enternece pelos pobres vilões, são eles as maiores vítimas de suas atitudes. Depois percebo a pureza brotando como flores e então manchando o chão com suas cores efêmeras. Cores que para outros olhos, mereciam viver para sempre, olhos esses ricos em luzes, que por vezes ofuscam uma percepção geral da realidade.
                                                                                             
Hora de fechar olhos alheios e sentir o ar puro e frio que desce das montanhas. O mundo dorme, e pede incessantemente para que o acompanhe nessa aventura.



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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