Entre ave e réptil
interessa-me
entre ave e réptil
a condição
ambígua
confesso meu
fascínio por
essa corda estendida
entre uma e outra
palavra
e sua falsa noção
de equilíbrio
trago na raiz
do gesto o alvoroço
do circo
nervo reteso
lanço-me no ar
risco a
superfície do inútil — e voo!
por vezes
uma palavra mais ágil
me subtrai
do precipício
mas quase sempre
me esborracho
no chão
em meu voo solo
sem tambor nem
auxílio
reconfirmado
sísifo
— amador de seu ofício —
alço-me outra vez
ao risco dos trapézios
A caça insubmissa
nada possuis do outro
nem corpo nem asa
nem mesmo o sopro
morno da palavra
teu é apenas o perfume
de carne e cedro
que aspiras na pele
da caça insubmissa
nada é teu: dorme
e inventa no sonho
outra forma de laço
caça sem caçador
Alma de relógio (2)
É na mudança que as coisas
acham repouso.
(Heráclito)
não dormes:
teu único
repouso
é descobrir-te
em cada momento
sempre
desigual a
ti mesmo
Baobá
Vontade de fazer
uma coisa grande
de futuro imenso:
plantar um pé
de jacarandá
um baobá
e deixá-lo aí
para beijar
a cumeeira
dos séculos,
zombar de tudo
que é breve
e que, como nós,
se consome
no atrito das
horas, na
vertigem
incontrolável
das coisas miúdas.
Heraclitiano
na segunda chicotada
você já é outro
— não importa o lado
do chicote
Pássaro de vidro (3)
o pássaro é cego
e cego é quem
se agita
em seu espaço
ambíguo
esse espaço
de incessante
tarde nua
onde o voo
risca um traço
branco
de vidro no vidro
Margarida
na margarida
do relógio
desfolho
uma a uma
as pétalas do dia
nesse jogo
de sal e saibro
toda pétala
a mais é
vida a menos
e toda flor
malmequer
A mulher sem nome
Estátua de sal
rosto chamuscado
pelo fogo de Sodoma.
O que desejavas
ao olhar para trás?
Tiveste saudade
de tua casa, nostalgia
das flores de teu
pomar ou, curiosa,
apenas quiseste saber?
Um gesto apenas
– e a implacável
execração dos séculos.
Nem os escribas do livro
nem os doutores da lei
– todos varões
e medrosos –
ousaram dizer teu nome.
Certo
as coisas não dão certo
nunca deram certo
não foram feitas para dar certo
nós é que temos a ambição
do alinhamento e da simetria
e até inventamos deuses perfeitos
construídos à imagem
e semelhança do que sonhamos
as coisas não dão certo
nós é que cerzimos o pano
obturamos o dente
remendamos a fronteira no mapa
e inauguramos
na estátua de chumbo
um simulacro de ave
queremos crer
que as coisas dão certo
as coisas agora estão dando certo
e — se deus quiser —
sempre darão
Ponto final
O mundo acaba? Talvez sim.
Porém não como supõem
poetas e profetas. Quem
treme de medo diante dos
círculos infernais de Dante;
quem teme as trombetas
do Apocalipse; quem geme
de pânico ao pensar nas geenas
e nos seres estrambóticos
de Hieronymus Bosch. Não,
a ciência é mais sutil e cruel.
Nenhum temor ou tremor
pressupõe o que pode vir
das sinistras conjecturas
dos cosmólogos. Nem água
nem fogo nem horror dantesco.
Colapso universal e absurdo.
O Big Bang ao avesso.
Todas as dimensões contraídas
num ponto único. Ponto
monstruosamente final.
Ilustrações: Alina Citas
Carlos Machado (Bahia-Brasil, 1951) é poeta e jornalista. Cursou engenharia mecânica na UFBA e, em São Paulo, fez jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou em diversos órgãos de imprensa, como os jornais Movimento e Leia Livros e as revistas Ciência Ilustrada, Quatro Rodas, Exame e Info Exame. Edita o site Alguma Poesia (www.algumapoesia.com.br), que completou 18 anos em 2021. Edita também o boletim quinzenal Poesia.net no Facebook. Autor dos livros A mulher de Ló (2018), Tesoura cega (2015) e Pássaro de vidro (2006). Publicou também o livro de poemas para crianças chamado Cada bicho com seu capricho (2015).
Respostas de 8
Lindas palavras! Parabéns!
Uma coleção de poemas que miram a discussão dos temas mais abrangentes ao ser humano. Silenciados, temporariamente, pela luta pela sobrevivência e pelo medo da peste desconhecida. Mesclado ao pano de fundo mitológico, emergem as indagações tão profundas e antigas como a humanidade. Parabéns!
Excelentes poemas. Parabéns, mestre…
Feliz aniversário, Carlos. Muito obrigada pela pessoa gentil que você é. Abraço
Excelentes poemas. Parabéns, mestre…
O Ricardo Mainieri disse muito do que também sinto diante desses poemas do meu amigo Machado. Sim, questões "tão profundas e antigas como a humanidade". O homem é o mito que sonha diante do "ponto monstruosamente final". Parabéns, Machado, pelos poemas e pelas primaveras vividas.
Belos poemas!
Imensidão de beleza! Parabéns, querido Carlos Machado! Sempre, sempre! ❤🙌🏼🙏🏼