Coluna Guido Viaro: Grand Tour/Capítulo 5

Ilustração: Mihály Munkácsy


Quando o relógio dos séculos badalou quinze vezes a beleza despertou de sua tumba. Durante a décima sexta badalada, ela, a beleza, passeou seus olhos de mármore por um mundo que, além de desejar ser belo, precisava também se organizar para usufruir dos prazeres renascidos. Essa foi a história do século 16, mas também a das Ilhas Borromeu, uma série de rochedos que nessa época foram aterrados para que o belo pudesse ali ser semeado. Mas aquilo era também uma demonstração de poder. Pela primeira vez na história, esse tipo de demonstração não precisaria ser exercido através da força bruta, mas com jardins harmônicos e palácios suntuosos decorados com o melhor da arte da época, tudo compondo com a paisagem ao redor, um panorama que constrói cenário digno daqueles raros sonhos que nos marcam para sempre. 
                                                                           
A Palestra de Waterfall foi surpreendentemente curta, e respeitou o meu desejo, e provavelmente o dele também, de mergulhar na beleza sem que ela precisasse ser explicada ou justificada. Sobre as asas abertas de um pavão branco, enxergava o pavilhão decorado da Ilha Bela, uma estrutura que mistura vegetação com arquitetura e que parece falar a língua do oriente, minaretes desafiando o azul do céu, e rasgando as águas quase verdes do Lago Maggiore. Depois as esculturas em mármore cobertas por um limo que servia de vestimenta para os corpos, roupas feitas de séculos. 
                                                                                                               
Depois de visitarmos o palácio principal e ouvir sobre a obra de alguns dos pintores que decoravam as paredes, combinamos um tempo livre e nos encontrarmos no ancoradouro, após o pôr-do-sol, para pegarmos o último barco para Stresa. Agradeci pela liberdade de poder apreciar sozinho aquele lugar, ele sorriu e percebi que aquele não era nenhum favor que me fazia, ele mesmo desejava a solidão para melhor usufruir da beleza, mesmo assim tentou justificar “Após uma refeição exuberante como essa, precisamos de tempo para a digestão.”  

Atravessei a pequena ilha e descobri um lugar onde além de não ser perturbado por ele ou por qualquer outro visitante, teria uma bela vista da ilha e do lago. Meus únicos companheiros seria faisões coloridos que caminhavam preguiçosamente buscando miudezas para comer por entre as folhas de relva. Eles mesmos, por suas cores, e pelo desenho de seus corpos, eram pedaços de beleza que se moviam. O que movera a família Borromeu e tantos outros homens poderosos a buscar desesperadamente pelo belo no início do século 16? A Renascença indicava que o homem movia-se para o centro do universo, a Igreja perdia poder, os Estados moldavam-se, as economias organizavam-se. O dinheiro começava a pesar sobre os ombros daqueles que o possuía em grande quantidade. Era preciso que o dinheiro significasse algo, que não fosse apenas uma maneira de exercer alguns dos pecados, como ganância e inveja. Nascia uma moral que, se não era religiosa, e de fato, se orgulhava de não sê-lo, possuía em seu interior, muito da substância religiosa que comandara o mundo nos últimos mil anos.   
                              
O homem do século 16, principalmente os poderosos, moldavam essa nova moral, que não os afastava do Deus poderoso judaico-cristão, mas sim das agruras e sofrimentos da Idade-Média, da falta de comida ou da alimentação pobre, das violências religiosas ou que tiveram como origem a religião, da sujeira, da falta de higiene, do despotismo de tiranos, das guerras e todas suas consequências. Esses homens, ao contrário, desejavam a estabilidade, a harmonia, a certeza de que deveriam haver algumas regras que sempre seriam cumpridas. Que Deus permanecesse em seu lugar, ocupando-se do inevitável, e encoberto pelo manto da invisibilidade, essa autoridade jamais seria contestada, mas o mundo palpável pertencia aos homens, e eles desejavam uma vida diferente da de seus antepassados, a lama malcheirosa deveria ser substituída por jardins suntuosos, a angústia diuturna pela sobrevivência, deveria dar lugar a uma paz de espírito, espaços vagos que existiam pela primeira vez na história da humanidade.  
             
Os mecenas flertavam com a eternidade, que seria diferente da de seus antepassados, riquezas e poder acumulados que facilmente mudariam de mãos. A deles era feita de poder, mas também de uma substância menos volátil, o conhecimento, a cultura, que escorreriam pelas décadas como olhos d’água ansiosos, até se juntarem a um córrego que, para os padrões humanos era bastante caudaloso, e que se chamava séculos. Riacho em cujas margens nascia o que ficou conhecido como civilização. Tudo isso passara a acontecer com muito menos derramamento de sangue. As vaidades não precisavam mais dele para se nutrir, alimentavam-se de tinta à óleo, bronze e mármore.
                                                          
Foi então que o poder Real percebeu essa mudança, a beleza era necessária, descoberta que a Igreja católica já havia feito trezentos anos antes com a construção das grandes catedrais góticas. Os reis investiram fortunas em beleza, ela tornou-se uma obsessão, a refeição passou a banquete, e o banquete a orgia, os corpos e almas obesas assistiram a algo parecido com o que havia acontecido com o Império Romano quinze séculos atrás, mas dessa vez os bárbaros pelo menos obedeciam a alguns códigos de conduta que, se não evitaram massacres, pelo menos impediram que se espalhassem de maneira indiscriminada. 
                                    
Agora, com pelo menos uma fração das fogueiras apagadas, a fumaça ergue-se cobrindo boa parte da arte de séculos anteriores, o sonho do mecenas está encoberto por uma onda cinzenta, e aqueles que almejam a eternidade agora estão vestidos de reformadores sociais. Mas as forças nunca são unânimes, estão misturadas, e em meio à fumaça brotam as chamas amarelas de um individualismo artístico originário dos reinos alemães, mas que espalha-se por toda a Europa. Esse fogo arde dentro de um mundo que por si só, também está se transformando no refúgio mais do indivíduo, do que do coletivo. O século 19 ainda é uma promessa vaga, cheia de possibilidades de todas as cores, mas percebo como o indivíduo, e principalmente o artista, precisará pagar um preço alto para exercer o papel de protagonista. O sofrimento é inerente àquele que precisa construir o próprio mundo e moldá-lo a seus desejos, que nunca cessam de exigir modificações, e de chocar-se com violência, como grandes ondas contra um vilarejo indefeso, ameaçando a unidade do ser, que transforma-se em vítima de sua individualidade. Esses são nossos dias, é nesse mar brumoso onde estão mergulhados nossos pensamentos, e é de lá que, eventualmente, saem os esqueletos descarnados daqueles que foram soterrados pelos próprios palácios que construíram, e que dedicaram a si mesmos. 
                                                                      
De qualquer forma, a vida, e por consequência, o mundo, é feito de oceano, mas também de ilhas, que resistem às marés e aos ventos, e que jamais permitirão que uma unanimidade absolutista prevaleça. Em uma época em que muitos cultuam o individual, os indivíduos correm o risco de se parecerem muito uns com os outros, e acabarem por construir uma massa coletiva de almas idênticas. Isso faz com que as próprias marés do grande oceano que almeja a unanimidade,  seja responsável pelo nascimento de novas ilhas. Muitos desses construtores solitários sucumbirão sem nada realizarem além de gritos e lágrimas. Serão engolidos pelos humores pouco estáveis dos oceanos que os rodeiam. Mas alguns indivíduos conseguirão erigir, de dentro das águas, suas torres de areia, que servirão de guia aos navios que singrarem aqueles mares. O indivíduo sobreviverá, mas precisará conviver com o conjunto de indivíduos. Novos séculos, inflados por ideias reformistas, raiarão no horizonte, e se repararmos com atenção, a batalha que manchará as areias da praia de sangue, não será muito diferente dessa que acontece nesse século que se inicia, alguns indivíduos lutando para permanecerem intactos, independentemente do sofrimento que isso possa acarretar, enquanto outros agrupam-se, lutando apenas para não sofrerem.  
                                                            
O dia nas Ilhas Borromeu foi magnífico, coroado por um pôr-do-sol dourado que transformou o Lago Maggiore em um imenso cofre forte. Ao chegar ao hotel rabisquei alguns de meus raciocínios em um caderno, jantei, e sem que Waterfall percebe-se, saí para um passeio noturno. A uns cem metros do porto encontrei mais uma das mulheres mutiladas de madeira, sabia que Cunningham devia estar por perto. Não me enganei, estava sentado à beira do cais olhando para o lago. Sem despertar sua atenção, tentei observá-lo de longe. Coloquei-me a uma distância que fosse suficiente para manter minha privacidade, mas de onde conseguisse enxergar a expressão de seu rosto. O que vi foi exatamente nada. Nenhuma espécie de emoção, nem ao menos tédio. Talvez um cadáver sentado e com os olhos abertos fosse mais expressivo. Após alguns minutos de observação ele levantou-se, apanhou uma pedrinha no chão e atirou no lago. Ele não pareceu querer com que ela quicasse duas ou três vezes na água antes de afundar, apenas atirou-a e nem moveu a cabeça para vê-la afundar. 
                                                             
Afastei-me alguns passos em silêncio, e vi sua figura diminuir, o homem grandalhão tornara-se um ponto diante do volume das águas do lago, mas havia ainda as montanhas, o céu, e tudo aquilo que meus olhos não conseguiam enxergar. Cunningham se transformaria em algo ainda menor, uma mancha minúscula que de tão pequena parecia não ser capaz de conter nada em seu interior. Mas esse não seria o destino de todos os homens, mesmo daqueles repletos de entusiasmo e ideias? Não estariam todos condenados a serem esmagados pelo imenso?    
                                                                                                         
Apresso o passo. Ainda não tenho idade para responder a essa pergunta, ela é particularmente perigosa para um jovem. Mas a queda da árvore me ensinou que a juventude é uma questão de ponto de vista, meu velho eu pode, nesse instante, estar lamentando seus reumatismos e torcendo para que os poucos dias que lhe, ou me restam, não tragam consigo outros suplícios físicos, enquanto o recém-nascido que fui, ou sou, prossegue olhando desconfiado para um mundo que ainda para ele, ou para mim, nada significa. Portanto, se for considerar essas variáveis, não há pergunta que, em qualquer época, não possa ou deva ser respondida. Assim como não há ideia, ação, ou atitude que possa ser desconsiderada, justificada, ou atenuada, pois nós somos todos os outros, que segundo nossos sentidos, não somos mais, ou ainda seremos.   
                                                                                                   
Dessa vez desvio da cidade e costeio o lago até que as casas desapareçam, o que sobra é a relva que avança até a beira do lago, e alguns arbustos de médio porte cortados por alguma árvore maior, que parece estar deslocada de seu habitat natural. Colho uma frutinha vermelha de um dos arbustos, e na dúvida sobre se é ou não seguro comê-la, faço como Cunningham, e deixo com que caía nas águas. Uma fruta sem esperanças. Então sorrio: não estaria o cocheiro atirando suas esperanças no lago para se livrar de vez delas? Não estaria cansado de ter esperanças?  
                                                                                                                                       
O grande problema do indivíduo que deseja pensar, é que o pensamento gera como primeira consequência uma quantidade imensa de perguntas, mas elas não podem ser todas respondidas, pois vão acabar gerando novas perguntas, que se reproduzirão como erva-daninha, e acabarão evitando com que o raciocínio evolua. Portanto, o pensador, deve saber que possui um número limitado de respostas, e que elas devem ser espalhadas ao longo de sua construção intelectual, para que algo possa finalmente ser concluído, e servir de abrigo a outros.     
                         
Sentado à beira do lago observo uma árvore solitária, reparo na semelhança com aquela de onde caí. Por um instante me passa pela cabeça escalá-la, desisto com um sorriso: a vida jamais será assim tão evidente. Ao contrário, ela parece estar sujeita a uma lógica bastante sofisticada. Então cedo a mais uma pergunta que me incomoda como uma coceira: Haverá, de fato, alguma lógica, ou tudo não passaria de um imenso acaso? Essa talvez seja a maior de todas as perguntas. Qual seria a importância da existência ou não de um criador, se ele, após perpetrar o ato, não instituir também um sistema secreto que governa aquilo que existe? Uma espécie de cocheiro que evita que o acaso comande os destinos. Por outro lado, a necessidade de lógica não é inerente ao fato de se existir. Um criador perverso, desorganizado, ou mesmo a ausência de um, deixando tudo ao sabor das marés do acaso, também não deixa de possuir sua beleza. Talvez haja nesse universo mais poesia do que naquele comandado por um estatuto secreto. Uma realidade onde se navega até quando as tábuas do casco do navio resistirem, depois afunda-se, desaparece-se, e nada daquela experiência permanece, o sentido está amarrado à existência, e a falta dele, à sua ausência, como o objeto e sua respectiva sombra, um compensando o outro, e por vezes modificando suas respectivas consistências, sombras rígidas e objetos fluídos, pois mesmo o mais caótico e desorganizado dos universos, precisa de equilíbrio para continuar existindo.   
                                                  
Uma subida na árvore não fará mal. Tomarei cuidado, a lua cheia vai ajudar a enxergar os galhos, não preciso escalar tão alto. A noite borrifa seus cheiros e daqui de cima vejo como a luz prateada desafia a neve perpétua do alto das montanhas, parece gritar para que acordem, se levantem, pois tem muito o que fazer. Mas a lua não possui tanta força, a neve dorme, e ela mergulha nas águas do Lago Maggiore, espalhando sua imagem em muitos tamanhos e profundidades. Sinto o ar fresco molhando meus pulmões, e uma energia mágica que nasce em minhas veias e se espalha por cada canto do corpo. A juventude grita dentro de mim, e mesmo que saiba que minha infância e velhice, estão acontecendo nesse instante em algum canto escondido do universo, diante do pulsar vibrante de meu corpo, elas perdem a importância, sou jovem e sou o instante, esse é, portanto, o meu sentido.  
                        
É claro que essa constatação faz com que opte por uma das estradas na bifurcação, escolho um universo livre de regras, mesmo estando consciente que essas regras em muitos casos podem me poupar de sofrimentos, escolho o magnífico acaso azulado, afogando em suas brumas os significados empalhados que o tempo adora devorar, o vazio que segue à dor e ao soluço sem respostas, escolho o suspiro sem esperanças, mas que consegue se defender contra as tristezas. Escolho a margarida do campo existindo sob o sol, para então dormir quando ele se pôr, e deixar de ser, quando renascer. Sou a margarida conformada por ser transitória, e orgulhosa de ser eterna, e nesse instante, e é somente ele que conta, sou eterno.                                                                                                                                
Aproveito a oportunidade para mergulhar, mesmo permanecendo nesse galho que me acolheu com seus cheiros, uma substância rugosa que parece querer sinalizar que nossa intimidade têm limites, e que já os atingimos. Mergulho dentro de camadas de memória, circundadas por um pântano de desejos. As águas se comunicam para que o equilíbrio, sempre ele, continue existindo. Mas o mundo, e eu, não somos apenas recordação e anseios, somos a fusão dessas substâncias, mistura que dá vida a uma certeza. Somos, e qualquer ente que exista, é, antes de tudo, uma certeza. Afirmamos, com propriedade, aquilo que nos separa do nada, e que é o nosso existir. Experimento esse som, que me invade por todos os canais sensoriais, menos o auditivo. A música vibra sobre o Lago Maggiore na forma de escuras pinceladas, a ausência de luz existe, e as existências daquilo que não está presente, precisa ser entendida e respeitada. Afinal, não ser, é o que valoriza, o ser. Sinto que me aproximo de alguma importante revelação, mas a mera proximidade nada significa, posso passar o resto de minha vida contemplando-a e sem avançar meus dentes sobre seus sabores frutuosos, então me conformarei com essa condição para depois me orgulhar dela, divulgando-a como uma grande conquista.    
            
Por outro lado, posso tentar dar o próximo passo, morder a fruta, engolir seus sabores, viajar dentro de mundos alheios, mas conseguir retornar ao meu para contar o que vi, um Grand Tour por dentro dos esqueletos da realidade. As manhãs nunca mais serão as mesmas para aqueles que conhecem onde estão os pregos que sustentam as noites. Tomo coragem, minha onda se ergue soberana, nenhuma praia sobreviverá aos ímpetos que borbulham em mim, com a verdade plena, nua e paralisada diante de meu bisturi, iniciarei escavações, escarnecendo de narizes, dedos, e sexos, pendurados na ponta da haste metálica que uso para perfurar a verdade. Rasgarei longos tecidos carnais repletos de veias sem função e sangue coagulado, dissecarei material cerebral, desencaixando as camadas que ocupavam seu devido espaço, para então perceber que desfeita a harmonia ela não consegue ser refeita
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Depois de muito cavoucar, descobrir e duvidar, acabo percebendo que o que tenho sobre a mesa é um monte de nada, restos sem importância e significado daquilo que achei se tratar da verdade absoluta. Mas quando menos percebi ela se esvaiu, escapou por entre os dedos, e todo o orgulho que guardava, e toda a certeza de que esse achado perpetuaria meu nome e existência por um período de tempo quase do tamanho da eternidade, tudo derreteu como gelo no verão. Dedos servem para segurar grãos de uva, castanhas, mas para a verdade, é necessário outra ferramenta. Talvez ela seja tão volátil que desapareça no instante exato em que se forma a intenção de aprisioná-la, e nós estejamos condenados a percebê-la, escutá-la, mas jamais dominá-la. Vagamos nos vales sombrios das meias verdades, cobrindo com tinta escura tudo aquilo que é duvidoso, plantando raízes em terra rasa e nos lamentando quando o que julgamos as árvores frondosas do pensamento, desabam impulsionadas por frágeis brisas.                                                  
Apesar disso, parece haver uma força oposta que apaga incêndios e mantém a estrutura básica do universo funcionando em paz, ela agora começa a se manifestar. Não sei nominá-la, mas percebo sua presença. O rio de estrelas silenciosas que agora mancham o céu, é uma consequência dessa força e não sua causa, ou razão de existir. Talvez nesse mundo feito de grandes profundidades, possa haver um reino onde as consequências não necessitem causas, e a razão de existir coincida com a existência. As árvores cresceriam sem raízes e os frutos não necessitariam de árvores. E, se assim for, no instante, estariam contidas todas as fatias do tempo, e usufruí-lo em plenitude, representaria viver da maneira mais ampla e grandiosa.                                                                                                                            
Não sei se há verdade nessas navegações pela noite do espírito, o que confirmo é o prazer que desce do céu estrelado para infectar minha alma. Um prazer que enxuga quaisquer poças de ansiedade, que é musical mas silencioso, que não precisa ser medido ou sentido, e que se digo que o senti, é pela imperfeição da linguagem, e da forma como minhas ideias se constroem. Um prazer que é por demais obeso para ser contido pelos andrajos do tempo, e que nos faz flutuar dentro de uma sensação-nuvem que relativiza grandes dramas e dissolve orgulhos. Mergulhados nesse absoluto, derrete-se também toda a gordura cotidiana e que forma a maior parte daquilo que conhecemos como nós mesmos.  
                                       
Ao que me parece as barras da prisão não poderão ser cerradas, mas isso tem menos importância do que aparenta, pois tudo que há do lado de dentro, é maior e mais rico do que aquilo que escondem as barras. A paz é o estado natural do universo, e tudo o que existe são espasmos que a rasgam.    
                                              
Desço da árvore, hora de voltar ao hotel. Decido não repetir o caminho. Em vez de costear as margens do lago, descobrir um atalho pela relva. Não estou longe, a lua não me deixa no escuro. Desenho mentalmente um traçado que me conduzirá ao centro de Stresa. Depois da relva as árvores aumentam em número e tamanho, uma pequena floresta cheirando a seiva e com copas quase fechadas por onde os raios esbranquiçados entram e molham os galhos secos caídos no chão. Meus pés são a única fonte de ruído, as cascas secas, quando pisadas, parecem querer contar como foram suas vidas. Vozes ansiosas, mas que logo se interrompem quando o chão esvazia-se. Os grandes troncos parecem gigantes adormecidos, possuem braços e dedos vigorosos que, mesmo durante o sono, continuam apontando para direções que julgam importantes.    
                                                
Reconheço um tronco caído que está coberto por cogumelos, a noite não permite que distinga suas cores vibrantes, os braços e dedos cheios de decisão e certezas, agora são sobras que se dissolvem e logo se transformarão na substância que serve de alimento para outras árvores. Sento-me no troco e experimento a rugosidade da sua casca, sinto na ponta dos dedos a história daquela árvore, a chuva, a neve, as tardes ensolaradas, o vigor físico e a decadência. Prossigo a caminhada, o bosque vai perdendo altura e surgem os arbustos, mais ou menos da minha altura. O luar banha o chão umedecido pela madrugada, o som de meus passos agora é opaco como as batidas de meu coração. As montanhas nevadas permanecem imóveis, e sei que Stresa está na direção delas. Viro à direita e desemboco em uma trilha de terra, mas que aparentemente segue na direção oposta da cidade, indeciso decido refazer o caminho que percorri até ali, volto até o bosque das grandes árvores, localizo o tronco caído, mas já não tenho mais certeza de qual direção tomar. O luar foi encoberto por algumas nuvens e qualquer tentativa de caminhar nessas condições poderia me levar na direção oposta de Stresa.   
                                                                                                                                               
A noite está quente, e decido que o melhor a fazer será dormir aqui e esperar pelo dia para conseguir me localizar. Transformo meu casaco em travesseiro e sinto na madeira amolecida do troco podre, um sinal de acolhimento. Sobre minha cabeça as réstias de um céu que duvida de si, nuvens alternam-se sobre estrelas, mas os galhos das árvores parecem dedos agudos apontando naquela direção, escuto o que dizem: “é por ali, para cima, o único caminho possível”. Os odores da noite e do tronco se misturam, há decadência em tons variados, mas também perfumes brilhantes, essências desconhecidas que devem significar vida ansiosa para acontecer.   
                                                                                  
Ouço ruídos, galhos secos sendo pisados por pés sem muito peso. Permaneço de olhos fechados, nada poderá me ferir porque sinto que já sou parte dessa floresta. Asas batem, e imagino o pássaro voando sobre o lago, tomando a direção das montanhas nevadas, após sobrevoar Stresa e o pequeno hotel em que estou hospedado. Há sempre muito mais do que nós mesmos no mundo, e isso é reconfortante.   
                                                                                                                              
Sou acordado pela poderosa mão de Cunningham apertando um de meus ombros. Demoro alguns instantes para me localizar, sorrio e agradeço ao cocheiro que retribui minhas palavras com um murmúrio mal-humorado. Explico o que aconteceu, mas ele não parece querer conversa, e apenas aponta para a direção na qual devemos seguir. Antes de partir apoia a bota que precisa ser amarrada no tronco apodrecido, o peso de seu pé faz com que a madeira afunde e eu consiga enxergar dentro do troco, um monte de serragem pronta para fazer com que a casca externa desabe e os resquícios daquela vida desapareçam. Sinto outros odores que não experimentei durante a noite, eram cheiros quase neutros, a podridão começava, ela também, a ir embora. Acompanhei meu guia e me surpreendi com a curta distância que nos separava do hotel. Ao meu lado morava um mundo completamente desconhecido.     
                                                                            
Waterfall caminhava ansioso de um lado para outro, e mesmo de longe percebi que seu semblante era ainda menos amistoso do que o de Cunningham. Ataquei-o com um pedido de desculpas que pretendia emendar com a descrição do que acontecera. Mas ele não me deu espaços e iniciou um longo e irado discurso sobre responsabilidade, hombridade e decência. Decidi que não reagiria, abaixei a cabeça, e mesmo durante as inverdades, nada disse. Escutava suas palavras e imaginava como deveriam estar saltadas as veias laterais de seu pescoço, e avermelhada a pele de seu rosto. O ímpeto, pouco a pouco foi cedendo, as palavras perderam a velocidade e ele pediu para que eu fosse descansar porque após o almoço seguiríamos viagem.



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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