A mesma aventura, conto de Perce Polegatto

Imagem: Paul Klee. Onde? 1920.



“Bom dia a todos.”
 
Por isso, todos me observam quando subo ao ônibus pela manhã. Não se diz bom dia a todos, especialmente com tal sinceridade. Estranham roupas que mal se ajustam e fazem de mim um cidadão deselegante, sem interesse. Óculos que mal se ajustam ferem-me o nariz e as orelhas. Mal eu me ajusto a alguma coisa. Mas posso vê-los a todos.
 
A mulher com a criança doente; dois homens discutem política; o operário leva sua marmita e parece absorto à janela, como sonhando o que, não sendo outro, só ele pode sonhar. O menor flagrado, retido por alguns homens que o esbofeteiam.
 
“Toma, filho de uma cadela!”
 
“Não tenho mãe”, ele chora. “Nunca tive mãe…”
 
“Agora ninguém tem mãe, não é?”
 
Agora ninguém tem mãe. Arremessados todos à mesma fração de realidade e tempo, conscientes ou não, ao encontro ímpar com a morte. O mesmo sonho dos que compartilham o real, uma fase de expansão da galáxia onde ainda há luz e energia propícias à vida. A mesma geração. E sua vez.
 
Senta-se ao meu lado uma mulher triste. Quando alguém se senta ao meu lado, esse alguém tem um problema. Não é preciso ouvir tudo, não é preciso perscrutar as fisionomias. Nem é preciso que me contenha. Sei que essa senhora de olhos fundos foi abandonada pelo marido, após ter sofrido muito; que a estudante se exilou de sua família interiorana e que o rapaz bem vestido esconde uma tragédia inconfessável. Que a adolescente prostituída, olhos de meia-noite emergindo da precária maquiagem, está apenas voltando a sua casa pobre – e vai entre nós. Sei dos que traíram, dos que tramam trair. Estão todos aqui. Dos que acreditam e dos que viram a verdade mais difícil. São os de trás, os da frente, os de pé no centro, sentados à esquerda e à direita, ansiosos ou somente à espera. São estes e aqueles. Não há outros.
 
Minha vez de descer. Sem mim, outras gerações serão lançadas às mesmas viagens. Atrás, deixo os que são eu de alguma forma, no rastro de seus destinos, de nossos destinos.
 
“Bom dia”, digo aos que me estranham. “Bom dia a todos.”
 
 
 

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias.
É autor de 5 romances (“Os últimos dias de agosto”, “A seta de Verena”, “Marcas de gentis predadores”,“Projeto esvanecendo-se” e “Teus olhos na escuridão”), 4 volumes de contos (“A canção de pedra”, “A conspiração dos felizes”, “Lisette Maris em seu endereço de inverno” e “Inconsistência dos retratos”) e um de poesia (“Diário contra o destino”).  A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” ( www.percepolegatto.com.br ) .

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