Chãos: Lilia Guerra

  

Ilustração: Kanonliv

 Um dos primeiros choques de realidade que me eletrocutou, ocorreu ainda na infância, quando eu soube que a casa onde morávamos, na realidade, não nos pertencia. A casa onde repousavam nossos corpos e os trastes que compunham a parca mobília que possuíamos. Onde residiam nossos três gatos, Zuleica, Zulmira e Sandoval. E os ratos que, por insistência e imposição, também já eram nossos. Cheios de razão e dados a camaradagem, botavam a cabeça para fora do assoalho rebentado e batiam continência. Desfilavam pelo quartinho e circulavam na cozinha quando consideravam o trânsito de pessoas diminuído. Naquela casa, brigávamos e fazíamos pazes. Nos refazíamos do cansaço.  Casa chefiada por duas mulheres pretas que, com muito esforço, traziam suprido o modesto guarda-comida e mantinham as panelas fumegando, ainda que contendo alimentos de terceira linha. Eu jamais poderia supor, se não tivessem me contado, que não era de fato nosso, aquele pedaço tão pequeno de mundo. Quarto e cozinha sem banheiro, cujo arcabouço, se mantinha ereto graças às paredes tristes, revestidas de tinta idosa corroída, expondo a derme e a epiderme. Tijolos vermelhos enfadados pelo tempo de serviço. As rachaduras eram como terminações nervosas. Esgotadas. Telhado de Brasilit, piso vermelhão. Como é que não era nossa a casinha de porta empenada, reforçada com tramela e veneziana birrenta que só se abria pela metade? Simplória se comparada às mansões da rua de cima. Honesta e acolhedora quando encerada para o natal.


Descobri que o verdadeiro dono era seu Portuga. Por isso, rondava ainda pela manhã nos chamados dias gordos. E, depois da indigesta visita, saía puxando a perna acidentada, tossindo por cima da fumaça que baforava sem trégua, enfiando no bolso o envelope com as notas que mãe e vó haviam contado e recontado. Tinha ainda a pachorra de aceitar um golico de café. Seu Portuga morava na casa grandona do primeiro pátio, com esposa e filha. Tinham um jardim bem cuidado e dois pequineses. A moça dirigia um carro branco e usava lindos vestidos. Mas, pra que é que precisavam de duas casas, se só podiam morar em uma delas? Pensei comigo assim que soube. Na verdade, eram donos de todas as casas da vilinha. Eu matutava conforme vó ia explicando. Haviam construído a vila no chão que lhes pertencia. Por isso, eram os proprietários. Como é que se fazia para ser dono de um pedaço de chão no mundo? Para ser um proprietário? Quem era o responsável pela distribuição? Todas as pessoas não deviam ter direito a um bocado? Por que é que não construíamos a nossa própria casinha, num canto desocupado? Havia tantos. No caminho da escola mesmo, notei um bocado de pedaços livres. Minha avó se ria divertida, ouvindo meus devaneios e repetia: Deus criou o mundo. O diabo inventou a cerca.


 Fui descobrindo aos poucos as respostas para as minhas perguntas. Nem todas as pessoas tinham direito a erguer uma casa num tantinho de chão que fosse. Era preciso pagar. Pagar muito. E todo o pedaço de mundo tinha dono. Uma porção de gente morava em casas que pertenciam a outras pessoas. 


Aprendi que o dinheiro do envelope se chamava aluguel. E que, se não fosse pago, teríamos que passar a mão em nossos cacarecos e ir para a rua. Mas, na rua, as pessoas também não tem permissão para ficar. A não ser que sejam andarilhas. Não podem permanecer paradas por muito tempo num pedaço de chão que já tem proprietário. Comecei a ter receio de pisar sobre as calçadas das casas. E se o dono se zangasse, dissesse que eu estava invadindo sua propriedade e chamasse a polícia?


Eu ficava pensando que, com o dinheiro do aluguel, daria pra comprar mistura para alguns meses. Pó de café, feijão. Um naco grande de fumo de rolo, coisa que sempre faltava para o cachimbo da vó. Nada me doía mais do que ver a vó catando folha no quintal pra botar no cachimbo, quando o dinheiro não dava pra comprar uma porção de fumo na venda de seu Silo. Ele até que deixava pendurar na conta, mas, vó ficava acanhada. Outras coisas ela pedia pra botar na caderneta. Fumo era luxo, dizia. Ficava sem jeito. Meu olho enchia de lágrima. Era a produção de orgulho a todo vapor dentro de mim. Eu desejava ter condição pra comprar um pedaço de mundo e erguer uma casinha com muro baixo. Assim, vó poderia se sentar e espiar a rua enquanto cachimbava. Não ia faltar fumo em sua latinha. Nem farinha de mandioca em seu pote. Nem pó de café, pra coar de tardezinha, antes da hora de rezar a Ave-Maria. Teria sempre o torresminho pra enxaguar a boca.     


Vó me levava quando ia trabalhar nas casas de família. Eu investigava:


─ Vó, a casa de doutor Mário é de aluguel?


─ É claro que não, menina. Já se viu?


─ E a da professora Nazaré?

 

─ Que eu saiba não. A casa da professora foi herança que seus pais lhe deixaram. 


─ Herança?


─ Coisa que passa de pai pra filho. De avós para os netos.



Aquela resposta me deixou esperançosa.



─ E eu vou ganhar o que de herança?


Vó desembestou numa sonora gargalhada.


Os patrões, geralmente, tinham casas próprias. Possuíam carro e telefone. As empregadas pagavam aluguel. Andavam a pé. Usavam orelhão. Conheci algumas empregadas de pele branca. Mas, naquela época, início da década de oitenta, nunca uma patroa de pele negra. Devia haver sim, é claro. Mas, em minha pesquisa, não encontrei nenhuma. Nem famílias negras morando nas mansões onde vó trabalhava. As pessoas negras, quase  nunca, herdavam propriedades. O mais comum, era que tivessem pouco estudo e, consequentemente, fossem contratadas para desempenhar funções que, embora custassem empenho e causassem desgastaste, não eram justamente remuneradas. Nestas condições, tornava-se mais difícil e demorado adquirir um bem de alto valor como um imóvel. Muitas pessoas brancas se enquadravam nas mesmas condições, mas inegavelmente, a maioria das pessoas eram negras. O período em que estiveram escravizadas durou trezentos anos, afinal. E depois, ainda que, libertos da senzala, quase nunca conseguiam emprego. As crianças negras já podiam ser matriculadas nas escolas, mas tropeçavam em inúmeras dificuldades.  Logo desistiam dos estudos.


Com a alta taxa de desemprego, era de se esperar que, o índice de marginalidade envolvendo pessoas negras, aumentasse. Abrir as portas das senzalas sem oferecer suporte, trabalho, estudo garantido e, ao menos um pedaço pequeno de terra onde pudessem iniciar suas vidas, era exatamente, abandonar à margem. A falta de oportunidades e recursos, muitas vezes, resultava em dependência de substâncias que, supostamente, entorpecem e anulam as preocupações e frustrações pela vida. Minha bisavó era alcoólatra. Bebia para esquecer a privação. Dizia que era mais fácil conseguir de graça um trago do que um pão. 


Cento e trinta e dois anos fora das senzalas físicas. Sem o pesadelo dos troncos tradicionais. Livres dos grilhões visíveis. Há quem diga que é muito tempo. E que o passado ficou pra trás. Mas o desajuste ainda é enorme. O desequilíbrio. Há quem diga que a dívida está quitada. E quem afirme que nunca existiu dívida alguma. Ainda que, na ocasião da assinatura, nenhuma política de inclusão tenha sido aplicada. Eram muitos negros analfabetos, desempregados e sem teto. Vó tinha essa mágoa. De não saber assinar o nome. Nem ler  placa de ônibus. Estava velhinha já, quando mãe conseguiu a casinha na COHAB e, finalmente, nos mudamos da casa de seu Portuga. Foi embora muito orgulhosa, a minha preta. Por uns tempos, desfrutou de seu pedacinho neste mundo.

                                                                          

 

Lilia Guerra é paulistana e ariana. Abril de 1976. Em 2014, publicou o romance Amor avenida pela Editora Oitava Rima. Contribuiu com as coletâneas Contos & causos do Pinheirão e Taras, Tarô e Outros Vícios com os coletivos Armário do Mário e Palavraria, respectivamente. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente dedica-se à confecção de contos. Contos, contos e mais contos. Em 2018, concebido por Lilia Guerra e amparado pelas mãos experientes da Editora Patuá, veio ao mundo o livro de contos Perifobia – finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019. Em 2021, na mesma acolhedora casa, nasce Rua do Larguinho.

 




 


                                                                          

 

 

 

 

 

Uma resposta

  1. "Deus criou o mundo. O diabo inventou a cerca." E o homem inventou a negociação. A nossa história está toda errada. Ainda não acabou. Minha infância também estou tentando escrever em contos. Dói. Eu choro. Mas sou melhor nos poemas. Prefiro não lembrar do passado.

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