Os restos fediam a passagem. Um coágulo fedorento morto no meio do caminho. Com força, cutucava pra escoar. Vara em riste afundando sem a luz do cano. Toco rijo em teste, com ímpeto de britadeira. Amassa, esmaga, sova a pancadas. O volume intacto espuma na superfície, acorda água, folhas e dores, convoca a reunião do enxurro. O aguaceiro se espalha, avança terra e chão, cresce nas coxas, alto na contramão. Vocifera contra o cano, a relha, a cheia que se alastra por todo o quintal e invade as portas. A água suja lamarenta, viscosa de conflitos, ignora o grito. É preciso lançar mão ao trabalho sujo, castrar o orgulho e cair na lama. Saco de encapar e mão no ralo, consumida pelo estorvo. Apalpa a imundície, mergulha seu humor na sombra. Arrancar dejetos do buraco imundo, por onde escoa somente o reles. Um bolo compacto de barro fundido, fios sem conta de cabelo emaranhado, casca, folha, poeira da Índia, toda a caca dos animais da arca. Arrancar o ordinário estorvo como quem amanheceu. Mergulhado na água, a mão ensacada na relha, cavando o cano que não desata, o homem chora. Cai sem escoar. Chora pelo trombo na veia. Chora pelo curso do tempo, um rio sem margens. Chora pela mão única em hora de pico, que não abre canais. Do tampão amontoado goteja sua história.
Já seco de chorar, o desentupidor de canos desencapa a mão ineficiente. O cabelo besuntado, a pele vincada de água, a roupa inocente, os braços paralelos em direção à piscina. Sente os respingos na mão abandonada. Quem conhece seus extremos? Balança a mão, no intuito de afugentar a umidade. A corrente esbarrando nas pernas, sem caminho nem ladrão. O céu chumaçado pronto a cair. A rua suspensa, sedenta, espreitando a iminência. Nem carro, nem andança, nem vozerio de senhora e maritaca. A dispersão do mundo. E a mão inerte de pura ruga. Tanto bate até que enruga.
O certo é que o homem cinza beijou o lodo. Confia no aguaceiro, se emenda como coalho vivo na circulação. Entranha e pele em gota; se desfaz líquido, se espraia como espuma balneária. Imerso em limo, vaza sua história, escancara o fulgor dos tempos, a carência repetida, a combinação de efeitos, o causo mal carpido. Voga como rebentação, frio ao desfalecimento imediato do céu. E na chuva se emenda como se do mundo não soubesse a crise. Como se o quintal não fora alagado e a água não adentrasse a casa, com as folhas e dores. Como se o cano já não fora um estorvo. Desaba o céu, a água escorrendo no sentido próprio. Lava a face desgrenhada, as mãos espalmadas, o fluxo fechado. Se avoluma o rio, faz ondas nascerem e o enxurro vigorar.
O senhor dos ralos se ouriça e rege a tempestade. Arreganha os dentes para os raios, atormenta o estrondo, esbanja a sede de estorvar. Embora o retraso no movimento das pernas, falhas em recompor a marcha, o regente de ralos e raios fazia a festa do enxurro. Mãos ao alto na marcha da chuva, chamando os espíritos de todas as estações. Sacos, folhas, a caca da arca, casca de laranja e batata: restos flutuantes que não alcançam o ralo. O homem se abana no naufrágio, até o fôlego acalmar. E finalmente, sorri.
Nas mãos, a xícara sumarenta de chá. Nos ombros, o conforto dos humanos. A limpeza e o calor não eram, porém, melhores que a dança em águas turvas. Eram a continuidade. Sentado na civilidade, o encanador sorria amplamente, saboreando na louça o líquido que transborda sobre o ralo do quintal e da banheira. O líquido que se esvai quando o banho termina.
Retalhos e Epopeias ( São Paulo: Editora Patuá, 2012).
Carolina Bernardes é formada em Letras, mestre em Estudos Literários e doutora em Teoria da Literatura, ambos pela UNESP, com diversas publicações em revistas literárias e apresentações em congressos no Brasil, Chile e Argentina. Atuou como professora universitária, orientadora no ensino à distância e como coordenadora de cursos de formação de escritores. Sua carreira de escritora iniciou por meio de edições artesanais. Recebeu o prêmio Grandes Empresas na Literatura, pela obra infantil Flauis (Instituto do Livro), e publicou o livro de contos Retalhos e Epopeias (Patuá) e a tese A Odisseia de Nikos Kazantzakis: epopeia moderna do heroísmo trágico (Cassará). Atualmente, dedica-se ao projeto Casa Ogham, às narrativas populares, às terapias energéticas e à escrita de seu primeiro romance.