não sei como pronunciar o meu corpo
osso por osso
senão, apenas
por palavras
e ainda assim
estou aqui,
onde é silêncio, sombra ou astro.
dizer do corpo o quanto
o quanto,
não sei. osso por osso
o quanto da primitiva palavra sobra na voz
[concreta ou contrafeita]
como pedra rude no peito
pronúncia, ou arame de palavra
não sei. não sei como pronunciar
a minha voz
sonâmbula
osso por osso
frágil e desajeitada, como
um ínfimo esboço dum qualquer ínfimo
fogo-fátuo do corpo,
o corpo
eis o meu corpo
no silêncio
existo.
Vacilo
Como dizer o
corpo
em silêncio
sem vacilar?
Como dizer o
corpo,
a porta, a
cama, a mesa
a claridade
das pedras na
mão
a casa
suspensa
sem lugar?
Como dizer do
silêncio
o fragmento, a
breve porção do corpo
escrito
a casa vazia,
devagar?
Mark Kozelek
Nesse estranho idioma da terra plana
no incerto
espinho nado e criado margem
pedra gravada por seixo maior,
[no velho rio chamado ontem, chão desastrado
da manhã]
uma linha amarrotada que da raia incerta
nasceu peito,
palma da rosa
[vinho amargo
ainda videira]
ainda caminho
murmúrio
do nascente, corpo em céu aberto
do nascente, corpo em céu aberto
que na palavra se fez bagagem
incerta
terra plana
o espinho, a sílaba, a asa
da manhã,
nas palavras tão frágeis como os caminhos que
se apagam no chão que pisas
se apagam no chão que pisas
canto e raiz
do mais fundo
desenho do passo
do cada passo
rudemente anotado
no caderno de viagens do vagabundo.
Um anjo nasce
a André Mehmari,
Em certas manhãs
num insignificante espinho
na medula,
na água e no sal,
no linho
remendado no sopro das cinzas
revolvo o chão, sopro
o corpo
como se fosse o canto da terra
um anjo nasce.
Apesar das águas abruptas e tão calmas
em certas manhãs,
como palavras
da palavra, da raiz o saliente silêncio
primeira comunhão
um anjo chama
antes que se faça azul
o dia coração
branco ou negro, cinza rosa velho baço
devolvo o corpo
ao insignificante nome que me já não sei
e ao mundo,
no mundo
quer eu queira,
quer não
um anjo nasce.
Onde era a voz
«Cada um está só no
coração da terra
traspassado por um raio de sol:
e de repente é noite.»
Salvatore Quasimodo
E se das tuas mãos já não me nascem dias?
E se do sossego de ser nítida luz,
onde era a voz
que nos dedos, antes
onde
soubeste esgravatar no espelho os ténues
traços, a linha submersa
traços, a linha submersa
o baraço que de corpo se fez corpo derramado no
todo
todo
o meu tempo,
nós?
E se do teu corpo fechado
da palavra, sonâmbulo silêncio
tinta por se escrever, e se
de repente
é noite onde era a voz?
fomos sinais da terra
fosse tantas vezes terminado o dia em chamas
fátuo fogo inacabado, intermitente a lágrima
azul-asfalto verde sépia amarelo da cor das
estrelas
estrelas
que no corpo arrefece o cheiro da terra
queimada,
queimada,
e por luz se apaga
e o ornato, o fulgor fugaz das sábias cidades
acontecidas ruínas mesmo antes da construção,
e na pedra o granizo, o sangue por vinho nos
fundos do rosto
fundos do rosto
um rio avivado
recolhido matéria dos silêncios
os breves e luminosos sinais terrenos que fomos
derramados pela mão fugidia na roda dos
expostos,
expostos,
como que ateados aos voos cansados dos pássaros
no ar caídos
no ar caídos
nos lumes, nos ínfimos grãos do pó, nos gumes
da faca na mão afiados,
da faca na mão afiados,
as palavras resistentes
que de tantas vezes terminadas por mar o mapa
a confluência nas tuas, as minhas águas
primeiras
primeiras
como se acaso fossem no mundo todas as
placentas derradeiras
placentas derradeiras
feitas certeza tão convicta, certas escritas as
margens o rio o afluente
margens o rio o afluente
por nós, e no silêncio consagrado do peito
evidente
evidente
não são nada de mais, digo
fomos escritos um para o outro.
Frágil
e como dizer
que o mais,
o mais foram remendos do mundo na mais frágil
tela em branco,
tela em branco,
um quase poema
um rebento tatuado na mão?
como dizer
que da medula
palavra
se faz pedra
lume, pele
escrita luz,
um silêncio que sobra
do espaço
que vai de mim
ao frágil
sedimento do poema?
Ilustrações: Samuel Molin
sedimento do poema?
Ilustrações: Samuel Molin
Nascido em 1969, em Almada, B. Leonardo (pseud.) vive actualmente numa aldeia do interior de Portugal, Bizarril. O primeiro texto poético data de 1984, e sob o pseudónimo Ricardo S., que colaborou irregularmente no DN Jovem, até mudar-se para o Algarve em 1990, por motivos profissionais. Mais tarde, já a viver na região norte de Portugal, colaborou no das artes e das letras, suplemento cultural de O Primeiro de Janeiro, até à reformulação daquele suplemento. Em 2009, com os blogs Na Linha das Fronteiras e mais tarde com A Barca dos Amantes, onde partilhou a sua escrita regularmente, até finais de 2017. Em 2014, esteve representado com dois textos poéticos em Clepsydra (ed. Coisas de Ler), antologia poética organizada por Gisela Ramos Rosa, onde estão reunidos textos de cerca de 90 Poetas, de diversas nacionalidades.Em preparação encontra-se o terceiro volume de textos poéticos, com edição sem data prevista, depois das edições de:
– O Timbre e o Silêncio (2015, ed. autor)
– Seiva (2016, ed. autor)
para além da organização e selecção de