Quem já morou ou mora no que chamo de vilinha vertical sabe do que falo: daqueles prédios de três ou quatro andares, com apartamentos pequenos e mal acabados, cujo preço é acessível a um financiamento modesto ou atrativo a investidores, que alugam o imóvel pra quem nem mesmo o modesto financiamento pode fazer. Sabe-se que a fauna encontrada nesse ambiente de “moderna otimização espacial” (expressão tirada de um folheto publicitário) é bem diversificada. Recém-casados cheios de planos futuros, casais de aposentados que não tiveram tanta sorte nos planos passados, solteirões que não pensam em se casar, divorciadas de meia-idade que se acomodaram com a pensão do ex, amantes que aguardam pra sempre a promessa de um divórcio, estudantes que só estão de passagem e esperam não se enquadrar em nenhuma das situações anteriores. Sou um representante desta última espécie e acabava de me mudar pra um apartamento no terceiro andar dum exemplar do referido habitat.
Mesmo tendo optado por ficar apenas no bom-dia e boa-noite nos encontros de escada com os vizinhos, logo constatei que os conheceria bem mais intimamente do que imaginava. As paredes finas do apê me familiarizaram com a programação semanal de alguns deles. Toda quarta e sexta, às oito e meia da noite, sem falta, podia esperar pelo baile particular de seu Enzo e dona Eulália, o casal de cima, que colocavam pra rodar uns elepês chiados de bolero, muito Nelson Gonçalves, e dançavam os passos perdidos dum salão tombado no tempo. À parte a poética nostalgia do acontecimento, o problema é que os saltos de dona Eulália e o provável solado de couro gasto de seu Enzo martelavam e arrastavam tão forte no teto da sala quanto em minha cabeça. Isso só não era pior que as noites de segunda, dia de visita do amigo de Luzia, uma das vizinhas de lado. Nossos quartos dividiam uma mesma parede, e nessas noites a cama do casal, provavelmente com as pernas frouxas, parecia querer derrubar a parede que me separava de Luzia e seu amigo de dia marcado. Após alguns momentos de sossego, começavam as estridências de Luzia dizendo que ele não a amava de verdade, nunca ia se separar daquela piranha guampa, só a queria pra trepar e fazer o que aquela mulherzinha não fazia bem feito, que ele nunca mais aparecesse ali porque ela não estava à venda e blá blá blá. Depois da saída do amigo, e dele eu não ouvia palavra alguma, começava o quebra-quebra de louça (Luzia devia gastar uma boa grana com pratos), coisa que sempre assustava, mesmo que ocorresse toda segunda-feira.
Esses e outros distúrbios sonoros incomodavam, mas não eram coisa de outro mundo; cheguei até a me acostumar com eles — exceção aos pratos quebrados — como se acostuma a uma televisão ligada enquanto se faz qualquer coisa mais importante. O que passou realmente a incomodar pode parecer controverso, mas a apreensão é, mesmo, o princípio de qualquer desequilíbrio.
O fato é que quase todos os apartamentos vizinhos me presenteavam com algum tipo de poluição sonora. Eu fazia questão de retribuir, pra dar sentido à minha presença e, assim, afirmar minha existência no local. Porém, num dos apartamentos vizinhos, o que dividia com o meu a parede da sala, mantinha-se um silêncio vazio e destoante.
Três moradoras ocupavam o apartamento silencioso. Uma senhora com cara de lesa, sua filha — uma loira-arrasa-quarteirão — e a netinha, de três ou quatro anos, com enormes olhos azuis e cabelo de caracol despenteado.
Não raramente trombava com a loiraça de manhãzinha: eu indo comprar pão e ela chegando de não se sabe onde com o carro. Ao voltar das festinhas da faculdade, já madrugada, passei a notar que o carro da loira nunca estava na vaga da garagem. Um espírito curioso começou a especular sobre a possível atividade noturna da moça, mas nunca perguntei a ninguém, e nem mesmo dona Neuza, faxineira do prédio e porta-voz de assuntos alheios, nunca comentou nada sobre o caso. Um dia vi a moça tirando várias caixas de sapato, aparentemente novas, do porta-malas; ofereci ajuda e ela recusou com um meio sorriso “pode deixar qu’eu me viro sozinha, obrigada”.
Se já achava a rotina da família inusitada, uma descoberta veio se juntar ao pé atrás. Numa daquelas noites de insônia fui até a sacada do quarto procurar um pouco de sono na visão da rua deserta. Havia companhia. Um vulto lá embaixo também buscava. Firmei o olhar e reconheci, sob a amarelada luz do poste, a senhora do apartamento silencioso revirando a cesta de lixo em frente ao prédio. Talvez estivesse procurando algo de importância jogado no lixo despercebidamente, pensei. Eu mesmo já tinha feito isso antes. Mas depois de vasculhar a cesta e retirar o que me pareceu um frasco de xampu, a mulher atravessou a rua, em passo arrastado, e foi remexer a lixeira do prédio da frente, e assim continuou fazendo nas lixeiras rua abaixo, uma a uma, recolhendo apenas o insuspeitado interesse numa sacolinha de supermercado.
Na noite seguinte fiquei acordado só pra comprovar o que previa. Já passava das duas da manhã quando a senhora deixou o prédio pra visitar as lixeiras da vizinhança. Nem o frio daquela noite de maio impediu a mulher de buscar seus souvenires.
O costume da senhora lesada seria compreensível se eu tivesse certeza de que ela simplesmente recolhia lixo reciclável pra vender. Mas nas mãos, sempre a mirrada sacolinha, trazida de volta à altura do peito, como um círio derretido cuja cera não se rendia à gravidade.
Entreguei-me ao rito da senhora do apartamento ao lado. Perdia noites de sono pra ver a mulher sair à procura de lixo, observava-a descer a rua, vasculhando numa obstinação tranquila, mas metódica. Eu esticava o pescoço acompanhando-a dobrar a esquina e esperava impaciente seu retorno, ponteando de um lado a outro, centenas de vezes, a exígua sacada, como animal enjaulado.
Os dias viraram espera arrastada. O sol de outono me castigava os olhos. O vento matutino me dobrava de calafrios. Vivia em estado febril, andando arqueado. Buzinas, esmeris e martelos distantes ditavam o ritmo macabro de uma enxaqueca incessante. As aulas eram recortes de falas, dentes, pigarro, e rostos de professores chafurdando numa enorme lixeira. Absurdos de café me apresentaram à arritmia. Visões de fileiras infinitas de lixeiras. E a velha, o andar desajeitado, as costas curvadas, o cuidado, a paciência doentia. Comecei a me interessar pelo lixo alheio. Desejava também rasgar sacolas, revirar despojos, disputar com ratos e baratas, besuntar as mãos no chorume, tomar o lugar da velha? “Já encontrou?”, eu suplicava fitando-a de dentro de uma lixeira pestilenta. Meus olhinhos se apertavam esperando resposta. Toleima. Sandice. Falta de sono pode tirar o juízo.
***
Um colega de turma menos discreto veio me perguntar se eu estava doente.
— Insônia, preocupação com as provas de fim de semestre —, respondi pra não causar estranhamento desnecessário.
No dia seguinte ele me apareceu com uma caixa de ansiolítico. À minha recusa inicial, ele insistiu:
— Todo mundo toma hoje em dia; é uma benção, você vai ver!
E, realmente, os comprimidos me trouxeram a paz noturna de volta. Sentindo-me refeito, numa noite de quinta-feira estava saindo pra encontrar uns amigos quando trombei com a senhora na escada do prédio. Ao seu modo, e pra minha surpresa, ela puxou assunto:
— Filho, me diz uma coisa: morre se pular de cabeça da sacada?
—… Mas… mas a senhora não deve andar com uma ideia dessas na cabeça, deve?
— Não volto pro Bezerra de Menezes, de novo não. Só tem gente doida lá. Eles te enchem de sossega-leão e tu fica andando sem rumo e babando o dia inteirinho. Nem te conto que um maluco quis me pegar uma vez, na traição, mas eu sentei a mordida no sem-vergonho. Pra lá eu não volto, não, não.
— E tratamento, a senhora faz?
— Nove comprimidos por dia. O namorado da minha filha é que paga. Ele é rico, vai casar com ela um dia, é só acertar a papelada, né… — uma pausa desconfortável. — Eu não era assim não. Foi meu marido, me traiu com minha irmã mais moça. Peguei os dois na safadeza e fiquei perdida de si um tempão; nem lembro direito, mas foi isso, acho que foi, ou deve ser. E agora eu fico dando trabalho pra minha filha. É por isso que eu tenho que… Você está com pressa, filho? E eu te estorvando aqui.
— Não, não, tudo bem. É bom falar pra esquecer. E a senhora deve tirar as bobagens da cabeça, pensar, sei lá, em Deus, coisas pra cima… Já procurou uma igreja pra extravasar um pouco? — eu ou ela estava mais inquieto? — E a netinha, onde está?
— Ah, dormindo que nem anjo; só vai acordar cedinho, quando minha filha chegar.
— E a senhora vai sair a essa hora? Se a netinha acorda e não encontra ninguém em casa…
— Eu preciso procurar. Preciso procurar, procurar, senão perco mais ainda.
Antes de terminar a frase ela me deu as costas e foi descendo o lance de escada.
Saí pra a noite sem tirar a mulher da cabeça. No bar, não estava muito afim de papo, mas fiquei ligado no piloto automático, levando o copo à boca e rindo de qualquer piadinha manjada. Pra completar o ambiente acolhedor, tinha mais uma discípula da Elis pra nos tirar o dinheiro do couvert, acompanhada de um tecladista que vestia uma camisa toda estampada de hibiscos vermelho-sangue num fundo azul, de extremo mau gosto. A dupla terminou a noite com aquela “Qualquer dia”, do Ivan Lins. Não tolerava essa música, simplesmente por conta do final, ou melhor, a canção tinha uma melodia bem agradável e, do nada (pra mim, pelo menos), acabava com aquele “logo quem me julgava morta, me esquecendo a qualquer custo, vai morrer de medo e susto, quando abrir a porta”, seguido do desfecho com uma nota dissonante horrível, bem ao gosto de filminho de suspense. Como eu temia, o tecladista segurou a nota por uns seis tempos e, sem mais, a cantora disse boa-noite. Rogando pragas em silêncio, deixei na mesa a grana da conta e tomei o rumo de casa.
Ao dobrar a esquina do prédio, dei de frente com o corpo estirado de bruços ao lado da lixeira. Estaquei por um momento. Em seguida pude constatar que a mulher não tinha pulso, o corpo já frio. Consegui me recompor e me lembrei da menina: sozinha.
Encontrei as chaves do apartamento vasculhando os bolsos da morta. Atordoado, subi as escadas, tentei girar a primeira chave e nada, a segunda também não era, a terceira me colocou dentro da sala. Sem acender qualquer luz, me dirigi ao corredor que dava pra o quarto. Tateei pelo interruptor e pude ver uma cama de solteiro desarrumada ao lado direito e no lado oposto, uma de casal. Lá estava a menina, o corpinho debaixo de um edredom cor-de-rosa. Cheguei mais perto na ponta dos pés, mas ela despertou, revolveu o edredom. Encontrei o que havia ali: era ela, não era ela? O corpinho da menina num pijama de algodão, mas o rosto da velha morta, vincado de rugas e com aqueles olhos de procura eterna. Em silêncio extasiado, tomei a menina, a moça loira, pela mão e a levei pra meu apartamento.
Hoje ela vive comigo. Na maior parte do tempo, ela é uma loira cheia de curvas e mimos, que gosta de brincar a noite toda, até se esgotar. Em noites frias de maio, acordo sobressaltado com uma voz rouca e um cheiro de urinol ao meu lado; nem olho, mas sinto volumes flácidos comprimindo minhas costas. Ela me pede um comprimido e eu lhe dou uma pastilha de menta, das muitas que ficam no criado-mudo. Em noites em que a lembrança da morte assombra, ela é a menininha de cabelos encaracolados, que se aconchega em meu colo e me pede pra cantar aquela canção de ninar: “Vai morrer de medo e susto, quando abrir a porta”.
Conto publicado no livro Vagalumes sem noite (Penalux, 2016)