A visita cruel do caos: Sandra Godinho

 

Ilustração: Pedro Weingärtner

 

            6h50

     Um estalo. Mais um ruído na semana que foi de trovões e de tempestades. Quando a normalidade já ia se instalando e não havia mais chuva despencando das nuvens, o barulho de explosões e de retroescavadeiras seguia de vento em popa, como um trem a vapor entrando pelas matas e pelas encostas em trilhos e trilhas de consumição. Os prédios tinham surgido na Muzema como propostas de moradia, decentes, prontas e semiprontas. Ninguém da família de Maria deu atenção ao aviso que cruzou os ouvidos e… deixa para lá…

            7h00

         Um estrondo. O menino menor pulou da cama, já atrasado para a escola. O maior agarrava a merenda e a mochila, afogando o café na garganta, queimando a pressa na provisoriedade do minuto. A mãe ralhou, enquanto o pai tinha acabado de partir para o trabalho, batendo a porta sem olhar, deixando o resto da família atrás de si. Desempregado dos escritórios, guardava nas esquinas da cidade os carros e as lições, perseverasse nas ruas e ia conseguir quitar a prestação do apartamento, comprado a prestação e a presteza, oferta única que o agenciador fez, irrecusável nesse canto de Jesus desassistido e de Deus envergonhado. Novo estrondo, desta vez não foi a cama nem a porta. E tudo esfarelou na nuvem de fumaça. Um pó branco que não era droga, mesmo assim uma droga de poeira levantou a argamassa desassentada de juízo, travando aos poucos a voz dos que moravam próximos. Aos poucos, foi cegando os olhos de quem já não queria ver. Houve gritos e mãos que taparam as bocas e pernas que pararam no meio da caminhada, sem acreditar no que surgia à frente de todos e em plena luz do dia.

          7h01

    Novo estalido. E os escombros cresceram diante dos olhos daqueles que saíam para o trabalho. O pai se virou para trás, sem acreditar na magia de prestidigitador que havia feito desaparecer tudo o que ele mal tinha construído e mal tinha visto pela manhã que já nascia abortada de trevas. A mulher, a filha e o filho. A mulher, a filha e o filho sumidos. O prédio sumido, ruíram as forças que ainda o mantinham em pé. Um ‘Ai, meu Deus’, mal pronunciado, saiu de sua boca enfraquecida, já sem jeito de desculpas, já farta das lições que não se aprendem em terra de ditos, desditos e malditos. Sua voz explicando o que não sabia. Não foi dito que era seguro? Mesmo com as brechas e as fissuras renunciando cuidados? Mesmo com o agenciador jurando de pé junto que nem Deus derrubava? O pai, em confissão privada, disse a si mesmo que eles estavam bem, a mulher, a filha e o filho haveriam de estar bem, mastigou a esperança graúda no maxilar, trincando os dentes, começando a prece com voz mal lapidada na garganta dos que já desacreditam. Ou dos que são desacreditados. A vós bradamos, os degredados nesse vale de lágrimas, mas que as lágrimas não sejam minhas. A vós suspiramos com as desgraças, gemendo e chorando sempre. Vez por outra, beliscando o lábio dormente. Ao alcançar os escombros, ele começou a escavar com as mãos, já mal ouvia e mal enxergava. O estalo da prece, acordando-o para a curiosidade dos abutres. E dos vizinhos, mal paridos da manhã como ele, também em desespero de pesadelo como ele.

O apartamento se foi

Agora é túmulo

É cova rasa

Travestindo-se de esperança

O prédio se foi

Agora é lembrança

           7h20

       Dos seus dedos, desabrocha um vermelho profundo, que já não dói, que já não sente. Ele escutou um ‘Ai’, logo ali, perto da laje que separa o quarto do quinto andar. Ele tem certeza. Ou sente ou pressente, já não sabe dizer. Também não importa, já é somente instinto em asas miúdas a abanar um dedo de confiança. A camisa já se encharca de suor e ele não sabe se é pela tristeza ou pelo esforço, também não importa. Outros braços se juntam aos dele, na tentativa de cavoucar a vida no que já é restolho. O pai persiste, movimenta os lábios, não se trata de religião, mas de fé. Ogum, Deus, Alá, seja lá o que for, vai devolver a família à vida. Vai resgatar a certeza que é conforto, ainda que ilusório. Vai dessangrar a fraqueza para resgatar o fervor, que é dele. E também de outros iguais a ele, vizinhos agoniados à espera e à espreita de um som qualquer. Um ai. Um oi. Um alô. E os homens vão se guiando pelos ouvidos e pelo vigor em direção ao caos. Uma sirene é ouvida ao longe, viaturas de ambulâncias e bombeiros se achegam ao local por onde moscas e abutres já revoam na dor que reside em corpo alheio, na esperança que se agita na mobilidade dos ossos. Aos poucos, mais braços vão se juntando, numa corrente insana em busca de restos de humanidade. Alguns começam a levantar a voz, outros pedem silêncio, enquanto cães são postos a farejar em terra estranha, em argamassa rompida com o descaso e a descrença. Alguém ouviu um gemido, o cão se aproxima, escarafunchando o focinho inquieto. O pai se renova na alma, arremessando o desespero para fora da alma. Ele se agita e se esperança, transbordando a voz que se aguça de repente.

̶  É a merenda do meu filho. Ele está por perto. Eu sei que está.

Diz mais a si mesmo que aos bombeiros, salvação mais do que danação. Tivesse se despedido direito de cada um, com um beijo na testa e com um ‘vá com Deus’, mas agora padece, fermentado de culpa.

̶  Eu vou achar todos eles. Sei que vou.

E o bombeiro ao seu lado não tem nenhuma dúvida de que o homem só sairá de lá, depois de ter todos os seus entes alojados nos braços. Nem que seja para um último adeus. 

Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da Ailb, Academia Internacional de Literatura Brasileira. Publicou O Poder da Fé (2016), Olho a Olho com a Medusa (2017), Orelha Lavada, Infância Roubada (2018), foi agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019) e semifinalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (Escritor do ano 2019), O Verso do Reverso (2019) ganhou o Prêmio de Melhor livro de contos Regional da Cidade de Manaus, Terra da Promissão (2019), As Três Faces da Sombra (2020), Tocaia do Norte (2020) foi o romance agraciado com o Prêmio Cidade de Manaus, finalista do Prêmio São Paulo 2021. A Morte é a promessa de algum fim foi agraciado com o Prêmio Cidade de Manaus (2021). E Memórias de uma mulher Morta (inédito) foi finalista do Prêmio Leya 2021. 

 

 

 

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