Aclives na memória, conto de Perce Pelegatto

                             Cássio Polegatto. Detalhe da capa de Um estreito, fino rastro de sangue. 2021



Frente estreita da casa que me esperava aos quatro anos, a alguns metros da nossa, nessa rua pitoresca e mágica: ali morava um parente de minha mãe, a quem chamávamos tio Major. Alto, entusiasmado, bem-falante, cabelos brancos curtos, óculos em aro fino. Portão de grade ornamentada e mureta muito alta, degraus abrindo a modesta varanda logo acima: a casa toda me parecia muito alta, algo típico das construções adaptadas a grandes porções de terreno em aclive, nos quais são traçadas ruas planas, comportando novos endereços. Partes significativas de minha cidade são assim: incrustadas em aclives severos e deformações rochosas desafiadoras, algum dia vencidos pela persistência de nossos fundadores.
 
De qualquer forma, tudo ali ficava bem acima de minha cabeça. A escadaria breve, mas muito íngreme, era de fato formada por degraus altos, cada um deles. Eu segurava o portãozinho com as duas mãos, não alcançava tocar a campainha. Olhava para cima e forçava a voz. “Tio Major!” Após a segunda chamada, ele aparecia por detrás de uns grandes vasos de plantas, fingia surpresa e, lá de cima, enquanto já descia a abrir passagem ao meu pequeno coração ansioso, respondia enfático, convidativo, pronto: “Nêni! Entra!”. Lá dentro, sua segunda esposa, tia Cida, abria para mim latas com sequilhos e bolachas doces.
 
Muitas vezes isso se repetiu. Eu gritava seu nome e me identificava. Sou eu, o Nêni! E ele, com a mesma paciência e simpatia, encenava novamente a boa surpresa ao ver-me. Ora! Entra, Nêni!
 
Todos e minha mãe morreram. Há tempos. Há sempre tempos avançando, seguindo e eliminando todos. Ainda em um de meus dias, por um motivo absolutamente inexpressivo, acontece de eu passar outra vez em frente a essa casa, mãos dadas com Denise. Peço a ela que pare e espere: preciso voltar um passo e contemplar tudo ali. Mas ela me força gentilmente pela mão, diz que eu devo deixar disso, pode não ser bom para mim, precisamos ir em frente. Volto-me assim mesmo, e me decepciono: os enormes degraus, que eram cinco ou seis, agora são muitos, após alguma reforma: baixos irregulares e meio quebrados, lembrando ruínas, apontando diretamente ao corredor lateral que, por sua vez, conduz a um fundo gradualmente escuro – em dias de nuvens, pouco se pode esperar da incidência de boas claridades num lugar assim. A casa toda está abandonada. Apagada. Toco o velho portão, que é o mesmo. Seguro duas de suas hastes com minhas duas mãos. Penso em nosso velho parente, imagino que toda a casa cairá por terra se eu o chamar com força pelo nome, encerrando para sempre a vasta memória de alguém que, um dia, sinceramente gostou de mim. Tio Major! Sou eu! A varanda ilumina-se, ele finge surpresa. “Nêni! Entra!”


 

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias.
É autor de 5 romances (“Os últimos dias de agosto”, “A seta de Verena”, “Marcas de gentis predadores”,“Projeto esvanecendo-se” e “Teus olhos na escuridão”), 4 volumes de contos (“A canção de pedra”, “A conspiração dos felizes”, “Lisette Maris em seu endereço de inverno” e “Inconsistência dos retratos”) e um de poesia (“Diário contra o destino”).  A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” ( www.percepolegatto.com.br ) .

Uma resposta

  1. Ler seu conto nos remete a uma infância marcante a todos que tiveram personagens em suas vidas como a do tio Major ou passagens eternizadas como a descrita acima. Há um encantamento em seu conto, pertinente a todos nós. A sensibilidade nos toca a cada degrau inserido, escalado. Como sempre, sua escrita se faz presente no ato de escrever bem e o necessário a um momento em que almejamos que a sensibilidade seja preservada no ser humano!

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