As cicatrizes da alma
Cicatrizes – Carlos Machado – São Paulo: Balaio Editorial, 2023.
Nesse volume de poemas dividido em cinco partes – “Vozes”, “Figuras”, “Beco da Esperança”, “Batuque” e “Liberata” -, o autor Carlos Machado apresenta principalmente a temática da negritude na sociedade atual; livre no papel, mas ainda na luta contra o racismo e o preconceito.
Vejamos o poema “Vozes”, em que o sujeito escuta os brados não somente da infância, mas os ecos da herança escravista e seus efeitos traumáticos. Ele ouve os gritos remotos dos humanos capturados na África:
VOZES
Você me pergunta se escuto vozes.
Às vezes, sim.
São cantos de pássaros,
ecos de infância.
Ou então vozeios mais longínquos.
Ruídos, gritos de sequestrados.
Vozes d’África.
Aqui, em “Silêncios”, os gritos ainda estão na garganta, reprimidos durante os séculos de escravidão no Brasil:
SILÊNCIOS
Tenho silêncios maduros
empedrados na garganta.
São gritos graves, profundos,
Sustados durante séculos.
Lemos no poema abaixo, “Cor”, a ‘cor da pele’ como a característica predominante que marca a desigualdade social e a exclusão, como uma ‘dívida secreta que nunca cessa’:
COR
A cor da pele
e seus mortíferos venenos
gases paralisantes
silêncios mais pesados que o ar.
À flor da pele
um carnê de contas a pagar:
uma dívida secreta
que nunca cessa.
No poema “Cigana”, o sujeito não quer saber do futuro, mas pagaria para ‘desvendar o passado’, entender os ecos longínquos d’África. Talvez descobrir por que o Brasil é atualmente tão desigual e demorou tanto para abolir a escravidão:
CIGANA
Queria ler minha mão
e revelar meu futuro.
Eu disse: obrigado, não.
Pagaria de bom grado
se ela tivesse o poder
de desvendar meu passado.
Em “Boletim de ocorrência”, os aspectos traumáticos do passado coletivo apontam as desigualdades, segregações e os mitos produzidos em torno do negro e da ideia de uma convivência harmoniosa que nega a existência do racismo no Brasil.
O legado da escravidão são os hematomas da alma, logo, nenhuma providência se aplica ao código penal. A cicatriz é na alma e ninguém será punido por isto:
BOLETIM DE OCORRÊNCIA
Quero fazer um B.O.
registrar queixa dessa violência
que arrasa por dentro.
Cadê os hematomas?
cadê a cicatriz?
– pergunta o delegado.
E conclui, citando
o código penal: nenhuma
providência se aplica.
Desesperado, peço um
exame de alma de delito.
Carlos Machado (Muritiba-BA, 1951) é jornalista e poeta. Cursou engenharia mecânica na UFBA e, em São Paulo, fez jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou em diversos órgãos de imprensa, como os jornais Movimento e Leia Livros e as revistas Ciência Ilustrada, Quatro Rodas, Exame e Info Exame. Publicou as coletâneas de poesia Cicatrizes (Balaio Editorial, São Paulo, 2023); A mulher de Ló (Patuá, São Paulo, 2018); Tesoura cega (Dobra Editorial, São Paulo, 2015); e Pássaro de vidro (Hedra, São Paulo, 2006). Também é autor do livro de poemas para crianças Cada bicho com seu capricho (MOVpalavras, São Paulo, 2015), com ilustrações de Geraldo Valério. Edita na internet o site Alguma Poesia (desde 2002) e a página poesia.net no Facebook (desde 2014). Como jornalista especializado em informática, é também autor de livros técnicos, publicados pela Editora Campus, já esgotados.
Solange Firmino – Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021, com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.