Assim Penso/Mittaraquis: SOBRE LIVROS, LEITORES, BIBLIÓFILOS E ESCRITORES


— Proponho-lhe uma troca — disse. — O senhor obteve esse
volume por umas rupias e pela Escritura Sagrada; eu lhe ofereço
o montante de minha aposentadoria, que acabo de receber, e a
Bíblia de Wiclif em letra gótica. Herdei-a de meus pais.
— A black letter Wiclif! — Murmurou.
Fui a meu quarto e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as
páginas e estudou o frontispício com fervor de bibliófilo.
— Trato feito — disse.
Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

 
A expressão, “Assim Penso”, sob minha perspectiva é a maneira comum manifestar um ponto de vista ou opinião pessoal. Deste modo, estarei aqui, doravante, compartilhando minha insignificante compreensão ou interpretação, no mais das vezes baseada em minhas insossas experiências, jamais com tola pretensão de que sejam universalmente verdadeiras.

Este ensaio tem como seu principal fator inerente, expor-me, em vontade e representação, como um leitor ao mesmo tempo apaixonado e crítico. Além disso, é uma tomada de posição ante a deterioração intelectual e estética hodiernas. É o questionamento sobre a horrenda possibilidade de vivermos numa sociedade cada vez mais esvaziada da Literatura; de seguirmos sob o controle de instituições políticas e religiosas que rejeitam, a todo custo, a Literatura como mediador crítico tanto do espírito como da realidade operatória.

Em tempo: digo, aqui, sobre Literatura compreendida no sentido, no significado de complexidade, de agudeza temática, de influência, de persistência ao longo da história da civilização, de apresentar questões e respostas pertinentes ante os temas universais. Portanto, é a abordagem da produção e de leitura da ficção elaborada, à guisa do exercício de dialética e de liberdade.

Sim, Literatura o é desde que a narrativa seja ficcional. Criação original do autor, mundo, ainda que reflita o Mundo, criado por aquele.

Prossigamos, então: era uma vez…

…Anos oitenta e noventa. Ao longo destas duas décadas participei de oficinas literárias. Reuníamo-nos uma ou duas vezes por semana, a critério do condutor ou da condutora, professores e professoras de Letras, dedicados, cultos, leitores de escol, capacitados a nos orientar pela análise e pela crítica de obras fundamentais para a formação do espírito bibliográfico, do cultivo ao conhecimento de clássicos da Antiguidade à Contemporaneidade [Contemporaneidade daquela época. Hoje, salvo as raríssimas exceções, o substantivo feminino, que indica a coexistência no tempo presente, perdeu muito do sentido relacionado à Literatura], tornavam aquelas duas ou três horas momentos maravilhosos, de transformação, dos quais jamais esqueci e aos quais manifestarei, sempre e sempre minha imensa gratidão.

Naqueles fortaleci o hábito de leitura, inculcado antes pelos meus pais desde a tenra infância. Ao dar-me conta do estar no mundo, mesmo sem plena consciência do que isto significa [verdade que, ainda hoje, sexagenário e parcialmente senil, continuo, abichornado, sem o saber exatamente], vi-me cercado de obras infantis e infantojuvenis, como “Biblioteca da Criança”, “Tesouro da Juventude”, “Visão de Ciência”, e outras mais voltadas ao leitor adulto, como o dicionário em quatro gigantescos volumes “Lelo Universal”; as coleções “A Fascinante História da Humanidade” e “História Universal”, do extraordinário e inesquecível Veit Valentin; além dos jornais e revistas que eram lidos religiosamente, todos os dias, em voz alta para mim, a partir dos dois anos. Aos cinco, já lia com fluência, e fui treinado [adjetivo não é excessivo] a buscar nos dicionários e enciclopédias o significado das palavras que, até então, não conhecia.

Em tempo: não havia, por parte dos meus pais qualquer censura sobre quais obras eu, mal saído dos cueiros, poderia ler. Lembro de, uma única vez, aos doze anos, ser avisado por minha mãe, exímia leitora de clássicos da antiguidade e clássicos populares, como Archibald Joseph Cronin, sobre o cuidado que este menino deveria ter ao comentar, fora de casa, principalmente entre parentes de alma medíocre, sobre o livro que estava a ler naquele momento. O livro? “A Carne”, de Júlio Ribeiro.

Dona Vilma sabia das coisas. Sobre autor e obra, observo que me fascinou à larga o cenário ficcional construído, no qual se destaca a profundidade e a abrangência da educação estética e científica em perfeito equilíbrio com a atmosfera sexual, fator determinante na narrativa.

Adicione-se “O Conde de Montecristo”, de Alexandre Dumas; o “Castelo do Homem sem Alma”, de Cronin; “Vinte Mil Léguas Submarinas” e “Viagem ao Centro da Terra”, de Julio Verne; “A Máquina do Tempo”, e “A Ilha do Dr. Moreau” de H.G.Wells… Ad Libitum!

Vale aqui um curto comentário sobre a novela “O Castelo do Homem Sem Alma”: relembro de lê-la com a respiração descompassada. O esposo e pai perverso, interesseiro e calculista a torturar psicológica e quase fisicamente sua esposa complacente, sua filha mais nova, aterrorizada e sobrecarregada, e seu filho timorato. Pessoas mantidas sob um domínio colérico.

Não admira que uma deformação intelectual se produzisse em mim: prosseguiria, para todo o sempre, dominado pela bibliofilia, não só pelo sintoma mais visível e conhecido, vale dizer, a paixão obsessiva pelas formas físicas das obras: cor, composição do papel, tinta gráfica utilizada, detalhes da ficha catalográfica… Mas por, logo cedo, compreender que, nas palavras de Henry Howard Harper, autor de “Sobre Livros, Bibliófilos, Escritores e Temas Afins”, tornara-me não só bibliófilo, mas, também, bibliomaníaco, uma cepa distinta da deformidade original, que se manifesta de forma psicótica, levando aquele que está sob tal influência, a comportar-se da seguinte maneira, segundo Harper: “Coleciona determinados livros porque alguém mais os deseja. Uma ambição do bibliomaníaco é possuir livros que sejam únicos ou de alguma forma diferentes daqueles possuídos por seus colegas colecionadores. Se, por algum infortúnio, uma edição inteira perecesse, exceto uma cópia, o proprietário dessa cópia jamais se cansaria de se gabar de sua posse, não importando se uma dúzia de edições posteriores fosse lançada. Ele teria pelo menos a única cópia da primeira edição”.

Não cheguei a todos os extremos descritos. Não por força moral e ética. Mas porque a oportunidade não se manifestou diante de mim. No entanto, fiz jus à enfermidade mediante ato do qual muito me orgulho: roubei livros sempre que pude, dos mais diversos lugares. Principalmente daqueles em que a obra jamais seria lida, jamais seria sequer notada, fosse por quem fosse. A maior parte da minha extensa e bem qualificada biblioteca é fruto de esforço pessoal, investimento financeiro, de presentes recebidos, de doações… Mas uma pequena e muito querida parte é constituída pelo produto de saques levados a efeito em diferentes fases da minha trajetória de bibliófilo e pilhante.

A propósito, o título deste artigo é um ‘semiplágio’, inspirado no título da obra de Harper, supracitada.
Adulto, com um pouco mais de possibilidade econômica no que tange às aquisições, regenero-me, e de bibliogatuno passo a exercer, com gosto, a vaidade e a ostentação: ter em mãos, via espécie ou cartão de crédito, os títulos que desejava e os que, por força de estudos e trabalho, fui, de certa maneira, obrigado a adquirir.

Assisti, então, minha biblioteca se ampliar exponencialmente.

Estou muito bem acompanhado nisto, ainda que não necessariamente no tocante ao talento, à genialidade. Sou diminuto ante estes imortais, o sei bem. Grandes escritores deixaram-se dominar pelo doentio, sufocante, prazeroso, divino amor aos livros, em especial aos belos e raros e de relevância histórica. Ernst Hemingway, por exemplo, manteve biblioteca com mais de nove mil volumes; Goethe mais de seis mil

Sei que há bibliotecas muito maiores. Nem todos os bibliófilos são escritores. Provavelmente a maioria não o é. Selecionei os exemplos por ter a informação mais a mão e pela afinidade eletiva para com estes dois nomes.

Pari passu com a psicobibliopatologia, há, em mim, a vontade racional, dentro da realidade operatória, de transitar pelo campo das Letras.

Ressalto o termo racional por defender que o fenômeno literário é uma construção humana, constituída pelo autor, pela obra, pelo leitor e pelo interprete. E publicar um livro é ocupar espaço físico, numa condição dialética, em nome da liberdade individual.

Não sou tanto escritor, com poucas incursões neste sentido [um livro de poemas publicado, participação esporádica em coletâneas, publicação sistemática de poemas no meu perfil lá no Instagram]. Impedimento para publicar livros físicos? Falta de grana para tanto e, creiam ou não, certo prurido… Sempre me vem à mente o alerta do contista e poeta argentino: “há uma biblioteca infinita” ou “possuo muito mais livros do que o tempo de que disponho para lê-los”… Algo assim.

Então vejo-me muito mais como leitor, e pelas milhares de páginas sigo, a parafrasear o índio yaqui, mestre de Castañeda [tenha existido de fato ou não], lendo, lendo, pensando, pensando, apaixonado, espantado, arquejante.

Vejo-me tal como Alberto Manguel, em suas belas palavras sobre o perceber um livro diante dos olhos: “O livro na minha estante não me conhece até que eu o abra, e no entanto tenho certeza de que ele se dirige a mim e a cada leitor pelo nome. Está à espera dos nossos comentários, das nossas opiniões”.

Assim sendo, quem nos chama são os autores. Comigo acontece destes [aos quais li mais de uma vez, ou tantas e tantas vezes], na alta madrugada, quando, presentes e indicativos, me veem passar com algum título sob o braço, e nas mãos garrafa de vinho e taça, lançarem um assovio em diminuendo ou até mesmo um ei!.

Capas e lombadas dos ainda não lidos miram com expressão desafiadora, letal.

Bem, creio ter me alongado em demasia. Culpa do desmedido amor ao tema. Condição sentimental que, de forma inconsequente, inconveniente, tenta capturar uns poucos adeptos. Improváveis, entretanto possíveis, futuros irmãos em armas.

Mas, pragmático, não creio tanto nisto. Vivo com realismo uma utopia pessoal e intransferível, vivo dias de leitura e escrita em minha bolha aristocrática, a saber que, no que toca ao restante do mundo, estou cansado.

Inté a próxima… Se próxima houver…

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, pós-graduado em Educação, autor do livro de poemas Sob a Régua do Expediente. Publicou, ao longo de dois anos, textos críticos no portal Só Sergipe. Durante os anos 80 e 90 participou de algumas antologias poéticas. Cultiva com ardorosa paixão o ritual de beber, diariamente, bons vinhos e de cozinhar para a Imperatriz Absoluta do Seu Coração.
Leitor contínuo dos Classicos da Literatura e, do mesmo modo, ouvinte mesmerizado da música erudita, do jazz e do blues.Também exerce, há quatro décadas, a função de redator publicitário e diagramador (incluindo composição jingles), é carioca de nascença e mora em Aracaju.

Respostas de 6

  1. Estimado Léo: Quantos nomes de valor existem em toda parte do mundo e aqui no Brasil. Nomes que, infelizmente, não conhecíamos porque sempre será “uma pedra no meio do caminho” essa impossibilidade de abarcarmos, pela leitura, todos os escritores brasileiros. E é assim que, mais uma vez, funcionam os bem-aventurados acasos de que a vida, ou melhor, os relacionamentos são, segundo nos afirma William Shakespeare, cultivados. E é até até bom que assim o seja. São esses acasos felizmente, ou essas circunstâncias na travessia da vida que nos levam a conhecer pessoas que partilham das mesmas alegrias e do “prazer do texto, ” do amor aos livros e do desejo insopitável de não saber viver sem as fonte inesgotáveis de ler tantos livros ao longo da vida. É da leitura que promana o conhecimento do homens e da existência .É das leituras constantes que alargamos o nosso “horizonte de expectativas”. Enfim, Léo, V. é um irmão no excelso e nobre plano das leituras. Prazer e contentamento por me permitir essa e seguramente outras oportunidades de adentrar
    nessa sua alma de escritor e estudioso da Literatura. Um autor que se destaca pela originalidade do ponto de vista do estilo de sua escrita.

    1. Palavras carregadas de tamanha generosidade! Saber-me reconhecido por quem é melhor que eu à larga. Eis a glória almejada por este canhestro cavaleiro das palavras. Ergo taça à sua saúde, bebo em nome da bela amizade forjada ao calor da paixão pelos livros. Honrado sobremaneira 🍷 🍷

  2. Querido Léo, parabéns pelo texto instigante, tanto pelo tema como pelo desdobramento. O amor pelo livro, como objeto de arte, receptáculo das infinitas experiências humanas ao longo da história. O prazer no relacionamento com a biblioteca pessoal, um paraíso pessoal, um jardim secreto de palavras. E o ato de organizar essa biblioteca, vasto universo minimizado, é, como disse o velho Borges, exercer o labor da crítica.

  3. Meu querido amigo e irmão em armas, suas palavras muito gentis iluminam meu espírito e fazem com que meu coração se mantenha pleno de alegria. Como bem disse Borges, encômio bem acima do que mereço. Honrado sobremaneira 🍷 🍷

  4. Léo e Mateu Machado, ser-me-á sempre um prazer renovado estar na companhia de intelectuais que já têm “batismo de fogo” de verdade e não capadócios (palavra muito usada pelo grande Lima Barreto) do beletrismo bolorento de grupelhos tão rechaçados pelo crítico Afrânio Coutinho (1911-2000) no livro “Hospital das letras.”( Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963.

  5. Relendo “Sobre livros, leitores, bibliófilos e escritores”, encontro “cartas” dos ficcionistas /críticos literários, quando da publicação deste ensaio de Léo Mittaraquis, no Amaité Poesia & Cia. Endereçaram-me imagens de trocas de livros, sugestões de leituras e outros afins capazes de pontes à altura da teimosia e do talento. Pontes sem sistemas de legitimidade, sem o narcisismo e sua violência e melindre de “pertencimento”. Abaixo, águas coercitivas, estruturalmente subordinadoras. Sim, nosso tempo é do biopoder, como bem acertou Foucault. Que aqui ninguém se jogue desta ponte na qual trafega a imaginação isenta dos contratos sociais. Em “Sobre livros, leitores, bibliófilos e escritores” há uma fonte própria que busca, desde os cueiros, outras fontes também isentas de um carismático sistema de poder, aquele cordial, acolhedor e dominador. Há a busca por livros, pelo universo bibliófilo, pelo espírito bibliográfico ao simbólico dos encontros literários, como aqui, sem contentar-se com meras aparências exteriores. O monopólio e a violência do narcisismo dos sistemas digitais são suprimidos pela dionisíaca e apolínea sondagem para além do solipsismo. Afinal, mesmo ratos de bibliotecas não precisam ser pedantes, confusos no “poder-saber”. Voltando às missivas, entre os autores, conheço reiteradamente o Cunha, mas ainda pouco o Mittaraquis o Mateus Machado, o Luís Palma, o Ronaldo Fernandes e outros que certamente surgirão. Noutra sorte, já espero uma relação entre os escribas quanto à necessidade de encarar a vida a partir das (re)conexões para além do lugar – comum em que se naturaliza nivelamentos. Espero que a relação alcance desjejuns e afinal cada um se percorra, aos pares, harmonioso e complementar. Por exemplo, Cunha é um leviatã experimentando a areia do mar onde um dos grãos sou eu. Porém, nossa desigualdade de leitura e de experiência nunca anulou uma certa conivência com as distribuições verbais, seja na ficção, seja na análise, nunca nos lançou à cega balança. Afinal, ante a vida cercada por instituições, endereçou-me também a sede das leituras excelentes de Veit Valentin à dona Vilma. Aguardemos de nós novas “cartas”, destes nós, na expressão do colunista de “Assim Penso”, Léo Mittaraquis, futuros irmãos em armas. (G. Monteiro)

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